Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron
Iniciamos este artigo contando duas histórias, que queríamos que fossem meras estórias, ocorridas no estado do Ceará. O primeiro protagonista é João: preso provisoriamente há mais de quatro anos, teve decisão concessiva de liberdade, e seu alvará de soltura foi expedido e enviado à unidade prisional em 01/10/2020. Ocorre que já se passaram mais de quarenta dias da dita expedição e não houve o cumprimento do alvará. João está juridicamente livre, mas, de fato, preso! Situação semelhante acontece com Paulo: tem autorização judicial para gozar de liberdade desde o dia 17/06/2020, mas o descumprimento do alvará de soltura o mantém preso. Não se sabe a justificativa para tal, vez que o diretor do presídio sequer respondeu ao ofício judicial para explicar (se é que tem explicação!) as razões da mora[1]. Quantos “João” e “Paulo” existem mais no Brasil?
O que nos move a escrever o presente artigo é o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como eixo fundamental do Estado Democrático de Direito. Nada pode ser mais desumano que se manter alguém ilegalmente preso, mormente quando a segregação acontece em um sistema carcerário já declarado como Estado de Coisas Inconstitucional pelo STF (MC/ADPF 347) [2].
Outrossim, o núcleo essencial da decisão com força vinculante tomada na Medida Cautelar da ADPF 347 é justamente a proteção à dignidade da pessoa humana contra as constantes, intensas e graves violações perpetradas pelos aparatos de poder contra as pessoas privadas de liberdade.
A existência humana digna é a coluna vertebral do Estado Democrático de Direito, e também o fundamento do sistema republicano (art. 1º, I, CRFB) e das relações internacionais (art. 4º, II, CRFB). Não é à toa que normas internacionais que versam sobre direitos humanos tem força supralegal[3] e podem até mesmo galgar o status de emendas constitucionais, na conformidade do art. 5ª, §3º, da CF, em ambos os casos temos parâmetros para o controle de convencionalidade[4].
Destarte, as instâncias formais de controle não podem (nem devem!) se omitir quando houver violação aos direitos humanos, a exemplo das situações já retromencionadas de se manter alguém encarcerado, mesmo já existindo autorização estatal para a soltura. Neste contexto, impende realizar uma indagação: existe prazo para cumprimento do alvará de soltura?
O Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 108/2010 determinando que o juízo competente para decidir a respeito da liberdade ao preso provisório ou condenado será também responsável pela expedição e cumprimento do respectivo alvará de soltura, no prazo máximo de vinte e quatro horas:
“Art. 1º O juízo competente para decidir a respeito da liberdade ao preso provisório ou condenado será também responsável pela expedição e cumprimento do respectivo alvará de soltura, no prazo máximo de vinte e quatro horas.”
Essa Resolução ora comentada prevê ainda que, decorrido o prazo de cinco dias após a decisão que determinou a soltura, o processo deverá ser concluso ao juiz para verificação do cumprimento do alvará de soltura:
Art. 2º Decorrido o prazo de cinco dias após a decisão que determinou a soltura o processo deverá ser concluso ao juiz para verificação do cumprimento do alvará de soltura.
Em caso de descumprimento das determinações que exaram da citada Resolução, esta prevê que haja comunicação à Corregedoria do Tribunal:
Art. 2º (...) § 1º O não cumprimento do alvará de soltura na forma e no prazo será oficiado pelo juiz do processo à Corregedoria Geral de Justiça, inclusive do juízo deprecado, quando for o caso, para apuração de eventual falta disciplinar e adoção de medidas preventivas, e ao Ministério Público, para apuração de responsabilidade criminal.
Por fim, ressaltamos que o parágrafo único do artigo 3º da Resolução ora comentada autoriza que os Tribunais formalizem convênios de cooperação para troca de informações entre os órgãos públicos, objetivando que as autoridades penitenciárias tenham acesso aos sistemas informatizados da Justiça criminal, e por conseguinte, possam efetivamente dar cumprimento aos alvarás de soltura.
Desta feita, podemos concluir que existe clara regulamentação da matéria. Todavia, seguem esses normativos sistematicamente descumpridas Brasil a fora, havendo, inclusive, Pedido de Providências nº 0002696-38.2020.2.00.0000 junto ao Conselho Nacional de Justiça julgado procedente, nos seguintes termos:
“Ante o exposto, JULGO PROCEDENTES OS PEDIDOS para determinar ao Tribunal de Justiça do Estado do Ceará que observe os dispositivos constantes da Resolução CNJ 108/2010, sobretudo no que tange ao cumprimento do prazo de 24 horas para a expedição e cumprimento dos alvarás de soltura.”
Destacamos ainda que, em julgamento realizado na 23ª Sessão Virtual Extraordinária, o Conselho Nacional de Justiça acrescentou o art. 8-A à Recomendação 62/2020, por meio da Recomendação nº 68/2020 do CNJ:
“Art. 8-A. Na hipótese de o Tribunal optar pela suspensão excepcional e temporária das audiências de custódia, nos termos do artigo anterior, deverá adotar o procedimento previsto na presente Recomendação.
(...)
IV – observância do prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas para a expedição e o cumprimento de alvarás de soltura, nos termos da Resolução CNJ nº 108, de 6 de abril de 2010;
A apresentação de todo esse arcabouço normativo demonstra cabalmente que o prazo para cumprimento do alvará de soltura são vinte e quatro horas. Essa conclusão, todavia, nos remete a outro questionamento: Existe sanção para descumprimento dessas normas? Defendemos que o desrespeito ao prazo de vinte e quatro horas pode configurar, em tese, os crimes de descumprimento de ordem judicial (artigo 330 Código Penal) e de abuso de autoridade, nos termos do art.12, parágrafo único, inc. IV da Lei 13.869/2019. Não é por outra razão, inclusive, que o Conselho Nacional de Justiça, na citada Resolução 108/2010, determina, no art. 2º, §1º, que o não cumprimento do alvará de soltura na forma e no prazo será oficiado “ao Ministério Público, para apuração de responsabilidade criminal”.
Pensamos ainda que o prazo de 24 (vinte e quatro) horas estipulado na Resolução guarda, apesar de editada anteriormente, perfeita harmonia com a decisão tomada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal na MC/ ADPF n° 347 que pede providências para a crise prisional do país. No inteiro teor da decisão, encontramos seus fundamentos, que informam que:
“Os reclusos, muitas vezes, não possuem sequer informações sobre os processos criminais. É certo que o Judiciário e a Defensoria Pública contam com número insuficiente de Varas de Execuções Penais, implicando o encarceramento acima do que determinado judicialmente. A violação aos direitos fundamentais processuais dos presos torna mais grave o problema da superlotação carcerária”.
Ademais, forçoso é reconhecer que uma prisão que já não tem mais autorização judicial para subsistir, torna-se ilegal e precisa ser imediatamente relaxada, nos termos do art. 5°, inc. LXV, da CF.
O imediato relaxamento da prisão ilegal também tem previsão convencional. Cita-se, por exemplo, o art. 7° da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH-Pacto de San José da Costa Rica)[5] e o art. 9°, item 4 do Pacto de Direitos Civis e Políticos[6], ambos ratificados pelo Brasil.
No plano da legislação pátria, ressaltamos que o Código de Processo Penal prevê a possibilidade de concessão de ofício da ordem de habeas corpus (art. 645, §2°, do CPP). Essa competência atribuída aos juízes e tribunais visa justamente conferir plena e total concretização à previsão constitucional e convencional do direito fundamental à liberdade do indivíduo. Ademais, o CPP também autoriza a fixação de multa em desfavor de quem criar óbice à soltura (art. 655 do CPP).
O Brasil, inclusive internacionalmente, assumiu o compromisso de evitar o incremento das violações de direitos humanos, e, por conseguinte, providências efetivas precisam ser tomadas para que o direito à liberdade ultrapasse do plano jurídico para o fático no prazo de até vinte e quatro horas após a concessão do alvará de soltura.
É cediço ressaltar que precede à expedição do alvará de soltura uma investigação sobre possível ordem de prisão oriunda de outro processo, daí a utilização do termo alvará de soltura “clausulado”. Confirmado que não existem outros títulos prisionais em desfavor do acusado/réu/condenado, é chegada a hora do encarcerado ser retirado fisicamente da unidade prisional no prazo já assinalado de vinte e quatro horas.
Ordens judicial existem para serem cumpridas e diga-se mais: consoante o assinalado pelo princípio da continuidade da atividade jurisdicional (art. 93, inc. XII da CF), tais ordens devem ser cumpridas a qualquer hora do dia ou da noite. Entretanto, não é isso que vem ocorrendo na práxis da justiça penal brasileira, conforme demonstramos empiricamente com dois exemplos citados no início desse texto.
Em tese, temos um prazo para o alvará de soltura ser cumprido, temos o Ministério Público para fiscalizar o cumprimento da lei e inclusive denunciar eventuais crimes, e temos ainda o Judiciário como garantidor dos direitos e garantias fundamentais. Na prática, temos defensores e advogados buscando incessantemente que as regras determinadas pelo Estado sejam por ele mesmo cumpridas. O ideal era que o Estado tivesse no cumprimento dos alvarás de soltura o mesmo empenho que o move para o cumprimento dos mandados de prisão.
O STF foi recentemente instado a se manifestar sobre a questão, no HC 194163, contudo, indeferido liminarmente por não conhecer nenhuma ilegalidade.
É sério!
Enquanto isso, vários réus permanecem juridicamente soltos, mas faticamente presos, o que, segundo o argumento do HC 194163 acarreta:
“(a) a pessoa beneficiada pela ordem de soltura fica presa sem ordem judicial;
(b) advogados e Defensorias Públicas voltam a fazerem novos pedidos ou ajuizar outros habeas Corpus em razão de demandas de familiares ou por acompanhamento ativo do processo;
(c) Ministérios Públicos são demandados a elaborarem e exararem pareceres sobre os novos pedidos;
(d) Juízes e varas tem que responder aos novos pedidos enquanto acompanham o processo onde originalmente foram concedidas as liberdades;
(e) os Entes públicos, em especial os Tribunais e o Conselho Nacional de Justiça, despendem milhares e, às vezes, milhões de reais em sistemas que não são adotados pelos juízes e pelos demais atores por não considerá-los confiáveis;
(f) os Entes públicos, em especial as Defensorias Públicas , os Ministérios Públicos e os Tribunais, elevam os gastos públicos com providências que os sistemas deveriam prover;
(g) milhares de atos institucionais e processuais são elaborados e efetivados pelas Defensorias Públicas , os Ministérios Públicos e os Tribunais, elevado o número de processos e consumindo recursos humanos desnecessariamente;
(h) o Poder Executivo eleva aos milhares de reais os gastos públicos com a manutenção das pessoas presas sem ordem judicial, para além, muito além, do tempo necessário para a efetivação da liberdade;
(i) os Entes Públicos estendem e exponenciam sua responsabilidade civil objetiva na guarda da pessoa custodiada que permanece presa sem ordem judicial.”
Seriam os alvarás de soltura apenas para “inglês ver” ou seriam “quase-alvarás” ou, ainda, apenas “recomendações”, já que os textos cogentes das normas assim tem sido interpretado em desfavor das pessoas miradas pelos aparatos punitivistas?
Notas e Referências
[1] Os nomes são fictícios, mas as histórias são reais. E a situação esra essa até o fechamento deste artigo em 15.11.2020.
[2] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF determina realização de audiências de custódia e descontingenciamento do Fundo Penitenciário. STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=299385&caixaBusca=N>. Acesso em: 24 out. 2017.
[3] STF – RE 466.343, voto do rel. min. Cezar Peluso, j. 3-12-2008, DJE 104 de 5-6-2009, Tema 60.
[4] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; ROCHA, Jorge Bheron. Defensoria Pública e Instituições Essenciais à Justiça no Controle de Convencionalidade. In: Revista Jurídica UNIGRAN, vol. 22, n. 43, p. 17-27.
[5] Art. 7º. Direito à liberdade pessoal […] 6. Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura se a prisão ou a detenção forem ilegais.
[6] 4. Qualquer pessoa que seja privada de sua liberdade por prisão ou encarceramento terá o direito de recorrer a um tribunal para que este decida sobre a legislação de seu encarceramento e ordene sua soltura, caso a prisão tenha sido ilegal.
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