Drogas, por que legalizar? A interferência do Direito Penal na questão das drogas. Parte 5 – Discussão das drogas no Brasil – RE635659

12/07/2016

Por Rodrigo Darela de Souza - 12/07/2016

Leia também: Parte 1, Parte 2, Parte 3, Parte 4Parte 6, Parte 7Parte 8, Parte 9

5 Discussão das drogas no Brasil – RE635659

Procuramos nesse capítulo, trazer a discussão atual do STF acerca da descriminalização do artigo 28 da lei 11.343/06, reproduzindo os votos dos ministros que já deram seu parecer sobre o assunto.

Como demonstração da atualidade da questão das drogas, vemos a discussão acerca da descriminalização do art.28 da lei 11.343/06 no STF. Abaixo, segue a reprodução de partes dos julgados dos Ministros do Supremo Tribunal Federal que, até o presente momento, já manifestaram seus votos, quais sejam: Ministro Luís Roberto Barroso, Ministro Gilmar Mendes e Ministro Edson Fachin.

5.1. VOTO DO MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO

No julgamento do RE 635659, Barroso (2015) afirma que o papel do Estado e da sociedade deve ser o de: a) desincentivar o consumo; b) tratar os dependentes; e c) combater o tráfico. Enfatizou em sua decisão que:

a guerra às drogas fracassou. [...] E o custo político, social e econômico dessa opção tem sido altíssimo. Insistir no que não funciona, depois de tantas décadas, é uma forma de fugir da realidade. É preciso ceder aos fatos. [...] É preciso olhar o problema das drogas sob uma perspectiva brasileira. Olhar o problema das drogas sob a ótica do primeiro mundo é viver a vida dos outros. Lá, o grande problema é o usuário. Entre nós, este não é o único problema e nem sequer é o mais grave. Entre nós, o maior problema é o poder do tráfico, um poder que advém da ilegalidade da droga. E este poder se exerce oprimindo as comunidades mais pobres, ditando a lei e cooptando a juventude. (Grifo Nosso)

Para Barroso (2015), o tráfico desempenha uma concorrência desleal com qualquer atividade lícita, pelas somas que manipula e os pagamentos que oferece. Esta a primeira prioridade: neutralizar, a médio prazo, o poder do tráfico. Para isso, só há uma solução: acabar com a ilegalidade das drogas e regular a produção e a distribuição.

A segunda prioridade deve ser impedir que as cadeias fiquem entupidas de jovens pobres e primários, pequenos traficantes, que entram com baixa periculosidade e na prisão começam a cursar a escola do crime, unindo-se a quadrilhas e facções. Há um genocídio brasileiro de jovens pobres e negros, imersos na violência desse sistema. Por fim, vem o consumidor. O consumidor não deve ser tratado como um criminoso, mas como alguém que se sujeita deliberadamente a um comportamento de risco. Risco da sua escolha e do qual se torna a principal vítima. Mas o risco por si só não é fundamento para a criminalização, ou teríamos que banir diversas atividades, do alpinismo ao mergulho submarino.

Barroso afirma ainda que dados trazidos pelo IBCCRIM, em 1984, 35% dos adultos consumiam cigarros. Em 2013, esse número caíra para 15%. Informação e advertência produzem, a médio prazo, resultados melhores do que a criminalização. Aproximadamente, 63% das mulheres que se encontram encarceradas o foram por delitos relacionados às drogas. Vale dizer: atualmente, 1 em cada 2 mulheres e 1 em cada 4 homens presos no país estão atrás das grades por tráfico de drogas e o índice de reincidência é acima de 70%. Diz ainda que:

Por fim, há um outro problema: como não há critério objetivo para distinguir consumo de tráfico, no mundo real, a consequência prática mais comum, como noticiam [...], é que “ricos com pequenas quantidades são usuários, pobres são traficantes”. Terceira razão: a criminalização afeta a proteção da saúde pública. O sistema atual de Guerra às Drogas faz com que as preocupações com a saúde pública – que são o principal objetivo do controle de drogas – assuma uma posição secundária em relação às políticas de segurança pública e à aplicação da lei penal. A política de repressão penal exige recursos cada vez mais abundantes, drenando investimentos em políticas de prevenção, educação e tratamento de saúde. E o pior: a criminalização de condutas relacionadas ao consumo promove a exclusão e a marginalização dos usuários, dificultando o acesso a tratamentos. Como assinalou o antropólogo Rubem César Fernandes, diretor do Viva Rio: “O fato de o consumo de drogas ser criminalizado aproxima a população jovem do mundo do crime”. Portanto, ao contrário do que muitos creem, a criminalização não protege, mas antes compromete a saúde pública. [...] CONCLUSÃO: 1. Quase todo o mundo democrático e desenvolvido está abrandando a sua política em relação às drogas. Nos Estados Unidos, que lideraram a Guerra às Drogas, 27 dos 50 Estados já descriminalizaram o porte da maconha para uso recreativo ou medicinal, sendo que quatro deles (Oregon, Washington, Alaska e Colorado) legalizaram a comercialização.

Em Portugal, há mais de uma década, descriminalizou-se o porte de drogas para consumo pessoal. No caso da maconha, presume-se não se tratar de tráfico o porte de até 25 gramas. Após este período, constatou-se que (I) o consumo em geral não disparou (houve até diminuição entre os jovens); (II) houve um aumento de toxicodependentes em tratamento; e (III) houve redução da infecção de usuários de drogas pelo vírus HIV. Continua o Ministro dizendo:

É preciso não confundir moral com direito. Há coisas que a sociedade pode achar ruins, mas que nem por isso são ilícitas. Se um indivíduo, na solidão das suas noites, bebe até cair desmaiado na cama, isso não parece bom, mas não é ilícito. Se ele fumar meia carteira de cigarros entre o jantar e a hora de ir dormir, tampouco parece bom, mas não é ilícito. Pois digo eu: o mesmo vale se, em lugar de beber ou consumir cigarros, ele fumar um baseado. É ruim, mas não é papel do Estado se imiscuir nessa área. [...] O Estado pode, porém, limitar a liberdade individual para proteger direitos de terceiros ou determinados valores sociais. Pois bem: o indivíduo que fuma um cigarro de maconha na sua casa ou em outro ambiente privado não viola direitos de terceiros. Tampouco fere qualquer valor social. Nem mesmo a saúde pública, salvo em um sentido muito vago e remoto. Se este fosse um fundamento para proibição, o consumo de álcool deveria ser banido. E, por boas razões, não se cogita disso [...] punir com o direito penal é uma forma de autoritarismo e paternalismo que impede o indivíduo de fazer suas escolhas.

Vemos, portanto, como a decisão do ilustre Ministro corrobora, em vários aspectos, as questões neste trabalho levantadas. Ainda em seu voto, trouxe ainda questões como afetação ao princípio da lesividade, indicando que o principal bem jurídico lesado pelo consumo de maconha é a própria saúde individual do usuário, e não um bem jurídico alheio.

Abordou ainda a proporcionalidade, que inclui também, a verificação da adequação, necessidade e proveito da medida restritiva. A criminalização, no entanto, não parece adequada ao fim visado, que seria a proteção da saúde pública. Termina sua decisão afirmando que:

pelos mesmos fundamentos, declaro a inconstitucionalidade, por arrastamento, do § 1o do artigo 28 da Lei no 11.343/2006, o qual prevê que se submete às mesmas penas do caput, “quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica”.

Por fim, justifica que afirmar que a descriminalização trará impacto para a saúde pública não é verdade, pois, a experiência empírica diz o oposto: com a descriminalização, usuários e dependentes passam a poder se tratar.

É incabível alegar que a descriminalização aumentaria os riscos do trânsito com pessoas dirigindo intoxicadas. Este argumento foi enfatizado pelo eminente Deputado Federal do Rio Grande do Sul Osmar Terra. Cabe lembrar aqui que dirigir sob a influência de substância psicoativa é crime autônomo (Código de Trânsito, art. 302, § 2º). Não é preciso criminalizar o consumo de maconha para este fim.

Alguns afirmam que há grande inconsistência em descriminalizar o consumo e manter a criminalização da produção e da distribuição. A inconsistência de fato existe. Mas eventual legalização depende de atuação do Congresso. E não há soluções fáceis. Porém, prestar atenção no que se passa no Uruguai e nos estados americanos que legalizaram pode ser uma boa forma de ver como os resultados que a legalização produzirá.

Ementa do voto do Ilustre Ministro:

Ementa: DIREITO PENAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ART. 28 DA LEI Nº 11.343/2006. INCONSTITUCIONALIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE DROGAS PARA CONSUMO PESSOAL. VIOLAÇÃO AOS DIREITOS À INTIMIDADE, À VIDA PRIVADA E À AUTONOMIA, E AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.

  1. A descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal é medida constitucionalmente legítima, devido a razões jurídicas e pragmáticas.
  2. Entre as razões pragmáticas, incluem-se (i) o fracasso da atual política de drogas, (ii) o alto custo do encarceramento em massa para a sociedade, e (iii) os prejuízos à saúde pública.
  3. As razões jurídicas que justificam e legitimam a descriminalização são (i) o direito à privacidade, (ii) a autonomia individual, e (iii) a desproporcionalidade da punição de conduta que não afeta a esfera jurídica de terceiros, nem é meio idôneo para promover a saúde pública.
  4. Independentemente de qualquer juízo que se faça acerca da constitucionalidade da criminalização, impõe-se a determinação de um parâmetro objetivo capaz de distinguir consumo pessoal e tráfico de drogas. A ausência de critério dessa natureza produz um efeito discriminatório, na medida em que, na prática, ricos são tratados como usuários e pobres como traficantes.
  5. À luz dos estudos e critérios existentes e praticados no mundo, recomenda-se a adoção do critério seguido por Portugal, que, como regra geral, não considera tráfico a posse de até 25 gramas de Cannabis. No tocante ao cultivo de pequenas quantidades para consumo próprio, o limite proposto é de 6 plantas fêmeas.
  6. Os critérios indicados acima são meramente referenciais, de modo que o juiz não está impedido de considerar, no caso concreto, que quantidades superiores de droga sejam destinadas para uso próprio, nem que quantidades inferiores sejam valoradas como tráfico, estabelecendo-se nesta última hipótese um ônus argumentativo mais pesado para a acusação e órgãos julgadores. Em qualquer caso, tais referenciais deverão prevalecer até que o Congresso Nacional venha a prover a respeito.
  7. Provimento do recurso extraordinário e absolvição do recorrente, nos termos do art. 386, III, do Código de Processo Penal. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “É inconstitucional a tipificação das condutas previstas no artigo 28 da Lei no 11.343/2006, que criminalizam o porte de drogas para consumo pessoal. Para os fins da Lei nº 11.343/2006, será presumido usuário o indivíduo que estiver em posse de até 25 gramas de maconha ou de seis plantas fêmeas. O juiz poderá considerar, à luz do caso concreto, (i) a atipicidade de condutas que envolvam quantidades mais elevadas, pela destinação a uso próprio, e (ii) a caracterização das condutas previstas no art. 33 (tráfico) da mesma Lei mesmo na posse de quantidades menores de 25 gramas, estabelecendo-se nesta hipótese um ônus argumentativo mais pesado para a acusação e órgãos julgadores.” (Grifo Nosso)

5.2 VOTO DO MINISTRO GILMAR MENDES

Por sua vez, Mendes (2015), Ministro relator no julgamento do RE 635659 afirma que no caso agora em análise, o art. 28 é impugnado sob o enfoque de sua incompatibilidade com as garantias constitucionais da intimidade e da vida privada.

O tema em debate traz a lume contraposições acerca da proteção a direitos fundamentais. De um lado, o direito coletivo à saúde e à segurança; de outra parte, o direito à intimidade e à vida privada. Afirma o Ministro que:

nesse contexto, a tipificação penal de determinadas condutas pode conter-se no âmbito daquilo que se costuma denominar de discrição legislativa. Cabe ressaltar, todavia, que, nesse espaço de atuação, a liberdade do legislador estará sempre limitada pelo princípio da proporcionalidade, configurando a sua não observância inadmissível excesso de poder legislativo. A doutrina identifica como típicas manifestações de excesso no exercício do poder legiferante a contraditoriedade, a incongruência, a irrazoabilidade ou, em outras palavras, a inadequação entre meios e fins. [...] De um lado, a exigências de que as medidas interventivas se mostrem adequadas ao cumprimento dos objetivos pretendidos. De outra parte, o pressuposto de que nenhum meio menos gravoso revelar-se-ia igualmente eficaz para a consecução dos objetivos almejados. Em outros termos, o meio não será necessário se o objetivo pretendido puder ser alcançado com a adoção de medida que se revele, a um só tempo, adequada e menos onerosa. (Grifo Nosso)

Em relação aos crimes de perigo abstrato, afirma Mendes (2015) que, apesar da existência de ampla controvérsia doutrinária, os crimes de perigo abstrato podem ser identificados como aqueles em que não se exige nem a efetiva lesão ao bem jurídico protegido pela norma, nem a configuração do perigo em concreto a esse bem jurídico. Porém deve haver um cuidado específico na criação de crimes de perigo abstrato, pois, para o ilustre Ministro, é grande o risco de ofensa a lesividade e ofensividade:

O legislador formula, dessa forma, uma presunção absoluta a respeito da periculosidade de determinada conduta em relação ao bem jurídico que pretende proteger. O perigo, nesse sentido, não é concreto, mas apenas abstrato. Não é necessário, portanto, que, no caso concreto, a lesão ou o perigo de lesão venham a se efetivar. O delito estará consumado com a mera conduta descrita na lei penal. Por outro lado, não é difícil entender as características e os contornos da delicada relação entre os delitos de perigo abstrato e os princípios da lesividade ou ofensividade, os quais, por sua vez, estão intrinsecamente relacionados com o princípio da proporcionalidade. A atividade legislativa de produção de tipos de perigo abstrato deve, por isso, ser objeto de rígida fiscalização a respeito de sua constitucionalidade. [...] Todavia, deflui da própria política de drogas adotada que a criminalização do porte para uso pessoal não condiz com a realização dos fins almejados no que diz respeito a usuários e dependentes, voltados à atenção à saúde e à reinserção social, circunstância a denotar clara incongruência em todo o sistema. Na prática, porém, apesar do abrandamento das consequências penais da posse de drogas para consumo pessoal, a mera previsão da conduta como infração de natureza penal tem resultado em crescente estigmatização, neutralizando, com isso, os objetivos expressamente definidos no sistema nacional de políticas sobre drogas em relação a usuários e dependentes, em sintonia com políticas de redução de danos e de prevenção de riscos já bastante difundidas no plano internacional. Em contraste com esse entendimento, levanta-se a tese de que a incriminação do porte de droga para uso pessoal se justificaria em função da expansibilidade do perigo abstrato à saúde. Nesse contexto, a proteção da saúde coletiva dependeria da ausência de mercado para a traficância. Em outras palavras, não haveria tráfico se não houvesse consumo. Além disso, haveria uma relação necessária entre tráfico, consumo e outros delitos, como crimes contra o patrimônio e violência contra a pessoa. Temos em jogo, portanto, de um lado, o direito coletivo à saúde e à segurança públicas e, de outro lado, o direito à intimidade e à vida privada, que se qualificam, no caso da posse de drogas para consumo pessoal, em direito à autodeterminação. (Grifo Nosso)

No que diz respeito que a posse de drogas para consumo próprio afeta a saúde e segurança pública, continua o Ministro:

Na valoração da importância de determinado interesse coletivo como justificativa de tutela penal há de se exigir a demonstração do dano potencial associado à conduta objeto de incriminação. Em outras palavras, há que se verificar em que medida os riscos a que sujeitos os interesses coletivos podem justificar a conversão destes em objeto de proteção pelo direito penal. [...] E exemplifica justamente com o direito à saúde pública. Não cabe negar, que a saúde pública é um interesse coletivo que afeta cada indivíduo, mas há que se exigir um determinado grau de lesividade individual para que se possa justificar a intervenção do direito penal. Até agora não se tem afirmado, por exemplo, que o álcool e o tabaco afetam suficientemente a saúde pública a ponto de legitimar a criminalização de sua venda e consumo. [...] Não basta, assim, que a saúde seja, em abstrato, um bem social fundamental para que mereça proteção penal. [...] Incluem-se, assim, no bem jurídico “saúde”, por exemplo, desde as mais relevantes até as mais insignificantes manifestações quantitativas. A simples alusão a gêneros tão amplos, pouco serve, dessa forma, à delimitação daquilo passível de proteção por medidas de natureza penal. (Grifo Nosso)

Aludindo Hassemer, aduz, ainda, Mendes (2015) em sua decisão, dizendo que quem toma o direito penal não como ultima ratio, mas como prima ratio ou, até mesmo, como sola ratio, da política interna, torna as coisas muito mais fáceis e desiste, antecipadamente, das busca por medidas de ajuda de natureza mais próxima dos problemas.

Afigura-se claro, até aqui, que tanto o conceito de saúde pública, como, pelas mesmas razões a noção de segurança pública, apresentam-se despidos de suficiente valoração dos riscos a que sujeitos em decorrência de condutas circunscritas a posse de drogas para uso exclusivamente pessoal. A criminalização da posse de drogas “para consumo pessoal” afeta o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas diversas manifestações.

É sabido que as drogas causam prejuízos físicos e sociais ao seu consumidor. Ainda assim, dar tratamento criminal ao uso de drogas é medida que ofende, de forma desproporcional, o direito à vida privada e à autodeterminação. O uso privado de drogas é conduta que coloca em risco a pessoa do usuário. Ainda que o usuário adquira as drogas mediante contato com o traficante, não se pode imputar a ele os malefícios coletivos decorrentes da atividade ilícita. Esses efeitos estão muito afastados da conduta em si do usuário. A ligação é excessivamente remota para atribuir a ela efeitos criminais. Logo, esse resultado está fora do âmbito de imputação penal. A relevância criminal da posse para consumo pessoal dependeria, assim, da validade da incriminação da autolesão. E a autolesão é criminalmente irrelevante.

Segundo Marcelo Campos e Rodolfo Valente (Boletim, IBCRIM, outubro/2012, p. 3, apud MENDES, 2015), verbis:

[...] de fato, há outros meios alternativos à criminalização, adequados aos fins propostos. A própria lei 11.343/60 traz profícuas diretrizes que, antagonicamente, são tolhidas pela política repressiva [...].Entretanto, apesar de ser regulamentada pela Portaria 1.028/2005 do Ministério da Saúde, a política de redução de danos segue desprestigiada e sem efetividade diante do óbice representado pela primazia da tutela penal.

Interessante observar no que diz respeito ao tráfico de drogas o posicionamento do Ministro, pois, remanesce, contudo, a possibilidade de prisão pela posse, na forma do art. 50, caput, do mesmo diploma legal, quando o policial entender que a conduta se qualifica como tráfico, nos termos do art. 33 da referida Lei.

Diante dessa possibilidade, ou seja, quando o policial entender que não se trata de posse para uso pessoal, passível de simples notificação, nos termos do art. 48, §2º, e realizar a prisão em fragrante, temos que a imediata apresentação do preso ao juiz conferiria maior segurança na distinção entre traficante e usuário, até que se concebam, em normas especificas o que se seria recomendável, critérios revestidos de maior objetividade. Afirma ainda:

A norma do art. 28 da Lei 11.343/06 é construída como uma regra especial em relação ao art. 33. Contém os mesmos elementos do tráfico e acrescenta mais um – a finalidade de consumo pessoal. Disso resulta a impressão – falsa – de que a demonstração da finalidade é ônus da defesa. À acusação não seria necessário demonstrar qualquer finalidade para enquadramento no tráfico pela singela razão de que o tipo penal não enuncia finalidade. A presunção de não culpabilidade – art. 5º, LVII, da CF – não tolera que a finalidade diversa do consumo pessoal seja legalmente presumida. A finalidade é um elemento-chave para a definição do tráfico.

A cadeia de produção e consumo de drogas é orientada em direção ao usuário. Ou seja, uma pessoa que é flagrada na posse de drogas pode, muito bem, ter o propósito de consumir. Levando esses fatores em consideração, tenho que a avaliação da qualidade da prisão em flagrante pelo tráfico de drogas e da necessidade de sua conversão em prisão preventiva deve ser objeto de especial análise pelo Poder Judiciário. A apresentação do preso ao juiz, em curto prazo, para que o magistrado possa avaliar as condições em que foi realizada a prisão e se é de fato imprescindível a sua conversão em prisão preventiva é providência imprescindível. (Grifo Nosso) 

Por fim, seu voto encontra-se assim reproduzido (dispositivo):

Pelo exposto, dou provimento ao recurso extraordinário para:

1 – Declarar a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 28 da Lei 11.343/2006, de forma a afastar do referido dispositivo todo e qualquer efeito de natureza penal. Todavia, restam mantidas, no que couber, até o advento de legislação específica, as medidas ali previstas, com natureza administrativa;

2 – Conferir, por dependência lógica, interpretação conforme à Constituição ao art. 48, §§1º e 2º, da Lei 11.343/2006, no sentido de que, tratando-se de conduta prevista no art. 28 da referida Lei, o autor do fato será apenas notificado a comparecer em juízo;

3 – Conferir, por dependência lógica, interpretação conforme à Constituição ao art. 50, caput, da Lei 11.343/06, no sentido de que, na prisão em flagrante por tráfico de droga, o preso deve, como condição de validade da conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, ser imediatamente apresentado ao juiz;

4 – Absolver o acusado, por atipicidade da conduta; e

5 – Determinar ao Conselho Nacional de Justiça as seguintes providências:

a) Diligenciar, no prazo de seis meses, a contar desta decisão, por meio de articulação com Tribunais de Justiça, Conselho Nacional do Ministério Público, Ministério da Justiça e Ministério da Saúde, sem prejuízo de outros órgãos, os encaminhamentos necessários à aplicação, no que couber, das medidas previstas no art. 28 da Lei 11.343/2006, em procedimento cível, com ênfase em atuação de caráter multidisciplinar;

b) Articulação, no prazo de seis meses, a contar desta decisão, entre os serviços e organizações que atuam em atividades de prevenção do uso indevido de drogas e da rede de atenção a usuários e dependentes, por meio de projetos pedagógicos e campanhas institucionais, entre outras medidas, com estratégias preventivas e de recuperação adequadas às especificidades socioculturais dos diversos grupos de usuários e das diferentes drogas utilizadas.

c) Regulamentar, no prazo de seis meses, a audiência de apresentação do preso ao juiz determinada nesta decisão, com o respectivo monitoramento;

d) Apresentar a esta Corte, a cada seis meses, relatório das providências determinadas nesta decisão e resultados obtidos, até ulterior deliberação.

É como voto. (Grifo Nosso)

5.3 VOTO DO MINISTRO EDSON FACCHIN

Facchin (2015) afirma que é um paradoxo desassossegador perfilhar descriminalização do uso de drogas cuja produção e comercialização tipificam, ao mesmo tempo, o crime de tráfico. Isso porque se a retirada do estigma criminal permite que se dê a devida atenção ao bem jurídico tutelado e ao tratamento do usuário, sempre conviver-se-á com o indelével gravame de vê-lo enredado no tecido criminoso de distribuição da droga.

Para o Ministro, a manutenção da proibição do tráfico simultaneamente à descriminalização, não obstante a ausência de dados indisputáveis sobre isso, apenas abona estímulo à traficância, seja pela lucratividade, seja por uma possível ampliação do mercado de consumo.

Diz ainda que é preciso deixar nítido que o consumo de drogas pode acarretar sérios transtornos e danos físicos e psíquicos, eventualmente até mesmo a morte de quem as consome. Além disso, também se associam muitas vezes ao consumo de drogas outros danos potenciais como o cometimento de delitos para a manutenção do eventual vício.

Invocam-se, em geral, três argumentos independentes para punir o consumo pessoal de drogas: um argumento perfeccionista, um argumento paternalista e, por fim, um argumento de defesa da sociedade. Segundo o Ministro:

A criminalização do porte de drogas para uso pessoal, em primeiro lugar, detém-se em um argumento perfeccionista quando justifica o tratamento penal do consumo baseado na reprovabilidade moral dessa conduta. Vale dizer, o uso de drogas é considerado um comportamento moralmente reprovável e, por isso, deve ser combatido por meio de uma resposta penal do Estado. Tal perfeccionismo busca impor um padrão de conduta individual aos cidadãos, estabelecendo, assim, de forma apriorística um modelo de moral privada, individual, que se julga digno e adequado. (Grifo Nosso)

Justifica Facchin que, este primeiro argumento é inconstitucional por violar a autonomia privada. Neste trabalho, abordamos a inconstitucionalidade deste argumento, não por violar autonomia privada, conforme o Ministro, mas por ferir o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, que impede tutela da moral em sede de direito penal. Importante salientar que não se discorda da violação à autonomia privada, mas que, a alegação de ferir princípios, já basta por si para declaração de inconstitucionalidade. O segundo argumento assim aduz:

A criminalização do porte de drogas para uso pessoal, em segundo lugar, se atém em um argumento paternalista quando justifica o tratamento penal do consumo baseado na reprovação, no desincentivo e na prevenção geral que as respostas penais deveriam gerar. Essa tessitura não busca impor um modelo de vida (supostamente) decente como faz o perfeccionismo, mas sim proteger as pessoas contra os danos que o consumo de drogas pode causar a elas. No caso do consumo de drogas, proteger o cidadão dos males causados pelo consumo de drogas necessita exigir uma resposta informativa, com campanhas educativas e de prevenção, criação e execução de políticas públicas de atenção e cuidado com a saúde daqueles que fazem uso abusivo de drogas, estabelecer medidas que desalentem o consumo de drogas, mas, segundo o autor, nunca a reprovação penal pela conduta autodestrutiva do cidadão. À ilicitude se dirigem sanções, não necessariamente penais. (Grifo Nosso)

Percebemos assim que para fins de educação, campanhas educativas, políticas públicas, além da própria família e sociedade podem fazer este papel no lugar do direito penal, logo, não serve o direito penal para fins de paternalismo (proteger as pessoas contra elas mesmo).

Como último argumento sustenta-se que:

Por fim, a criminalização do porte de drogas para uso topa em um argumento de defesa da sociedade quando justifica o tratamento penal do consumo baseado na proteção dos demais cidadãos (incluída aí a família como instituição) que podem sofrer os efeitos ou consequências dos atos de quem usa drogas. No entanto, objeta Santiago Nino, para prevenir e reprovar as eventuais condutas excessivas dos usuários de drogas, o Direito Penal já oferece uma série de outras sanções. O usuário de drogas que furta ou rouba para sustentar seu vício deve ser punido pelas ações delituosas de furto ou roubo, mas não pelo uso em si da droga, argumenta Santiago Nino. Vale dizer, o que pode causar mal aos demais cidadãos são as condutas eventualmente derivadas do uso de drogas, contudo não o uso de drogas por si só. Essas condutas derivadas que possam causar dano já são todas elas objeto de previsão e tratamento pelo Direito Penal. Dessa forma, a diferença entre ações privadas e ações que possam ofender a moral pública por afronta aos bens de terceiros seria insustentável, pois toda e qualquer ação, seja ela privada ou pública, teria o potencial de se desdobrar em outra ação reprovável. (Grifo Nosso)

Diante disso, emerge a crítica de Nino (apud FACCHIN, 2015), pois, criminalizar o porte de droga para consumo próprio representa a imposição de um padrão moral individual que significa uma proteção excessiva que, ao fim e ao cabo, não protege e nem previne que o sujeito se drogue (correspondendo a um paternalismo indevido e ineficaz) e, por fim, significa uma falsa proteção da sociedade, dado que já há respostas penais previstas para as even tuais condutas ofensivas que o consumidor de drogas possa realizar.

Como premissa para o exercício de tal controle de constitucionalidade, a tomada em conta do fundamento da dignidade da pessoa humana em sua matriz kantiana e republicana, impede, assim, que a tutela penal atue tendo por escopo a introjeção de valores morais individuais de conduta determinadas ou a imposição de comportamentos para além daqueles considerados concretamente lesivos a terceiros.

Com efeito, a posse para uso pessoal, embora tipifique a ação, incide sobre conduta que, não raro, é condição essencial da pessoa, e a vetor constitucional que não autoriza a penalização da personalidade. No que tange às limitações dos direitos fundamentais, é preciso que eventual restrição encontre fundamentação constitucional.

Nessa diretriz, alberga-se o princípio da tipicidade, a exigir reserva de lei para normas penais. Considerando que a tipicidade decorre da teoria sobre os direitos fundamentais, ao legislador não compete apenas observar a reserva de lei para tipificar determinada conduta, como também deve demonstrar que pela incriminação outro direito fundamental será protegido.

A sanção penal é, assim, tão-só uma das formas de se proteger os bens jurídicos. Consubstanciando a mais grave restrição na autonomia dos cidadãos, cumpre, portanto, avaliar se ela é adequadamente posta. E é aqui que tem assento a proporcionalidade. Especificamente em relação à coerção penal, poder-se-ia apontar, na linha do que indica Claus Roxin, serem ilegítimas as incriminações de: motivações ideológicas; autolesão; tabus; fins extrapenais; e abstrações incapazes de constituir bens jurídicos.

Essas considerações parecem indicar que, em vista da ofensa a um bem individual, não se pode dar ensejo à criminalização. Esse norte tem sentido especialmente para o adicto, usuário dependente de droga; impende ajudar o usuário que queira se livrar do poder criminoso da dependência.

Delineou, ainda, o ilustre Ministro sobre a constitucionalidade, ao seu modo de ver, quanto aos crimes de perigo abstrato e sobre a questão que usuário é dependente, de modo que merece tratamento e não intervenção penal:

Relevante, por conseguinte, é a resposta de informação, educação, atenção e cuidado da saúde dos usuários de drogas. Vê-se indispensável, assim, a atuação do Poder Público, da sociedade, das famílias em sua dimensão expandida, das entidades religiosas e de benemerência, no incremento das redes de atenção e cuidado à saúde das pessoas que abusam de substâncias e que causam dependência, e especialmente no campo da prevenção e proteção de crianças e adolescentes. Ressalte-se que se deve colocar no leiaute dos debates sobre as causas da drogadição o circuito que vai da produção ao consumo de drogas no Brasil. E isso especialmente para a hipótese dos autos. Tal vazio respectivo merece ser preenchido por ato legislativo, no catálogo de sua competência. A regulamentação de toda a sequência que liga a produção ao consumo da droga em questão não cabe, nem aqui ou agora, ao Poder Judiciário, mas sim ao poder constitucional e democraticamente responsável para levar a diante tal mister sob pena de vácuo inconstitucional e mora legislativa.

Não deve o STF em sede deste recurso, segundo o Ministro, preencher o vazio normativo que daí pode decorrer. Há, nesse sentido, tanto os limites da controvérsia constitucional posta , e a necessidade de adstrição a estes, quanto os confins democráticos que se põem ao Judiciário. No entanto, cabe reconhecer, sem prejuízo da nulidade constitucional adiante chancelada, que o usuário, apesar da autodeterminação que pode lhe assistir, fomenta, ainda que reflexamente, o tráfico. Este, pois, é o destinatário das causas cujos efeitos estão em pauta.

Dessa forma, sendo injurídico o uso e porte para consumo da droga objeto do presente recurso (maconha), o enfrentamento do tráfico mira, por conseguinte, ato porvindouro, ou seja, a devida regulamentação legislativa. O desafio ao legislador e à sociedade é definir se a autorização lícita, considerando para tanto a droga vertida no caso concreto, regulamentada e restrita, pode contribuir para principiar a solver o germe de tais questões; meias soluções são apenas remédios efêmeros para problemas graves.

Há, ainda, outro horizonte relevante: estabelecer parâmetros objetivos de natureza e de quantidade que possibilitem a diferenciação entre o uso e o tráfico. A distinção entre usuário e traficante atravessa a necessária diferenciação entre tráfico e uso, e parece exigir, inevitavelmente, que se adotem parâmetros objetivos de quantidade que caracterizem o uso de droga.

Restou assim sua decisão:

Diante do exposto, voto pelo provimento parcial do recurso nos seguintes termos, para:

(I) Declarar a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343, sem redução de texto, específica para situação que, tal como se deu no caso concreto, apresente conduta que descrita no tipo legal tiver exclusivamente como objeto material a droga aqui em pauta;

(II) Manter, nos termos da atual legislação e regulamento, a proibição inclusive do uso e do porte para consumo pessoal de todas as demais drogas ilícitas;

(III) Manter a tipificação criminal das condutas relacionadas à produção e à comercialização da droga objeto do presente recurso (maconha) e concomitantemente declarar neste ato a inconstitucionalidade progressiva dessa tipificação das condutas relacionadas à produção e à comercialização da droga objeto do presente recurso (maconha) até que sobrevenha a devida regulamentação legislativa, permanecendo nesse ínterim hígidas as tipificações constantes do título IV, especialmente criminais do art. 33, e dispositivos conexos da Lei 11.343;

(IV) Declarar como atribuição legislativa o estabelecimento de quantidades mínimas que sirvam de parâmetro para diferenciar usuário e traficante, e determinar aos órgãos do Poder Executivo, nominados neste voto (SENAD e CNPCP), aos quais incumbem a elaboração e a execução de políticas públicas sobre drogas, que exerçam suas competências e até que sobrevenha a legislação específica, emitam, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, a contar da data deste julgamento, provisórios parâmetros diferenciadores indicativos para serem considerados iuris tantum no caso concreto;

(V) Absolver o recorrente por atipicidade da conduta, nos termos do art. 386, III, do Código de Processo Penal.

(VI) E por derradeiro, em face do interesse público relevante, por entender necessária, inclusive no âmbito do STF, a manutenção e ampliação do debate com pessoas e entidades portadoras de experiência e autoridade nesta matéria, propor ao Plenário, nos termos do inciso V do artigo 7º do RISTF, a criação de um Observatório Judicial sobre Drogas na forma de comissão temporária, a ser designada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, para o fim de, à luz do inciso III do artigo 30 do RISTF, acompanhar os efeitos da deliberação deste Tribunal neste caso, especialmente em relação à diferenciação entre usuário e traficante, e à necessária regulamentação, bem como auscultar instituições, estudiosos, pesquisadores, cientistas, médicos, psiquiatras, psicólogos, comunidades terapêuticas, representantes de órgãos governamentais, membros de comunidades tradicionais, entidades de todas as crenças, entre outros, e apresentar relato na forma de subsídio e sistematização.

É como voto.

Vemos, portanto, que as decisões dos Ministros que já deram seu voto, em maior ou menor medida, vêm ao encontro do dito neste trabalho, corroborando a tese que a proibição restou fracassada. Alguns com posicionamentos mais cautelosos, pois sempre foi um tabu a questão das drogas, outros mais despojados, o fato é que novos modelos precisam ser implantados no lugar da proibição.

Assim, abaixo, uma breve análise de possíveis modelos de legalização que a sociedade brasileira deve discutir como modelos alternativos à proibição, pois, não basta descriminalizar, este é apenas um passo, pois, somente a legalização poderá ter o condão de destruir o poder do narcotráfico.


* Artigo elaborado a partir da monografia apresentada para obtenção do título de bacharel em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL. 06/2016.


Rodrigo Darela de Souza. . Rodrigo Darela de Souza é Graduado em História, Graduado em Direito, Especializado em Direito Penal e Processo Penal. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Marcha da Maconha - Porto Alegre (RS) // Foto de: Ninja Midia // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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