Drogas, por que legalizar? A interferência do Direito Penal na questão das drogas. Parte 3 – Histórico das drogas

10/07/2016

Por Rodrigo Darela de Souza - 10/07/2016

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3: Drogas, Histórico da proibição 

Percebemos claramente que as drogas vêm sendo tratadas à luz do direito penal, sob a influência dos EUA, desde início do século passado. De acordo com Pedrinha (2013) afirma-se que, em sintonia com o modelo internacional de combate às drogas, capitaneado pelos Estados Unidos, o Brasil desenvolve ações de combate e punição para reprimir o tráfico.

A visão de que as drogas seriam tanto um problema de saúde quanto de segurança pública, desenvolvida pelos tratados internacionais sob a influência americana da primeira metade do século passado, foi paulatinamente introduzida na legislação nacional. Até que, em 1940, o Código Penal confirmou a opção do Brasil de não criminalizar o consumo.

Pedrinha (2013) informa ainda que se estabeleceu uma “concepção sanitária do controle das drogas”, pela qual a dependência é considerada doença e, ao contrário dos traficantes, os usuários não eram criminalizados, mas estavam submetidos a rigoroso tratamento, com internação obrigatória.

Porém, o regime militar de 1964 e a Lei de Segurança Nacional deslocaram o foco do modelo sanitário para o modelo bélico de política criminal, que equiparava os traficantes aos inimigos internos do regime (note que se dá no mesmo momento em que Nixon – Presidente dos EUA, declara a sua “guerra às drogas”).

Não por acaso, a juventude associou o consumo de drogas à luta pela liberdade. Nesse contexto, da Europa às Américas, a partir da década de 60, a droga passou a ter uma conotação libertária, associada às manifestações políticas democráticas, aos movimentos contestatórios, à contracultura, especialmente as drogas psicodélicas, como maconha e LSD.

Finalmente, a Constituição de 1988 determinou que o tráfico de drogas é crime inafiançável e insuscetível de graça e anistia. Em seguida, a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) proibiu o indulto e a liberdade provisória e dobrou os prazos processuais, com o objetivo de aumentar a duração da prisão provisória. A Lei de Drogas (Lei 11.343/06) eliminou a pena de prisão para o usuário e o dependente, ou seja, para aquele que tem droga ou a planta para consumo pessoal.

As discussões em torno das leis que tratam do tráfico e dependência de drogas continuam a ser feitas no Congresso, envolvendo ainda aspectos como o aumento de impostos e o controle do álcool e do cigarro.

Em reportagem na revista de História, Pelli (2011) afirma que um paralelo possível e sempre citado com a história das drogas é a trajetória dos medicamentos. As drogas legais que alteram a consciência, é interessante ressaltar, estão sempre entre as mais vendidas, mesmo com todas as exigências para a sua compra. O ansiolítico Rivotril ficou em segundo lugar na lista de 2010 no Brasil, por exemplo.

Carneiro (2011) cita o que para ele são as razões para o sucesso dessas vendagens:

O atual sistema de patentes, que prioriza as grandes companhias farmacêuticas, em detrimento do pequeno produtor que nunca fez segredo de suas descobertas; o monopólio médico da prescrição, que deixa na mão de uma classe específica o poder de receitar este ou aquele remédio; e o mercado publicitário voltado tanto para quem toma como para quem ministra esses medicamentos, criando ou, pelo menos, reforçando novas demandas e necessidades. Sua outra contrapartida indispensável (para o crescimento dessas vendas de remédios legais) é a proibição concomitante do uso de diversas plantas psicoativas de uso tradicional – como a canábis, a papoula e a coca. As funções psicoterapêuticas que estas têm em medicinas tradicionais passaram a ser substituídas por pílulas farmacêuticas, afirmando que o maior número de usuários e dependentes de drogas na sociedade contemporânea são os consumidores de produtos da indústria farmacêutica.

Cesar (apud PELLI, 2011), acredita que as pessoas sempre vão fazer uso de substâncias psicoativas, independentemente de serem liberadas ou não. Por isso, ele sugere que, em vez de proibir, devemos tentar “reduzir riscos”. Vejamos, a título de exemplo, o álcool, que é uma droga e seu uso abusivo faz mal, mas, hoje, há uma regulação e são raros os comerciantes que vendem bebidas para crianças e adolescentes, principalmente para serem consumidos em seus estabelecimentos.

No entanto, qualquer criança ou adolescente pode comprar droga com um traficante, pois sua venda não é regulada, argumentando, porém, que a descriminalização do uso pode acarretar o acesso de um número maior de pessoas a determinadas drogas, e sugerindo que haja uma política integrada para diminuir a demanda.

Carneiro (2011) é ainda mais revolucionário: além da legalização de todas as drogas, ele sugere o controle estatal da produção e do comércio. O conjunto das drogas legalizadas acabaria com os efeitos nefastos do chamado narcotráfico, encerraria a guerra contra as drogas, libertaria os prisioneiros dessa guerra: em torno de metade da população carcerária tanto nos EUA como no Brasil. Reduzir-se-iam os danos sociais dos usos problemáticos de drogas.

Vemos que, desde a época das grandes navegações, os europeus passam a ter contato com vários tipos de drogas, que são utilizadas não somente como terapêuticas, mas também como recreativas. Porém, com o advento da revolução industrial e as revoluções burguesas, as drogas passaram a ter conotação mercadológica. Silva (2011) assim aduz:

Os europeus entraram em contato com um grande número de substâncias psicoativas desde as Grandes Navegações (século XVI), e as introduziram, progressivamente, em suas sociedades com finalidades médicas ou recreativas. No século XIX, Europa e Estados Unidos passaram a conviver com grande variedade de novas drogas, com as quais tinham pouca ou nenhuma identificação cultural. Paulatinamente, da expansão européia à revolução industrial, as substâncias psicoativas deixaram de ser ministradas segundo preceitos culturais, ritualísticos e litúrgicos, para se converterem em mercadorias, bens de consumo. O marco definitivo desse processo foram as Guerras do Ópio (1839 e 1865), pelas quais os ingleses, que declararam guerra à China em favor do "livre comércio", garantiram o monopólio internacional, consolidaram o domínio no Extremo Oriente e implementaram a prática comercial de substâncias psicoativas em larga escala.

Continua mesmo autor dizendo:

Os Estados Unidos foi o principal expoente na cruzada moral contra o consumo de drogas. Passaram a tentar, em nível internacional, controlar o comércio de ópio para fins não medicinais. Haveria, por parte dos americanos, dois motivos, que se sobreporiam aos aspectos sanitários: adaptar os imigrantes do século XIX ao estereótipo moral da elite anglo-saxônica protestante, penalizando os desviantes; e conquistar espaço de manobra e poder econômico nos mercados do oriente, então dominado pelos ingleses. A pressão americana faz com que em 1909, representantes de países com colônias no Oriente e na Pérsia se reunissem em Shangai na Conferência Internacional do Ópio. Posteriormente, realizou-se em 1911 a Primeira Conferência Internacional do Ópio, em Haia. Dessa conferência resultou a "Convenção do Ópio", em 1912, pela qual os países signatários criaram o compromisso de tomar medidas de controle da comercialização da morfina, heroína e cocaína nos seus próprios sistemas legais. Vale ressaltar que outras substâncias, como a cocaína, foram adicionadas devido a uma pressão inglesa, para que o ônus econômico da proibição recaísse também sobre outros países (França, Holanda, Alemanha), que estavam tendo lucros com o comércio da cocaína através da emergente indústria farmacêutica.

Durante todo século XX vamos ver, portanto, por influência americana, um recrudescimento cada vez maior no combate às drogas. No mesmo entendimento de Pedrinha, Silva (2011) também afirma que:

[...] com o golpe militar de 1964, criaram-se as condições para a implantação daquilo que Nilo Batista batizou de modelo bélico, com o ingresso definitivo do Brasil no cenário internacional de combate às drogas. Sobrando o modelo sanitário para quem se encaixasse no estereótipo da dependência, isto é, os jovens de classe média e alta. É necessária uma breve análise do contexto histórico que favoreceu a mudança do modelo sanitário para o modelo bélico. Estava-se na época da "guerra fria", com uma aliança de setores militares e industriais para a qual a iminência da guerra era condição de desenvolvimento. Havia gastos bilionários com armamentos por parte dos dois blocos antagônicos (Estados Unidos e União Soviética), sendo fundamental para ambos a militarização das relações internacionais e também em nível interno. Com o suporte ideológico da doutrina de segurança nacional, criou-se a figura do inimigo interno que transbordou os limites da Guerra Fria, perdurando até hoje, antes os criminosos políticos, depois os comuns. Por outro lado, a década de 60 era a década dos movimentos de contracultura, como os "hippies", dos movimentos de protesto político, como as guerrilhas na América Latina. Especialmente, era o momento do estouro da droga, aumentando o consumo da maconha também entre jovens de classe média e alta, e estourava também a indústria farmacêutica, que criou drogas sintéticas, como o LSD. Como o consumo já não era apenas dos guetos, passou a se mostrar um problema moral, uma "luta entre o bem e o mal". O mal, representado pelo pequeno distribuidor, vindo dos guetos, que incitaria o consumo, qualificado como delinquente. O bem, pelo consumidor, "filho de boa família", corrompido pelos traficantes, qualificado como doente/dependente, merecendo tratamento por médicos, psicólogo e assistente social. O consumo de substâncias psicoativas passa a ser tratado como questão de segurança nacional, uma vez que já não se podia aceitar que tantos jovens americanos fossem desprovidos de virtudes. Assim, surgem os discursos, absorvidos no âmbito jurídico, sustentando que a generalização do contato de jovens com drogas devia ser compreendida, no quadro da guerra fria, como uma estratégia do bloco comunista, para solapar as bases morais da civilização cristã ocidental, e que o enfrentamento da questão devia valer-se de métodos e dispositivos militares.

Como se vê, usuário de drogas é visto como alguém sem “virtudes”, ao contrário do usuário de drogas “lícitas”, como o álcool por exemplo. No mais, chega-se ao absurdo de comparar o uso das drogas como estratégia comunista para desestabilizar “os bons costumes da civilização cristã”. Essa visão dualista entre bem e mal é típico do momento vivido no período da Guerra Fria, em que os ânimos estavam aflorados e, em muitas das vezes, fugia da racionalidade essa disputa ideológica.

A visão dualista é equivocada, pois prega valores de uma sociedade como superior aos valores de outra. É um desrespeito silencioso aos valores alheios, e na questão das drogas não é diferente, pois, drogas como o álcool, que representa índice altíssimo de morte, continuam lícitas por mero valor moral, enquanto várias drogas ilícitas como maconha, por exemplo, permanecem na ilicitude por não pertencer aos valores dessa sociedade dos “bons costumes”.

No mais, percebe-se então que a raiz do tratamento do tráfico com um viés em direito penal do inimigo tem raízes históricas na Guerra Fria. Vislumbra-se ainda, que os jovens de classe média alta que são usuários, seriam, na verdade, “vítimas” desses “monstros” que vendem tais produtos com a finalidade de desestabilizar os valores daquela.

Entra em curso, assim, dentro dessa visão dualista, um conceito de países-vítimas e países-agressores dentro da perspectiva das drogas. Desta forma, países como Colômbia, Bolívia e China são vistos como países produtores (países-agressores), enquanto EUA e países da Europa Ocidental seriam países-vítimas. Surge então a globalização do combate às drogas capitaneado pelos EUA. Silva (2011) complementa dizendo:

Reunia-se o elemento religioso-moral com o elemento bélico com cada vez mais verbas para o capitalismo industrial de guerra, que resulta numa "guerra santa" contra as drogas, que tem a vantagem de não ter restrições nem padrões regulativos, com os fins justificando os meios.

Além das questões históricas, percebemos também a questão econômica. As indústrias farmacêuticas lucram somas vultosas, movimentam uma economia bilionária que, dentro da perspectiva de mercado, produz as drogas que podem ser vendidas, desde que se beneficiem desse mercado que vai do médico (que prescreve) ao produtor.

Essa realidade é diferente quanto às drogas ilícitas, como derivados da cannábis, papoula e coca, pois estas não estão controladas pelas indústrias farmacêuticas, o que as torna uma “ameaça” ao monopólio desse grande mercado, afrontando interesses.

A dependência de drogas lícitas torna-se cada dia maior. Só nos anos de 2008 e 2009, segundo Carneiro (2011), o segundo medicamento mais vendido no Brasil foi o Rivotril. A dependência de remédios, uma forma de consumo compulsivo, às vezes chamada popularmente de hipocondria, é uma característica marcante da relação das pessoas com as drogas. Por serem, por vezes, receitadas por um médico, são chamadas de “remédios”, mas o seu resultado é exatamente o mesmo de qualquer outro consumo compulsivo, podendo levar a efeitos danosos para o organismo e à dependência e tolerância.

No aspecto político, com o fim das ditaduras latino-americanas apoiadas pelos EUA e o fim da Guerra Fria, era necessário um novo motivo para justificar a intervenção norte-americana no plano internacional, um novo inimigo deveria ser eleito.

O vácuo deixado pela queda progressiva da ameaça comunista seria ocupado pelo narcotráfico, um novo perigo identificado pelo governo norte-americano. Assim seria possível ocupar a Amazônia, e ter fuzileiros e conselheiros na Colômbia, por exemplo. O discurso da segurança nacional é deslocado para esse novo inimigo.

Numa perspectiva psicológica, as drogas, em muitas das vezes, são utilizadas como forma de fuga da realidade, consequência talvez das dificuldades de viver no mundo moderno frente à pressão social (família, trabalho etc.). Dessa forma, as drogas em sentido amplo (lícitas e ilícitas), são utilizadas por algumas pessoas para fugirem, mesmo que por instantes, das pressões sociais existentes.

Portanto, as drogas não seriam necessariamente o problema, mas sim, o sintoma do problema, de modo que a dependência, em muita das vezes, é obtida pelo enorme grau de problema social que um determinado indivíduo possui e, encontra nas drogas, uma rota de fuga aos seus problemas, como se esta tivesse o condão de excluir os problemas pelos quais este indivíduo está passando.

É interessante notar, ante-exposto, que vários foram os motivos para a proibição, mas que, em nenhum momento, foi sequer comentada a proteção da saúde pública, de modo que esta nunca foi a prioridade da proibição, apenas escudo protetivo de outras finalidades. Isso se dá, porque de acordo com o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, esses outros objetivos da proibição jamais poderiam ser objeto de tutela penal, assim, a “proteção” da saúde pública era a alternativa para criminalizar tal conduta.

Em 2006 temos então a edição da lei 11.343/06, que dá um novo enfoque à questão das drogas, aplicando modelo de “despenalização” (segundo STF) do usuário e penas mais altas ao traficante. Na verdade, trata-se de uma nova roupagem a um velho modelo. No próximo artigo, aspectos da referida lei.


* Artigo elaborado a partir da monografia apresentada para obtenção do título de bacharel em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL. 06/2016.


Rodrigo Darela de Souza. . Rodrigo Darela de Souza é Graduado em História, Graduado em Direito, Especializado em Direito Penal e Processo Penal. . .


Imagem Ilustrativa do Post: French Inhale // Foto de: Chuck Grimmett // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/cagrimmett/6308268996

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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