Drogas, por que legalizar? A interferência do Direito Penal na questão das drogas. Parte 7 – Direito Penal do Inimigo e o tratamento do traficante como inimigo, e a criação do traficante com a proibição

14/07/2016

Por Rodrigo Darela de Souza – 14/07/2016

Leia também: Parte 1, Parte 2, Parte 3, Parte 4Parte 5, Parte 6Parte 8, Parte 9

7 Direito Penal do Inimigo e o tratamento do traficante como inimigo

Segundo Bem e Botelho (2014), “para Jakobs o direito penal tem como função reafirmar os valores de determinada ordem jurídica. Em razão disso, recebeu muitas críticas e sendo considerado, inclusive, nazista”. No entanto, o teórico afirmou não estar apontando como o direito penal deve ser, mas, apenas apontando como o direito penal foi e é, ou seja, o direito penal foi e é um instrumento reafirmador da ordem jurídica vigente e, por consequência, um modelo penal adotado em cada período histórico. É ainda, um instrumento de quem está no poder, pois contém normas coercitivas impostas a todos.

Jakobs fez parte de uma concepção funcionalista conhecida como radical, onde o agente é punido porque agiu de modo contrário à norma e culpavelmente. Assim, tentou explicar por sua teoria que o direito penal possui como função precípua a reafirmação da norma, buscando, desse modo, fortalecer as expectativas de quem a obedece.

A grande controvérsia em relação à teoria de Jackobs, diz respeito ao fato de acabar legitimando a lei independentemente de seu conteúdo, de modo que, se o direito penal protege a norma, e não bens jurídicos de forma direta, acabaria dando margem a intervenção penal onde esta não é devida, “a bel prazer do legislador”, como no caso da questão das drogas.

O problema talvez não esteja no fato de afirmar que o direito penal protege a norma, mas, talvez, ao não questionamento do conteúdo da norma, o que poderia vir a acarretar grave problema ao sistema democrático, em especial, a afronta à dignidade humana e aos direitos fundamentais.

Afirmam ainda Bem e Botelho (2014) que, dentro da perspectiva midiática, encontra-se consoante apelo a um direito penal do inimigo no tráfico de drogas. Destaca-se, neste contexto, o alto poder de formação de opiniões exercido pela mídia.

Esse poder exercido pela mídia não é diferente na esfera do direito penal. A superexposição de eventos propagadores do medo, como ondas de terror ligadas ao crescente aumento da criminalidade, faz com que a população, alvo deste discurso midiático, clame cada vez mais por leis e medidas mais severas de contenção deste aumento. Por vezes, a propagação do medo pode vir a ter como objetivo principal, a aceitação da intervenção exagerada do Estado na mitigação das liberdades públicas, corroborando um direito penal máximo.

Não é falso afirmar, portanto, que o legislador é formado pela opinião pública, que é formada pelo discurso midiático. Logo, para o legislador, mais importante é satisfazer a vontade popular, seja ela qual for, do que seguir princípios ou diretrizes do direito, pois estas não possuem “título de eleitor”, ao contrário daquelas.

A Revolução Francesa trouxe ao mundo uma nova ordem mundial, calcada nos valores da liberdade e limitação do poder. Porém, o momento vivido naquele século XVIII era exacerbação do poder executivo, com as chamadas “monarquias absolutistas”. Logo, a ideia era de limitação do poder executivo a ser feita pelo povo, consubstanciado no poder legislativo. Assim, o poder legislativo era visto como a verdadeira vontade do povo, de modo que nada mais cabia ao poder judiciário e ao juiz, que expressar em suas decisões, “a vontade do legislador”. O juiz era mero, “boca da lei”.

Diante das barbáries feitas em nome da lei, como todos os atos do nazismo, por exemplo, é que surgiu o movimento pós-positivista, que se inicia após a segunda guerra mundial, e que traz mudanças nessa perspectiva. Princípios passam a ser observados de modo vinculado, além da análise material da Constituição. É aí que entra o “poder corretivo do judiciário”, analisando o conteúdo da lei e verificando sua compatibilidade com o sistema jurídico constitucional e principiológico. Aqui vale a observação precisa de Marmelstein (2014, p.10):

Foi diante desse “desencantamento” em torno do positivismo ideológico que os juristas desenvolveram uma nova corrente jusfilosófica chamada pós-positivismo, que poderia muito bem ser chamado de positivismo ético [...] percebeu-se que, se não houver na atividade jurídica um forte conteúdo humanitário, o direito pode servir para justificar a barbárie praticada em nome da lei. A mesma tinta utilizada para escrever uma Declaração de Direitos pode ser utilizada para escrever as leis do Nazismo. [...] logo, o legislador, mesmo representando uma suposta vontade da maioria, pode ser tão opressor quanto o maior dos tiranos. (Grifo nosso).

Nesse diapasão, encontramos a abordagem das drogas e sua relação com o tráfico, sendo, a todo o momento, bombardeada pela mídia como um mal social que deve ser resolvido à luz do direito penal, de modo que, sendo o problema das drogas um problema penal, legitima assim a intervenção policial nesta esfera. Tudo isso leva a um discurso no sentido de tratar o traficante como um inimigo, devendo ser “extirpado” do convívio social alguém com tão alta periculosidade. Bem e Botelho (2014) afirmam:

Ora, se o tráfico é um dos delitos mais desencadeadores de outros delitos, [...], por exemplo, na cobrança de dívidas do tráfico irá cometer práticas como o homicídio, tortura, ocultação de cadáver dentre outros, podemos então concluir que o tráfico ilícito de entorpecentes é um dos grandes responsáveis pelo aumento da criminalidade, e que a lei que o disciplina, com suas peculiaridades de maior rigidez, se legitima também pelo clamor social, influenciado pela mídia. 

Vemos, então, que, muito possivelmente, a mídia e seu discurso influenciador é fonte de legitimação do direito penal do inimigo, pois, influenciando a opinião pública, o legislador posiciona-se de acordo com esta teoria, para melhor satisfazer a vontade popular de ver este crime sendo reprimido com maior rigorismo penal.

Dentro de uma concepção de direito penal do inimigo, o traficante por fazer do crime algo permanente, está constantemente afrontando a norma, violando os preceitos normativos, e assim, colocando em risco a ordem jurídica vigente. Desse modo, não merece, segundo a teoria do direito penal do inimigo, o mesmo ser tratado como cidadão, mas como inimigo, flexibilizando os direitos e garantias fundamentais, aplicando assim, um direito penal de terceira velocidade a este.

Como vimos, o regime militar trouxe a ideia do inimigo a ser combatido, que, à época, seria o comunismo, em pleno contexto de Guerra Fria. Também vimos que, com a derrocada do bloco comunista, o novo inimigo “eleito” foi o traficante. Dissertando sobre a doutrina de segurança nacional, desenvolvida nos períodos da ditadura, afirma Comblin (apud PILATI 2011, p.89) que:

o alcance da segurança nacional implicaria a eliminação da diferença entre meios não violentos e meios violentos. Ou seja, para obter a segurança, o Estado empregaria sua força não importando os meios que se use. No plano da política externa, isso apaga a fronteira entre a guerra e a diplomacia e, no plano da política interna, a segurança nacional “destrói as barreiras das garantias constitucionais: a segurança não conhece barreiras, ela é constitucional ou anticonstitucional; se a Constituição atrapalha, muda-se a Constituição.”

Afirma ainda Pilati (2011, p. 90) que:

embora a Doutrina da Segurança Nacional tenha servido como suporte ideológico para as ditaduras militares na América Latina, momento histórico já ultrapassado, tal tese deixou algumas marcas importantes. Conforme descreve Zaffaroni, “a sua realidade autoritária não desapareceu, e apenas adotou uma nova roupagem: a ideologia da segurança urbana.” Isto é, como consequência, os mesmos métodos autoritários usados para o extermínio do inimigo político foram incorporados, no campo da segurança pública, no combate ao crime comum.

Karam (apud PILATI, 2011, p.90) diz ainda que:

o caráter militarizado da política brasileira se explicita em ilegítimas ações desenvolvidas pelo Exército, como as operações que vêm se repetindo na cidade do Rio de Janeiro, em claro desvio das funções que a Constituição Federal atribui às Forças Armadas. Resultando na ocupação de favelas como se fossem territórios inimigos, essas ilegítimas ações militares sequer disfarçam a identificação dos excluídos e marginalizados como perigosos, tradicionalmente feita de forma mais sutil através do normal funcionamento do sistema penal.

Percebe-se, portanto, que o pensamento bélico-militar teve influência direta na formação do estereótipo do traficante-inimigo. O combate, o plano de guerra, outrora destinado aos inimigos políticos, foi incorporado pela política criminal de drogas. Infelizmente, ainda apontando Pilati (2011, p. 93), a legislação brasileira adequou-se às Convenções da ONU de caráter proibicionista e passou a estampar os discursos político-jurídico (que aponta o traficante como o inimigo interno) e médico-jurídico (que relaciona a droga à dependência, e difunde a “ideologia da diferenciação”: o consumidor é qualificado como doente, e o traficante como delinquente).

Uma forte noção de que, neste aspecto, nosso legislador aplicou esta teoria, está no fato do próprio diploma legal de drogas tratar o usuário como vítima (doente), e o traficante como inimigo, de modo que, diferentemente até mesmo dos demais diplomas legais, neste em específico, bastam dois agentes praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previsto no art. 33 e 34 (regra do artigo 35 da lei), para configurar associação, ao contrário do Código Penal que, para configurar associação, requer três ou mais pessoas com fim de cometer crimes (art.288 CP), ou organização criminosa (lei 12.850/13), onde requer quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenadas e caracterizadas pela divisão de tarefas praticando infrações penais.

Percebe-se assim, o tratamento diferenciado ao traficante, como se este fosse um “monstro que destrói os lares colocando drogas na boca de inocentes que acabam se viciando e passando a praticar crimes por conta do vício involuntariamente obtido”, como afirma Fahur (2015), Sargento da Polícia Militar do Paraná, que demonstra uma visão sintomatológica do problema e não etiológica (estudo das causas).

Logo, tratar como inimigo o traficante, suprimindo garantias fundamentais, em primeiro lugar afronta a Constituição, e, em segundo lugar, aumentar o rigorismo penal no tráfico, só tem como efeito o aumento do preço do produto (inflacionamento), de modo que, como o risco do negócio é maior, o tráfico se torna mais perigoso, feito, portanto, por pessoas perigosas, que aceitam correr o risco de sofrer tais sanções, porque os lucros em muito superam o normal de qualquer atividade regulamentada. Melliá (apud DAVID 2008) afirma que:

entretanto, o status de cidadão, nas sociedades submetidas ao regime de Direito, é algo inerente a todos os seres humanos em virtude de sua condição humana. Dessa forma, cabe ao Estado, mediante norma constitucional, definir, apenas, quais os respectivos direitos e deveres dessa condição. Assim, não é possível conceber qualquer apostasia a essa condição, pois as pessoas não podem se autoexcluir da sociedade, mesmo não agindo de acordo com a expectativa normativa pretendida, uma vez que os cidadãos não têm capacidade jurídica para exercer esta função. Ao excluir o cidadão da sociedade mediante a incidência do rigor penal imposto a este indivíduo pela teoria do inimigo, principalmente quando a punição está voltada contra a ideologia de uma pessoa ou grupo, impossibilita “ao infrator a capacidade de questionar, precisamente, esses elementos essenciais ameaçados”, impossibilitando a dialeticidade inerente ao Direito em si, o que, em tese, favorece o comportamento daqueles que optam pelo desvio de conduta, uma vez que estes indivíduos perdem sua liberdade por serem identificados por suas ideias e não por seus atos.

E quanto mais o rigor aumenta, mais o preço aumenta, tornando a atividade ilícita algo tentador diante das exorbitantes possibilidades de lucros. Basta ver que trata-se de uma indústria que movimentou no ano de 2011 algo em torno de 400 bilhões de dólares, segundo dados trazidos por Carneiro (2011).

Isso ocorre porque o que movimenta o tráfico é o usuário, e não o contrário. Enquanto usuários existirem, traficantes sempre existirão. Basta lembrar que, na década de 1960, os EUA chegaram ao limite, impondo pena de morte nos crimes de drogas e, ainda assim, os EUA se tornaram o maior consumidor de drogas no mundo, de modo que rigorismo penal em nada demoveu a prática do consumo de drogas naquele país.

O direito penal do inimigo não trabalha com a ideia de proteção de bens jurídicos. O raciocínio não é difícil de entender. Quando o direito penal entra em ação, bens jurídicos já foram lesados. O que temos é uma lesão jurídica, uma lesão à norma. Segundo David (2008):

Com isso, afirma Jakobs, um ato penalmente relevante, não se pode definir como lesão ao bem, mas somente como lesão de juridicidade. A lesão da norma é o elemento decisivo do ato penalmente relevante, como nos ensina a punibilidade da tentativa, e não a lesão de um bem. Portanto, a concepção do direito penal como proteção do bem jurídico é relativa, uma vez que a relevância penal ocorrerá, unicamente, quando da ameaça de outrem – esse entendido por Jakobs, como o bem jurídico próprio de direito penal. Assim, sendo a norma o instrumento que regula as condutas relevantes ao direito penal, qualquer ato ilícito é, primeiramente, um ataque ao ordenamento jurídico vigente, devendo o Estado, através da aplicação de medidas coercitivas, restaurar a ordem, ou seja, a vigência da norma concebida como o bem jurídico maior a ser tutelado.

Dessa forma, podemos fazer o raciocínio de que, quando o direito penal entra em ação, o delito já foi consumado, ou seja, não há proteção alguma a um bem jurídico neste sentido, o que resta é a violação da norma, a lesão jurídica praticada.

É impossível admitir o princípio da insignificância segundo os preceitos do direito penal do inimigo, não somente na questão das drogas, mas a qualquer delito em si, pois, se a lesão produzida é contra a norma, não se pode raciocinar insignificância da norma, de tal forma que a aplicação desta teoria, em sua integralidade, retiraria da jurisprudência e da doutrina a possibilidade de decretação do princípio bagatelar.

Dissertando acerca de como alguém poderia tornar-se inimigo, afirma David (2008):

Dito isso, surge a questão: como as pessoas se transformam em inimigos? Sabe-se que a norma gera uma expectativa que deve ser mantida. O Direito Penal do inimigo, com o intuito de cumprir este objetivo, e para evitar o perigo de danos futuros à vigência da norma, busca nas atitudes individuais de cada cidadão “uma garantia cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, [...] isso como consequência da ideia de que toda normatividade necessita de uma cimentação cognitiva para poder ser real”. Então, para a concretização da expectativa do Direito, é necessário que as pessoas ofereçam uma confirmação cognitiva mínima de suas ações, que deve estar refletida, também, na personalidade do indivíduo, ou seja, é preciso ter certeza de qual é a avaliação do coletivo prezada pelo indivíduo, sua capacidade de satisfação ou insatisfação e, ainda, sua noção de lícito ou ilícito, pois só assim é possível deduzir qual será a sua reação frente a determinadas situações, podendo-se concluir se esse irá corresponder à expectativa nele depositada, confirmando a vigência da norma. Portanto, após esta breve consideração, podemos definir o inimigo como: Um indivíduo que, não apenas de maneira incidental, em seu comportamento [...] ou em sua ocupação profissional [...] ou, principalmente, por meio de vinculação a uma organização criminal [...], vale dizer, em qualquer caso de forma presumivelmente permanente, abandonou o direito e, por conseguinte, não garante o mínimo de segurança cognitiva do comportamento pessoal e o manifesta por meio de sua conduta.

Ainda que raciocinando dentro dessa teoria, poderíamos então acreditar que, no delito de drogas, a “capacidade de confirmação cognitiva” não existe, tendo em vista que o número de usuários em nada diminuiu ao longo de todo proibicionismo, justamente por falta de confirmação cognitiva, o que estimula a prática do delito, pois, como já dito, é simples encontrar confirmação cognitiva num delito como homicídio, por exemplo, em que o criminoso tem capacidade afirmativa de cognição de que tal ato constitui um ilícito, mas essa capacidade cognitiva não se realiza no que tange às drogas.

Porém, delitos de drogas, nos quais o usuário não vislumbra prejudicar terceiros com seu hábito, não se consegue obter com simples aceitação tal proibição e, tendo em vista que outras drogas tão ou mais prejudiciais à saúde são consideradas lícitas, piora ainda mais esta situação, pois não existe coerência entre o proibido e o permitido, prejudicando a aceitação da cognição positiva da norma.

Desse modo, é difícil aos usuários terem capacidade cognitiva positiva frente à proibição, e isso reflete também no traficante, que vislumbra, neste nicho de mercado, ganhos inimagináveis, que torna o risco do negócio atraente, mesmo com toda reprimenda penal. Os meios de combate ao inimigo adotado com fundamentação na teoria do direito penal do inimigo é, segundo ainda David (2008):

O Direito Penal do inimigo visa manter a vigência da norma e a expectativa que ela proporciona a seus cidadãos. Para isso, utiliza-se de medidas típicas deste modelo, tais como a ampla progressão dos limites da punibilidade; falta de redução da pena proporcional a essa progressão; passagem da legislação de Direito Penal à legislação de combate à criminalidade; supressão de garantias processuais. De outro vértice, o rigor do punitivismo de determinadas regulações penais, principalmente em matéria relacionada a tráfico e consumo de droga, pode não estar relacionado, simplesmente, com as consequências sociais negativas do consumo de entorpecentes, mas, também, com a ineficácia de políticas públicas adequadas de combate às drogas, ou seja, o efeito simbólico do rigor da legislação penal como forma de superar a ineficiência do Estado no cumprimento de suas obrigações. Neste sentido, a expansão do Direito Penal na qual se enquadram as noções de inimigo de Jakobs, principalmente em sociedades emergentes, em que as políticas públicas na área da segurança são ineficientes, o endurecimento das normas penais pode ser utilizado como a saída mais simples no combate a este problema, gerando um efeito simbólico e ineficaz de que o Estado está atuando no combate das necessidades sociais.

O aumento da repressão penal, tendo como viés o direito penal do inimigo funda-se, portanto, na premissa de que, sendo o traficante indivíduo não-alinhado com as normas estabelecidas e descumpridor da norma de maneira reiterada, habitual, a melhor opção então é tratar este como um inimigo do Estado e da sociedade, neutralizando e retirando este do meio social, pois não corresponde com capacidade cognitiva afirmativa perante as normas vigentes.

Interessante observar a teoria retributiva de Hegel. Segundo Queiróz (2005, p. 23), para Hegel, o delito é uma violência contra o direito, a pena uma violência que anula a primeira violência. É assim, a negação da negação (processo dialético), sendo a pena, portanto, a restauração positiva da validade do direito. É, portanto a pena, em Hegel, uma necessidade lógica, racional. Jackobs busca em Hegel a fonte de fundamentação de sua teoria.

A teoria do direito penal do inimigo responde a uma expectativa social muito atual com resposta aparente, simbólica. Responde a uma expectativa social, pois, com o aumento da criminalidade, ou com o processo atual de globalização, pelo qual a mídia está a todo o momento divulgando crimes que ocorrem em qualquer lugar do mundo, e isso traz uma sensação de forte insegurança, vários Estados vêm adotando no direito penal a resposta como forma de “acalmar” as expectativas das pessoas, criando novos crimes ou aumentando drasticamente as penas, parecendo estar “solucionando o problema”, por isso chamado de simbólico.

7.1. A CRIAÇÃO DO TRAFICANTE COM A PROIBIÇÃO:

No Brasil, uma forte crise política assola este exato momento, e a resposta à crise não é mudanças estruturais, mas sim, transformar, por exemplo, corrupção em crime hediondo. No que tange às drogas, o que se busca também é uma resposta penal, como se esta tivesse o condão de resolver todos os problemas sociais. Assim, têm-se o direito penal como “prima-ratio” e não como “ultima-ratio”, afrontando o princípio da subsidiariedade.

Na entrada desse século XXI, vimos a teoria de Jackobs do direito penal do inimigo ganhar forte impulso, logo após os atentados terroristas de 11 de setembro nos EUA. Assim, não é novidade o tratamento dispensado aos considerados “terroristas” que, com base nesta teoria, têm direitos e garantias violados na base de Guantánamo em Cuba, com algumas prisões sem processo sequer, base esta pertencente aos EUA.

No Brasil, frente ao problema do tráfico nas favelas, em especial no Rio de Janeiro, vimos a criação de um Estado paralelo, sob o comando dos traficantes. Tivemos uma resposta penal ao conflito, em que até hoje bons resultados nunca foram obtidos. Assim, criado o poder paralelo, que é um mal produzido pelo Estado omisso em suas políticas públicas, e, com o tratamento sob o viés do direito penal ao combate às drogas, e não por outros meios, foi que nasceu o traficante.

Desse modo, o delito de drogas, ao ser tratado pelo direito penal, nada mais faz do que legitimar a atuação policial nestes lugares de maior vulnerabilidade, utilizando o escudo da saúde pública (como bem jurídico tutelado), para uma atuação abrupta e violenta do Estado, objetivando controle social e outros fins diversos do dito bem jurídico tutelado.

O traficante nasce por ser a droga um ilícito. Assim a compra não pode ser feita por vias legais, o que origina o “nascimento” do traficante e do tráfico. Com o surgimento do traficante, o enriquecimento é cada vez maior, tendo em vista o imenso mercado consumidor, e este poder leva à corrupção de agentes públicos, influência política (incluindo financiamento de candidatos), dentre tantos outros que propiciam a corrupção, que hoje é um dos maiores males vividos pelo Brasil. Nadelmann (2013), presidente da Drug Policy Alliance é quem faz com bastante preciosidade, essa correlação entre tráfico e corrupção, dentro de uma análise global.

Assim, nasce o traficante por ser a droga um ilícito penal, e este domina as favelas, pois há um vácuo de poder nestas, pois o Estado sempre foi omisso em políticas públicas nestes locais. Não é de hoje essa omissão estatal nestes lugares de maior vulnerabilidade, de modo que desde a abolição da escravatura, negros e pobres se amontoaram nas favelas e o Estado não ofereceu condições mínimas de existência nestes lugares.

Hart (2014) estabelece uma crítica precisa, afirmando que, ao dizer que as drogas destroem as comunidades, favelas em especial, traz a falsa noção que faz parecer que antes das drogas as favelas prosperavam, sendo as drogas o mal destes lugares.

É isso que possivelmente justifique a atuação penal no delito de drogas: Usar como escudo a saúde pública como bem jurídico, para legitimar a atuação penal nesta seara, e assim, poder intervir através de força policial nos locais vulneráveis, de forma a legitimar uma atuação policial contra aqueles que são vistos como indesejáveis, ou agir desconforme à moral dominante, como forma de controle social pela via penal.

Infelizmente, a sociedade acredita que sujeitos vindos das favelas e bairros vulneráveis não irão obter outra sorte, que não reproduzir as condições de vida em que já se encontram. Assim, analisar o traficante como um “inimigo” deixa-se passar em branco que, a própria existência do traficante é culpa do Estado, fruto direto da proibição. E, ainda, que com oportunidades, esses indivíduos podem ter sucesso e serem importantes para a sociedade como um todo.

Com a proibição, o traficante domina a favela, cria um poder paralelo, influencia diretamente em inúmeros crimes, e a reposta oferecida até o presente momento sempre foi o maior recrudescimento penal. A lei de drogas (lei 11.343/06) no tratamento dispensado ao traficante houve um recrudescimento maior que na lei anterior (lei 6.368/76):

Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;

Pena - Reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa. (BRASIL, 1976) 

Art. 33.  Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. (BRASIL, 2006)

Vemos assim que houve maior endurecimento penal, e percebemos que o traficante tem um tratamento penal sob viés do direito penal do inimigo. E sob este viés de tratamento, o resultado é insatisfatório, pois, não houve diminuição do cometimento desses delitos e os números só aumentam a cada dia.

Dessa forma, percebemos que o traficante é fruto da política proibicionista, de modo que o Estado trata como inimigo aquilo que ele próprio criou, ao tratar a questão das drogas sob o viés penal.


* Artigo elaborado a partir da monografia apresentada para obtenção do título de bacharel em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL. 06/2016.


Rodrigo Darela de Souza. . Rodrigo Darela de Souza é Graduado em História, Graduado em Direito, Especializado em Direito Penal e Processo Penal. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Combate à criminalidade e ao tráfico de drogas // Foto de: Fotos GOVBA // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/agecombahia/5906658879

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura