É possível falar em um Constitucionalismo Sul - Americano?

05/08/2016

Por Carolina Machado Cyrillo da Silva – 05/08/2016

América do Sul passa por um período especialmente importante de sua história constitucional. Concretamente, nos últimos 30 anos todos os países da América do Sul se afirmaram como Estados Constitucionais. O  processo público constitucional iniciado no século XIX, com avanços e retrocessos, encontra-se em firme consolidação. A democracia, como forma de orientação política do Estado e como forma de produção jurídica, constitui, com o constitucionalismo uma realidade: a democracia constitucional[1].

No processo de consolidação dos estados Constitucionais, os países da região adotaram seus próprios desenhos constitucionais e produziram uma pluralidade de institutos relativos a organização do direito constitucional. Mudaram paradigmas dos institutos tradicionais de direito, reconhecerem o pluralismo, o direito do “bem viver”(sumak kawsai) e aqueles inerentes à natureza (pachamama). Também é tema recorrente no direito constitcuinal da América do Sul a interação entre direitos fundamentais constitucionalmente reconhecidos e o direito internacional dos direitos humanos[2].

No ano de 2008 a região firmou um tratado internacional com o objetivo de constituir um bloco que visa a fortalecer as relações comerciais, culturais, políticas e sociais entre as doze nações da América do Sul.  Desse tratado surgiu um organismo internacional chamado UNASUL, composto dos seguintes países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela, todos sul-americanos[3]. Esse importante marco reforça que a região tem caráter includente e integracionista, objetivando ser considerada como um todo e não como partes isoladas.

Nessa perspectiva de consolidação de democracias constitucionais Sul-Americanas é que pode perguntar: existem um constitucionalismo da América do Sul? Entendo que sim.

Em importante marco teórico do movimento chamado “nuevo” Constitucionalismo Latino-Americano Viciano e Dalmau[4] estabelecem que a principal caraterística dessa teoria é a inegável vinculação entre democracia e constituição, estabelecendo que este vínculo se dá pelos processos democráticos constituintes. Explicam os autores que as constituições do “viejo” constitucionalismo fundacional da américa latina, herdados das experiências constitucionais coloniais, de fato, careciam de legitimidade constituinte, uma vez que se limitavam a estabelecer constituições com separações de poderes e declarações de direitos, que tinham por objetivo proteger os direitos das elites liberais e conservadoras que dominavam a região, num claro apego a democracia meramente formal. Ademais, a comunidade de participantes do processo constituinte era amplamente dominado pelas elites.

Para os autores é a qualidade do poder constituinte, genuinamente democrático e legitimador[5], que define quais constituições latino-americanas poderiam estar incluídas no marco teórico do “nuevo” e portanto, pertencentes a um movimento do constitucionalismo novo e quais estariam ainda dependentes de sua origem liberal conservadora, num movimento de constitucionalismo tradicional. Ressaltando que é característica essencial e necessária do “nuevo constitucionalismo latino-americano a existência nas Constituições de constante e efetivo mecanismo de participação popular, capaz de manter o vínculo constante entre soberania e governo. Assim, concluem que é a Constituição da Colômbia de 1991 importante ponto de partida para desenvolvimento da teoria. Além dela, também os processos de formação constituintes da Constituição da Venezuela, da Bolívia e do Equador e as regras nelas previstas sobre constante participação popular (democracia participativa, plebiscito e referendo ativador), que garantiriam a essas constituições o status de verdadeiramente democráticas e únicas possíveis de serem enquadradas na “revolução” do nuevo constitucionalismo latino-americano[6].

No entanto, algumas críticas a essa categorização ou fracionamento da América do Sul entre velha e nova, podem ser laçadas aqui analisando as Constituições da região.

A primeira crítica é em relação ao o conceito de América Latina empregada na doutrina. América Latina não é um conceito geográfico, o que gera uma imprecisão em relação ao objeto de estudo, ou seja, seria necessário precisar quais são os pontos de contato entre os Estados abrangidos pelo conceito para determinar se são latino-americanos ou não. Existem diversas explicações e pontos de partida para classificar um Estado como Latino-Americano (Cultural, étnico, econômico, linguístico). Por questões metodológicas de precisão em relação ao objeto de análise é preferível optar por estudar as Constituições da América do Sul, uma vez que o critério geográfico permite que a pesquisa tenha objeto definido de forma a liberar o pesquisador da tarefa de escolher quais critérios utilizou para precisar América-Latina. Isto porque, o objeto do estudo não é a definição de América-Latina e sim as Constituições e o constitucionalismo da região. Segundo porque existe um marco normativo que define a região que é o tratado constitutivo da UNASUL. Em outras palavras, América do Sul existe como região geográfica e como região jurídica, América latina não. Por este motivo, a proposta apresentada é a de estudar o Constitucionalismo Sul-Americano, apresentando as características próprias dos institutos ou desenhos Constitucionais da região.

 A segunda crítica diz respeito ao argumento, segundo o qual, é a existência de mecanismos de constante participação popular e da qualidade dessa participação popular o que definiria o nascimento do nuevo constitucionalismo latino americano. Segundo a doutrina essa característica seria uma novidade na região trazida pelas constituições de Colômbia, Venezuela, Bolívia e Equador. No entanto, esse argumento na se sustenta pela simples leitura dos textos constitucionais anteriores às novas constituições da região e ainda vigentes, como por exemplo o famoso art. 331 da Constituição uruguaia de 1967[7] que contempla ampla participação popular da reforma constitucional através dos mecanismos da iniciativa popular de reforma e dos plebiscitos necessários para validade das reformas constitucionais. É provável que Uruguai seja o país sul americano que mais pratique a intima relação entre governo e soberania popular.

Assim, na proposta excludente dos autores que fundaram a teoria do Nuevo Constitucionalismo Latino-Americano, em relação as demais constituições Sul-Americanas (que não sejam Colômbia, Bolívia, Venezuela, Equador), pelo critério da previsão de participação democrática e popular, não parece ser a mais adequada, o que pode ser provado pela simples leitura dos textos das Constituições Sul-americanas, em especial nas disposições constitucionais sobre a participação popular nas reformas constitucionais. Portanto, a proposta de separar a região em novo e velho constitucionalismo, sendo o primeiro democrático e participativo e o segundo liberal e conservador, não encontra guarida nos textos das constituições[8].

Portanto, propõe-se que se possa falar de Constitucionalismo Sul – Americano, analisando os institutos constitucionais presentes nesses ordenamentos, optando pela vertente includente de todas as constituições da região, dado que o tema: participação popular não é determinante para separar a região, como proposto por Viciano e Dalmau, mas sim ponto de contato dos sistemas constitucionais[9]. Sendo assim, o desafio da região é implementar a proposta de cooperação jurídico constitucional para desenvolvimento de temas próprios de nossa região, tais como: o respeito a natureza, a integração com o sistema do direito internacional de direitos humanos; o desenvolvimento econômico e social, capaz de melhorar a qualidade de participação democrática  e fortalecer o vínculo entre soberania popular e governo.


Notas e Referências:

[1] FERREYRA, Rául Gustavo. Fundamentos Constituicionales. Buenos Aires: EDIAR, 2013.

[2] CYRILLO DA SILVA, Carolina Machado. La posición jerárquica del derecho internacional de los derechos humanos em las constituciones sudamericanas. In, Contextos, número 5, Buenos Aires: 2013. p. 124-135.

[3] http://www.unasursg.org/quienes-somos

[4] VICIANO, Roberto e DALMAU. Rubén. Fundamentos teóricos y prácticos del  nuevo constitucionalismo latino-americano. Disponível em:  http://www.gacetaconstitucional.com.pe/sumario-cons/doc-sum/GC%2048%20%20Roberto%20VICIANO%20y%20Ruben%20MARTINEZ.pdf

[5] É na qualidade do poder constituinte que os autores excluem a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a Constituição do Peru de 1993 e a Reforma Constitucional da Argentina de 1994. Por sua vez, o professor Antônio Carlos Wolkmer em diversas oportunidades advogou a inclusão da Constituição Brasileira de 1988 no marco teórico do Constitucionalismo Latino-Americano pela inclusão do pluralismo. Sobre o tema consulte-se WOLKMER, Antônio Carlos. Constitucionalismo Latino Americando. Curitiba: Juruá, 2013.

[6] Em interessante artigo Viciano e Dalmau expõe a tese da necessidade da constituição real (não nominal) na América Latina. Veja-se VICIANO, Roberto e DALMAU, Rúben.  Los Procesos Constituyentes Latinoamericanos, disponível em http://www.redalyc.org/pdf/2932/293222977001.pdf.

[7] https://parlamento.gub.uy/documentosyleyes/constitucion

[8] CYRILLO DA SILVA, Carolina Machado. Reforma Constitucional e participação popular nas constituições da América do Sul. Disponível em http://campusvirtual.contraloria.gov.co/campus/memorias/derConstitu/CarolinaMachadoCyrillo.pdf

[9] VICIANO, Roberto e DALMAU, Rúben.  Los Procesos Constituyentes Latinoamericanos, disponível em http://www.redalyc.org/pdf/2932/293222977001.pdf.


carolcirylo

. Carolina Machado Cyrillo da Silva é Professora de Direito Constitucional da Faculdade Nacional de Direito (FND) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e docente de Elementos de Direito Constitucional da Universidade de Buenos Aires (UBA).. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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