É possível um juiz não-garantista em um regime democrático? – Por André Sampaio

15/01/2017

Antes de chegarmos a um ponto final na polêmica de termos superado a modernidade ou não, já começamos a perceber, de modo mais tangível, características eventualmente profetizadas por alguns arautos pós-modernos. Parece que, tal qual a predicação das músicas de uma determinada década, precisaremos de um certo afastamento temporal para observar – e consequentemente sistematizar – o plexo de atributos dessa nova Era.

Os caracteres identificativos se encontram espalhados, demarcando um novo relevo do que só poderá ser devidamente cartografado ao fim, fornecendo-nos, então, uma compreensão retrospectiva do que hoje passamos, em uma espécie de “sempre-já” lacaniano. Porém, nessa nova paisagem que se desenha podemos perceber determinados rasgos, como sói de ser alguns deslocamentos semânticos, fenômeno relacionado com a palavra do ano de 2016, segundo a Universidade de Oxford, a “pós-verdade”.

Nesse novo cenário as crenças adquirem proeminência perante fatos, o que faz com que seu veículo condutor (a linguagem) sofra um processo de perda de aderência entre significante e significado, ou, grosso modo, a relatividade passa a reinar na terra das palavras, fazendo com que o código verdadeiro/falso tenha menos a ver com o estabelecimento de certos critérios do que com o apetite daquele que comunica. Assim se deu com o adjetivo “garantista”, ou com o substantivo que o antecede, o “garantismo”.

Enquanto que o garantismo penal tem sua matriz semântica relacionada a: (1) um modelo normativo de Estado de direito, a (2) uma teoria jurídica da validade, efetividade e vigência das normas e a (3) uma filosofia do direito e crítica política,[1] na era da pós-verdade “garantista” é o que propicia condições objetivas para a perpetuação da criminalidade endêmica, ou, no vulgo, é o “defensor de bandido”. Destarte, não é raro que, no âmbito acadêmico, onde a teoria garantista é minimamente conhecida por muitos – ainda que de “ouvir dizer” –, alguém queira desqualificar o interlocutor ao tachá-lo de “garantista” (fenômeno muito parecido com o etiquetamento de “marxista”, como se tal processo por si automaticamente invalidasse a elaboração teórica do autor).

A título de hipótese, arriscaríamos afirmar que esse fenômeno se opera através de um deslocamento semântico original, qual seja a ressignificação de “direitos humanos”, que deixa, grosso modo, de corresponder primariamente a limites e prestações do Estado em face dos cidadãos para significar qualquer coisa relacionada à impunidade e fomento da violência em sociedade. Com efeito, chega-se ao paroxismo de “humanos” lutarem contra os “direitos humanos” (!), algo que pode soar tão paradoxal quanto uma passeata de cavalos pelos direitos dos carroceiros.

Se desdobrarmos a cadeia de fatores que propiciam esse estado de coisas teríamos inexoravelmente de nos enveredarmos pelo senso comum, a mídia, os afetos, o individualismo, o capitalismo, o esgarçamento da razão, etc., de modo que, menos do que traçar uma genealogia da ressignificação do garantismo, queremos focar exclusivamente na possibilidade de existir uma postura judicial que não feche com suas premissas, tendo que, para isso, atermo-nos a aspectos elementares da teoria, não havendo aqui a mínima pretensão de esgotamento.

Então, como seria esse suposto juiz não-garantista? Vejamos. Para que ele existisse teria de estar em conflito com uma das três concepções do garantismo, logo, de forma genérica, teria de ser um juiz que ou (1) não acredita no Estado de direito, ou seja, na lei como mecanismo de contenção do poder estatal, primando por um Estado absoluto, ou (2) não aplica critérios de validade às normas, de modo que elas possam se harmonizar à, por exemplo, própria Constituição Federal, partindo do pressuposto de que o que é vigente é válido e contrariando diretrizes ensinadas nos períodos iniciais da faculdade de direito, ou (3) não acredita na separação entre direito e moral, crendo que aquele poderia se legitimar por conta própria, sem depender de justificadores externos.

Nos três cenários acima apontados chegamos inelutavelmente à figura estrita de um “operador do direito”, ou seja, aquele que não chega a agir (ator) desde uma perspectiva de certa independência, mas que se encontra tão profundamente inscrito na ordem sistêmica que passa a ser quase que um reprodutor (operador) inconsciente de uma “vontade superior”. O problema desta configuração é que as pulsões autoritárias são sempre intuitivas e se o magistrado se despe de sua função de defraudador de expectativas[2] o que se encontra, ao cabo, é a coincidência entre funções judicantes – de asseguramento de garantias – e políticas – de implementação de pautas finais de segurança pública, tornando-se o que Casara e Melchior chamam de juiz-secretário-de-segurança.[3]

Então juiz garantista não é o juiz que defende direitos humanos? Óbvio que não. Absolutamente todos os juízes devem defender direitos humanos, o que ocorre é que, como norma e texto não coincidem (aquela é o fruto da interpretação deste), os magistrados podem atribuir maior ou menor efetividade às garantias fundamentais e aqui talvez se encontre, pelo menos em uma camada mais epidérmica, o ponto de estrangulamento do senso comum entre o que seria ou não um juiz vulgarmente tido por garantista.

Assim, a pergunta inicial poderia ser reformulada da seguinte maneira: poderia um juiz que atribui mínima efetividade a garantias fundamentais existir em pleno Estado democrático de direito? Teoricamente sim, todavia a democracia, para alcançar seu esplendor, demanda uma postura judicial de ampla proteção a garantias fundamentais, visto que são justamente elas que fundam o ponto de diferenciação entre política e direito,[4] ou seja, são elas que permitem que o juiz não cumpra uma função político-teleológica – de implementação de fins (segurança pública, por exemplo) – e se situe mais proximamente à dimensão de fiscal de políticas (o que, por sua vez, também não deixa de ser uma função política por si só, mas de natureza diversa).

Em outras palavras, é em tese possível desejar um juiz que defenda garantias “pero no mucho”, mas isso implica em dois pontos que merecem um último destaque: (1) ter cuidado com o Complexo de Malafaia, crendo que a devida efetividade normativa só possa valer para Ego e não para Alter (só a condução coercitiva do próximo é válida...) e (2) arcar com o custo de viver em um Estado democrático de direito enfraquecido, pois quando flexibilizamos suas características fundantes ficamos à mercê do apetite do órgão “flexibilizador” – e eis que o próprio sentido de “democracia” se vê atravessado pela marca da pós-verdade.


Notas e Referências:

[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. trad. Ana Paula Zomer Sica, et. al..2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

[2] MARTINS, Rui Cunha. A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São Paulo: Atlas, 2013.

[3] CASARA, Rubens R. R.; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro, vol. I: dogmática e crítica: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

[4] LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali come istituzione. Bari: Dedalo, 2002.


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