E se a Constituição for a nossa cara, como não amá - la?

23/11/2015

Por Gisela Maria Bester - 23/11/2015

Em seus primeiros anos de vida, de tudo já se disse a respeito da Constituição Federal brasileira de 1988. É bem provável, no entanto, que os comentários jocosos, destrutivos, maliciosos, negativos, tenham superado os encômios ao longo de suas infância e adolescência. E dentre as críticas destrutivas que recebeu, aquela que mais lhe bateu forte me parece ter sido a de que uma Constituição prolixa torna um país ingovernável. Daí que, para inúmeros políticos (do Poder Executivo e do Poder Legislativo), para parcela dos membros do Poder Judiciário e, lamentavelmente, também para alguns constitucionalistas, o Brasil era, pelo menos fortemente até o final dos anos 1990, ingovernável por possuir uma Constituição pesada, grande demais. Talvez poucos lembrem-se disso, mas assim o foi.

Com efeito, o texto constitucional de 1988 destoa daqueles modelos de Constituições curtinhas, sequinhas, com uma meia dúzia de artigos, como a norte-americana. Por outro lado, se compararmos nossas próprias Constituições entre si, veremos que nenhuma das sete que antecederam a de 1988 foi exígua em seu texto. Claro que em relação à última, de 1969 (reconhecida pela maior parte dos constitucionalistas como efetivamente uma Constituição, embora tecnicamente tenha surgido por uma Emenda Constitucional), a atual deu uma incrementada marcante no número de artigos: originariamente, de 200 para 315. Porém, se ainda compararmos nosso texto de 88 com outros similares contemporâneos, veremos que longe estão os países de terem textos constitucionais tão concisos como o dos EUA. E mais, basta olharmos a primeira Constituição escrita da Europa - a francesa de 1791 - para confirmarmos que ela possuía 210 artigos. E ninguém nunca deixou de ser governado ou, mais propriamente, nenhum país deixou de se governar por culpa da extensão do texto de sua Constituição.

Por outro lado as Constituições, por mais que imponham tarefas aos Estados, desenhando um devir, sempre espelham a arraigada cultura de um povo. Assim, é muito provável que a Constituição de 1988 reflita exatamente as virtudes e os defeitos do povo brasileiro. E se ela é extensa, é porque não somos sutis ao ponto de termos regras claras e objetivas com paralela economia de palavras. Não, não somos dados às sutilezas; nós somos explícitos, minudentes e repetitivos, e bem por isso precisamos inserir e repetir no texto constitucional regras que pareceriam óbvias em outras culturas.

Voltando ao ponto inicial, culpou-se muito a Constituição pela ingovernabilidade do Brasil. Por trás dessa acusação leviana escondia-se, não é difícil notar, o inconformismo e o descontentamento de algumas parcelas da sociedade para com o ingresso de novos direitos e garantias nesse texto constitucional que agora completou seus 27 anos.

Neste parti pris, se a Constituição é “exagerada”, é porque nós, brasileiros, somos exatamente assim: exagerados, expansivos, largos nos sorrisos e nas maneiras. Somos abundantes nas cores, nos decotes, nas mesas postas, na voluptuosidade da exibição dos corpos masculinos e femininos. Somos fartos na exposição de nossas vaidades, mas também na admiração do que vem de fora. Falamos alto, furamos filas, mas também somos exuberantemente solidários, acolhedores, hospitaleiros, sensíveis, emotivos. Um sem-número de outros defeitos e qualidades poderiam ser elencados, mas os listados já nos bastam para provarmos uma tese irrefutável: a de que a Constituição é a nossa cara!

E assim o é por ser expansiva, com preceitos longos, cheia de barrocos. Muito disso pode ser enfeite, cláusulas dispensáveis e até supérfluas. Porém, no meio de todo esse rococó ela porta muitos direitos muito fundamentais, e só por isso já está perdoada desde o dia do seu nascimento, pois ainda que tivesse 500 artigos o que importa é que trouxe um elenco de direitos nunca antes visto tão completo e tão inovador; tão quiméricos, dirão alguns, mas tão necessários, dirão outros. Foi a Assembleia Constituinte que a precedeu também receptora de volumoso número de emendas populares, e isto faz muita diferença em sua gênese.

A Constituição modelo do ser enxuta na forma, dos EUA, aquela Barbie elegante, esquálida, quase anoréxica, talvez não nos sirva. Não somos assim, somos exuberantes; nosso modelo de beleza é cheio de curvas, é de fartura, confirmando uma mística nacional. E nossa Constituição é assim, exatamente como nós mesmos, com todas nossas virtudes, nossos defeitos e nossas contradições (internas e externas).

Ocorre que esta Constituição de 1988 não “servia” do ponto de vista dos que julgavam o País ingovernável pelo demasiado expansionismo de seu texto. Porém, sendo a Constituição a nossa cara, não serviríamos nós também? Ou não será que sendo nós que pusemos a Constituição, não nos serviriam os donos daquelas opiniões?

Passados 27 anos desde seu nascedouro, é preciso frisar que o panorama se alterou e muito. Do início dos anos 2000 para cá floresceu entre nós uma sofisticada doutrina constitucional, inicialmente ainda vestindo manequins emprestados, provindos do estrangeiro, mas que depois foi se autonomizando, aprofundando-se de tal modo e com tal criatividade, que hoje vem dando lições, em alguns aspectos, a algumas outras doutrinas, europeias e sul-americanas, e até mesmo inspirando alguns ordenamentos jurídicos de além-fronteiras, notadamente a partir de alguns institutos com características muito próprias, desenhados já no próprio texto constitucional, ou nos vários microssistemas jurídicos que a partir dele se criaram (Código de Proteção – e de Defesa – do Consumidor, Estatutos da Criança e do Adolescente, do Idoso, das Cidades, da Igualdade Racial etc.).

É preciso amar, no sentido de afirmação, de promoção e de defesa, uma Constituição que seja a nossa cara, que nos represente. Não há nenhuma pieguice nisso. Ao contrário. E é necessário amar a vida, a nossa e a de todos os seres vivos, para amar-se uma Constituição. Quando Pablo Lucas Verdu – constitucionalista clássico espanhol que nunca poderá ser esquecido em qualquer teorização sobre efetivação constitucional – tratou do “sentimento constitucional”, embora com profundidade de aproximação do sentir constitucional como integração política, era também a isso que se referia: a esse entranhamento sentimental de ode profunda ao texto constitucional que nos promova, que nos defenda, que nos produza melhorias, que nos leve adiante. Por certo que este “sentimento” e sua capital importância para os processos políticos não foram descobertos pela moderna teoria constitucional, pois os grandes pensadores gregos já pregavam isso há uns 25 séculos. Aristóteles ensinou ser preciso que todos os cidadãos sejam tão adictos à Constituição quanto seja possível. Porém, o moderno reviver de tais lições permitiu reforçar que a intensidade desse sentimento é tida como um dos bons critérios para aferir-se o grau de desenvolvimento democrático, a maturidade cívica, a profundidade do vínculo moral e ético entre pessoas e instituições, o nível de cultura política de uma dada sociedade. Sociedades com larga tradição democrática costumam experimentar esse sentimento constitucional enquanto uma perenidade, onde norma e prática de norma possuem consonância muito próxima, quando não total. Por outro lado, a distância entre o que prevê a norma constitucional e o que a prática entrega às pessoas, em suas vidas concretas, é sinal de crise de sentimento constitucional, evidenciando falta – perigosa – de integração política. E integração política, no sentido de força em torno à Constituição, em uma sociedade como a brasileira, permeada por diferenças abissais (entre outras, de origem econômica e racial, marcada pelo pluralismo, pelo multiculturalismo), só poderá ocorrer no sentido de realização do “ser” fraterna, solidária, mais justa, sustentável e promotora da equidade justamente a partir do denominador comum, do fator unificador, que é o próprio texto constitucional. Donde, o que nos distancia é o que também nos aproxima, sendo a Constituição nosso bônus (no sentido de tudo o que constitui) e nosso ônus (desafios que nos impõe ao constituir, por exemplo, igualdades nas muitas diferenças).

Quanto maior for a ambição transformadora de um texto constitucional, no sentido das promessas que registra, especialmente no campo dos direitos fundamentais sociais, maiores consciência cívica elevada e disposição altruísta ela requer de seus cidadãos e de suas cidadãs. Para tanto, é preciso conhecer-se a Constituição.

Nem todas as pessoas que laboram no Direito conhecem bem a Constituição de 1988. O que dizer então daquela maioria esmagadora que integra a chamada “sociedade aberta” dos seus intérpretes? Em 2002 orientei TCC de Graduação, na Faculdade de Direito de Curitiba, sobre “O direito constitucional como disciplina obrigatória do ensino médio brasileiro”, de Murilo Távora. Outras tantas iniciativas propositivas devem ter sido orientadas por tantos outros professores pelo Brasil afora, talvez antes disso. Não basta. Ainda não é o suficiente. Em nosso Congresso Nacional está em processo legislativo o PLS 70/15, aprovado pela Comissão de Educação, Cultura e Esporte, do Senado Federal, em 6 de outubro de 2015. De autoria originária do Senador Romário, o projeto visava a alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), criando uma nova disciplina no âmbito dos ensinos fundamental e médio, para tornar obrigatório ao alunado um novo conteúdo: a introdução ao estudo da Constituição; no entanto, o Substitutivo, sugerido pelo Senador Roberto Rocha, temendo que “a indicação de disciplinas específicas poderia ‘dar origem a uma prática inusitada e passível de críticas à ação do Congresso Nacional’”, aprovou a oferta referida “entre os conteúdos curriculares”, não como disciplina autônoma, o que esmaece bastante o escopo inicial do projeto. Mesmo assim, é uma iniciativa, porém, falta chegar “lá”. Para amar-se algo e levá-lo a sério, é preciso que se o conheça de verdade. Portanto, segue o desafio, assim como nunca será o bastante se insistir na necessidade de que a sociedade sinta a Constituição como coisa sua, como coisa própria.

Pelo tanto que já constituiu nestes 27 anos de existência, o texto constitucional brasileiro de 1988 merece ser levado a sério e ter o apego do sentimento do seu povo, o sentir de pertença, eis que, mesmo com todos os delays e os tropeços hermenêuticos que se deram em sua breve história de pouco mais de um quarto de século, certamente esta Constituição já nos tornou melhores, enquanto pessoas individualmente consideradas, enquanto povo, enquanto nação.


Notas e Referências:

ARISTÓTELES. Política. Traducción de Julián Marías y María Araújo. Madrid: CEPC, 1997.

______. Constitución de los atenienses. Madrid: IEP, 1970. Introducción, traducción y notas de A. Tovar.

BENITEZ, Gisela Maria Bester. E se a Constituição for a nossa cara? O Estado do Paraná, Curitiba, 10 ago. 2003. Caderno Direito e Justiça, p. 13.

CONSTITUIÇÃO DEVE FAZER PARTE DOS CONTEÚDOS DO ENSINO FUNDAMENTAL E MÉDIO. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/09/29/constituicao-deve-fazer-parte-dos-conteudos-do-ensino-fundamental-e-medio>. Acesso em: 20 nov. 2015.

LUCAS VERDU, Pablo. El sentimiento constitucional (Aproximación al estúdio del sentir constitucional como modo de integración política). Madrid: Reus, 1985.

TAJADURA TEJADA, Javier. El sentimiento constitucional. El País, Madrid, 6 dic. 2006. Opinión.


Gisela Maria BesterGisela Maria Bester é Professora de Direito Constitucional. Colaboradora convidada no Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania, do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e no Colégio de Professores da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Mestre (UFSC), Doutora (UFSC e Universidad Complutense de Madrid) e Pós-Doutora em Direito pela Universidade de Lisboa. Integrou o Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, da Universidade Federal do Tocantins (UFT/CEP), e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, do Ministério da Justiça. Consultora da CAPES. Pesquisadora do CNPq. Advogada constitucionalista. Diretora Geral da ESA-TO (Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Tocantins). Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB TO. Integrante Consultora da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB. Professora Titular do PPGD da UNOESC.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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