Drogas, por que legalizar? A interferência do Direito Penal na questão das drogas. Parte 1 – Justificativa e Teorias Penais (Direito Penal do Inimigo e Abolicionismo Penal)

08/07/2016

Por Rodrigo Darela de Souza - 08/07/2016

Leia também: Parte 2, Parte 3, Parte 4Parte 5Parte 6, Parte 7Parte 8, Parte 9

O presente artigo busca apresentar, de forma muito resumida, a nefasta interferência do Direito Penal na questão das drogas, tendo a proibição criado o traficante e toda criminalidade correlata, culminando direta ou indiretamente, na maioria dos crimes cometidos no território nacional. Dessa forma, a legalização, tendo, nesse trabalho, o marco teórico do Direito Penal Mínimo e a Teoria da Proteção de Bens Jurídicos, poderia proporcionar o efetivo combate ao narcotráfico, tornando possível o fim da guerra às drogas, que coloca todos num estado de guerra civil não declarada, com mortes de todos os lados (traficantes, policiais, inocentes..), permitindo uma nova política criminal acerca do assunto. O artigo será dividido em partes, de modo que cada artigo corresponderá a uma parte apenas. Abaixo a configuração do artigo:

Nesta parte 1 do artigo, abordaremos a justificativa do presente trabalho, além das teorias penais como fonte de fundamentação de elaboração de políticas criminais. Será estudado o abolicionismo penal e o direito penal do inimigo.

Na parte 2, o marco teórico penal deste trabalho como pressuposto da legalização: o minimalismo penal.

Na Parte 3, abordaremos a história das drogas e o porquê de sua proibição, a fim de demonstrar que nunca teve o direito penal, na tutela das drogas, o objetivo primordial da proteção da saúde pública, mas que esta sempre foi utilizada como escudo protetivo de outras finalidades.

Na parte 4, iremos abordar o julgado anterior do STF (RE430105) que pugnava pela constitucionalidade do art. 28 da lei 11.343/06, de modo que procuramos demonstrar as incoerências deste julgado.

Na parte 5, traremos um breve resumo dos votos dos três Ministros que já proferiram seu voto no RE635659 (que está sendo analisado atualmente), julgando inconstitucional a tutela penal no porte de drogas para consumo pessoal.

Na parte 6, apresentamos a problemática das drogas pelo mundo e questões debatidas atualmente.

Na parte 7, tratamos do direito penal do inimigo e o tratamento do traficante como inimigo, além da criação do traficante com a proibição.

Na parte 8, trouxemos argumentos favoráveis a legalização e sua relação com o Minimalismo Penal, além de possíveis modelos de legalização.

Na parte 9, abordamos a conclusão e referências utilizadas na pesquisa do trabalho monográfico, que aqui, resumidamente, trouxemos na forma de artigos. 

1. Justificativa:

O presente trabalho busca abordar um tema atualmente muito discutido, que vai desde conversas informais, a debates presidenciais, que é a mudança de paradigma no combate às drogas. Apesar de ainda ser um tabu, o tema conquista espaços cada vez maiores, tendo em vista o aumento da criminalidade relacionada ao tema, incluindo a presença de menores. A repercussão aumentou ainda mais com o RE 635.659 no STF, que, atualmente, está discutindo acerca da descriminalização contida no art.28 da Lei 11.343 (Lei de Drogas).

A criminalidade aumenta, e a presença de menores em crimes direto ou correlatos ao tráfico de drogas aumenta concomitantemente, demonstrando um fracasso da política criminal utilizada. Porém, até neste início de século, por mais que o fracasso da política proibicionista fosse uma realidade não apenas no Brasil, difícil era mudar de paradigma, frente à imposição estadunidense que forçava todos demais países a seguir uma política de combate às drogas, segundo o modelo bélico repressivo por este imposto, por motivações ideológicas e econômicas (enriquecimento dos cartéis), que será abordada ao longo deste trabalho.

Porém, nesta segunda década deste novo século, a mudança de paradigma que vem sofrendo dentro dos Estados Unidos, uma mudança vinda de “baixo para cima”, pois alguns Estados Americanos estão adotando postura descriminalizante e até mesmo legalizante em relação às drogas, seja para fins medicinais ou recreativos, está deixando o restante do mundo vivenciar neste exato momento, uma oportunidade única de rediscutir o tema das drogas sem interferência da política estadunidense, visto que até mesmo este está possibilitando aos seus estados membros discutirem o tema livremente.

Frente a isso, este trabalho buscou discutir o tema das drogas à luz da teoria do minimalismo penal, esta entendida aqui, no âmbito da contração penal (deflação legislativa penal), e não um direito penal simbólico, tendo o direito penal cuidando apenas dos bem jurídicos considerados mais importantes, e rediscutindo a política de drogas sob uma perspectiva de legalização, para assim vermos um direito penal mais atuante (mínima impunidade), e cuidando estritamente dos crimes de grande monta, que provocam grave lesão a bens jurídicos de relevância penal.

Buscou-se ainda, comentar brevemente a teoria do direito penal do inimigo, pois esta pode ser utilizada pelos defensores da continuidade da proibição e o aumento do modelo repressivo, tendo o traficante como inimigo eleito, de modo que procurou-se demonstrar que tal teoria não se coaduna com um Estado Democrático de Direito, em especial com os princípios constitucionais da nossa Carta Magna de 1988.

Dessa forma, o objeto de estudo em análise mostra-se em consoante conexão com problemas da atualidade, da problemática penal, da problemática policial e, dessa forma, provocando argumentos prós e contras à legalização.

Argumentos favoráveis à legalização têm em vista que o combate bélico às drogas não surtiu efeito. Pelo contrário, apenas fez criar um “Estado paralelo” ao poder central, através do mando do traficante que coordena todo esse processo, que culmina na delinquência e corrupção de menores, no crime de lavagem de capitais, pois inúmeros são os empresários envolvidos no sistema e que lavam dinheiro oriundo do tráfico em seus negócios lícitos, e também contribui maciçamente para a corrupção política que muito assola nosso país na atualidade, pois dinheiro oriundo do tráfico é dinheiro que “entra limpo” na campanha de candidatos, tendo em vista que não está sujeito a prestação de contas.

Acredita-se que a proibição, em maior ou menor grau, não inibe o consumo, tendo como único resultado o inflacionamento das drogas, o que é diferente de redução de consumo. Essa visão está próxima do ideal minimalista de direito penal (esta entendida no âmbito da contração penal neste trabalho), de modo que o direito penal somente atua para proteção de bens jurídicos de grande relevância, fazendo, portanto, perceber que, no delito de drogas, essa proteção não ocorre, o que acaba por não justificar a proibição dentro desta teoria, já que o bem jurídico teoricamente tutelado (saúde pública) não o é na prática com a proibição.

Ainda, tendo o direito penal como um de seus princípios a subsidiariedade (“ultima ratio”), só deve intervir quando outros ramos do direito não puderem fazê-lo de modo adequado, e quando essa interferência for legítima e eficaz.

Este trabalho tem como objetivo demonstrar, justamente, o quão ineficaz é a interferência do direito penal na questão das drogas, demonstrando as consequências que o direito penal trouxe, e a problemática vivida atualmente no Brasil por conta desse fato ser considerado delito.

2. Teorias Penais:

Buscou-se, neste capítulo, relacionar as teorias penais atualmente debatidas, sem adentrar com muita profundidade no tema, pois o objetivo é, no quarto capítulo, correlacionar as teorias penais às diferentes visões acerca da problemática das drogas sob o viés penal.   

2.1 Breve consideração do Direito Penal do Inimigo:

Segundo Moura e Vargas (2009, p.2), o Direito Penal do Inimigo é uma hipótese lançada por Gunther Jakobs, doutrinador alemão, que sustenta tal teoria desde 1985, com base nas políticas públicas que combatem a criminalidade internacional, bem como a nacional. Esta proposição da mesma forma passa a ser conhecida como direito penal de terceira velocidade.

Na visão do doutrinador, existem dois tipos de criminosos, sendo que o primeiro é o criminoso cidadão, que pratica um delito por um fator qualquer, e o segundo é o criminoso inimigo, aquele que atenta diretamente contra o Estado, separando-se de maneira inalterável do direito e, assim, não seria justificável oferecer as garantias processuais e constitucionais.

Assim, o inimigo é considerado uma coisa, não sendo mais considerado um cidadão e nem um sujeito processual, pois quem não oferece segurança à sociedade não deve ser tratado como pessoa.

Como se observa, a teoria do direito penal do inimigo propugna pela relativização dos direitos fundamentais naqueles considerados inimigos do Estado. Propõe, portanto, um direito penal de terceira velocidade, com relativização das garantias fundamentais e aplicação de pena privativa de liberdade.

Jackobs remonta ao pensamento clássico, contratualista do século XVIII, que fundamenta a existência do Estado no pacto social, como algo criado de comum acordo entre os co-cidadãos antes mesmo da existência da sociedade civil, doutrina de grande relevância para a época (século XVIII), embora muitos historiadores afirmem ser o contratualismo uma situação hipotética, e jamais um fato histórico. É importante essa teoria, pois vem a fundamentar a legitimação do poder pelo povo, pois, se os co-cidadãos decidem criar o Estado, logo estes são os titulares do poder, e não um rei cuja legitimidade se baseava em fundamentação religiosa, por vontade divina.

Assim, essa teoria clássica baseia-se também na autodeterminação do indivíduo para praticar ou não um delito, sendo este uma escolha de livre vontade. Porém, mesmo entre os contratualistas, diz Rousseau (2007 p. 26-27):

a guerra não é pois uma relação de homens, porém de Estado com Estado; só acidentalmente nela são inimigos os particulares, não como homens ou mesmo cidadãos, mas como soldados; não como membros da pátria, mas como defensores dela. Todo Estado, enfim, só pode ter por inimigo outros Estados, e não homens, visto que entre coisas de diversa natureza não há verdadeira relação. (Grifo nosso).

Continua ainda Rousseau (2007, p.27), “o estranho que furta, mata ou prende os vassalos sem declarar guerra ao príncipe, ou rei, ou particular, ou povo, não é um inimigo, mas um ladrão”.

Dessa forma, podemos deduzir que, para Rousseau, ao contrário de Jackobs, não pode haver um inimigo do Estado enquanto criminoso apenas o for, não importando qual crime o tenha praticado, mas apenas o será quando este for agente nacional ou de outro Estado, com a finalidade de destruir a soberania deste, diversamente de Jackobs, para quem o agente é considerado inimigo por ameaçar o sistema. O direito penal do inimigo muda o caráter do direito penal do fato para o direito penal do autor, privilegiando o autor que comete o delito em detrimento do crime em si.

É importante observar que alguns entendem que Rousseau afirma que, qualquer pessoa que atente contra o “pacto social”, merece ser excluído do convívio dele, de modo que seu trabalho desperta conclusões distintas. Segundo Moura e Vargas (2009, p.5), a teoria do direito penal do inimigo entende que o inimigo deve ser punido baseado na sua periculosidade e não na sua culpabilidade.

Para Moura e Vargas (2009, p.4), temos como principais características do direito penal do inimigo:

a antecipação de punibilidade com a tipificação de atos preparatórios, criação de tipos de mera conduta e perigo abstrato; desproporcionalidade das penas; restrição de garantias penais e processuais e determinadas relegações penitenciárias ou de execução penal, como o regime disciplinar diferenciado recentemente adotado no Brasil.

Temos, no direito penal do inimigo, um direito penal do autor e não do fato. Assim, o direito penal do inimigo se configuraria, portanto, como sendo um modelo de direito penal parcial, através do qual se pune de forma antecipada e mais rigorosamente aqueles considerados “inimigos”, restringindo-se a liberdade, tanto a de agir quanto a de pensar.

Diferentemente pensa Greco (2013, p.2), afirmando que “a finalidade do direito penal é proteger os bens jurídicos mais importantes e necessários para a própria sobrevivência em sociedade”. Ainda nas palavras de Greco (2013, p.47):

o princípio da intervenção mínima, ou ultima ratio, é o responsável não só pela indicação dos bens de maior relevo que merecem a especial atenção do Direito Penal, mas se presta também, a fazer que ocorra a chamada descriminalização. Se é com base neste principio que os bens jurídicos são selecionados para permanecer sob tutela do direito penal, porque considerados como os de maior importância, também será com fundamento nele que o legislador atento às mutações na sociedade, que com sua evolução deixa de dar importância a bens que, no passado, eram da maior relevância, fará retirar do nosso ordenamento jurídico-penal certos tipos incriminadores.

Logo, para Greco, o direito penal deve, portanto, interferir o menos possível na vida em sociedade, devendo ser solicitado somente quando os demais ramos do direito se mostrarem insuficientes para a proteção de determinado bem jurídico.

Vemos ainda que, para o direito penal do inimigo, o indivíduo é tratado como meio para um fim, e não um fim em si mesmo, pois, ao preterir o direito penal do fato e enaltecer um direito penal do autor, o individuo (autor) é tido como um instrumento a ser penalizado, pois não é o fato criminoso em si que justifica a pena, mas a periculosidade do agente.

Dessa forma, o grande bem tutelado na visão de Jackobs é a norma, e somente de modo indireto bens jurídicos. O problema é que poderia existir a instrumentalização do indivíduo, pois, se a norma é o grande bem tutelado, aqueles que agirem em desacordo com ela deveriam ser excluído do pacto social.

Poderia essa premissa atacar o princípio da dignidade humana, pois, com base nele, aduzindo o grande filósofo Immanuel Kant, justamente se impede através da dignidade humana que o homem seja utilizado como meio para um fim, mas que seja um fim em si mesmo.

Tal teoria formulada por Kant serviu de fundamentação à teoria retributiva da pena (pena justiça). Nas palavras de Kant (apud QUEIRÓZ, 2005, p.20), “o homem é o fim de todas as coisas, sendo essa a premissa para a dignidade humana em Kant. Logo, a aplicação do direito penal do inimigo no Brasil encontra barreiras, por atacar diretamente princípios constitucionais.

Pode-se observar o princípio da humanidade (Dignidade Humana) em diversos momentos, sobretudo no artigo 5º, inciso III, da Constituição Federal. Revela ainda o direito penal do inimigo que, contra o agressor, não se justifica um procedimento penal (legal), mas sim, um procedimento de guerra. Deste modo, a Constituição pátria é nitidamente contrária a qualquer tratamento diverso do respeito devido à pessoa humana. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com devido respeito à dignidade inerente ao ser humano.

Assim, não é possível falar em um direito para o “inimigo” e outra espécie de direito para o “cidadão”. Ainda, no tocante ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, evidente a conjuntura do valor da dignidade da pessoa humana como princípio superior, fundamento de um Estado democrático de direito.

Discorrendo acerca da impossibilidade de direito diferenciado para “inimigo” e “cidadão”, aduz Marmelstein (2014, p.189) que:

há uma grande parcela da sociedade que não vê os direitos fundamentais com bons olhos. Imagina-se que eles protegem apenas criminosos. Costuma-se dizer que cidadãos “de bem” não precisariam de direitos fundamentais. Ou então que apenas os “humanos direitos” mereceriam ser titulares de “direitos humanos”. Essa visão é extremamente equivocada. Primeiro, porque reduz os direitos fundamentais às garantias do processo penal [...] segundo, porque acredita que seja possível dividir a sociedade em mocinhos e bandidos, quando muitas das vezes são os tais “humanos direitos” que oprimem, discriminam e, como consequência, geram num efeito bumerangue, a violência que tanto o assusta. (Grifo nosso).

Segundo Pilati (2011, p. 35-37):

os fundamentos jusfilosóficos da teoria, segundo escreve Jakobs, estariam em autores contratualistas como Rousseau, Fichte, Hobbes e Kant. Para estes, o delinquente que infringe o contrato social não pode usufruir dos benefícios do Estado. Rousseau e Fichte, porém, entendem que qualquer indivíduo que infringe a lei deixa de fazer parte do Estado, enquanto para Hobbes e Kant apenas os autores de crimes graves devem ser excluídos. Jakobs observa que seu pensamento assemelha-se mais com o entendimento destes dois últimos filósofos: “Hobbes e Kant conhecem um direito penal do cidadão – contra pessoas que não delinquem de modo persistente por princípio – e um direito penal do inimigo contra quem se desvia por princípio”. [...] A proposta político-criminal de Jakobs carrega a concepção simbólica da pena. Sua obra “Direito penal do inimigo: noções e críticas” discorre sobre dois aspectos da pena: como coação e como segurança. A pena como coação seria portadora de um significado simbólico, ou seja, de que o fato criminoso é irrelevante e que a norma segue sem modificações. O crime seria visto como o ato de uma pessoa racional, que desautoriza a norma. A pena/coação afirmaria que a lei continua vigente, mantendo-se a configuração da sociedade.

Zaffaroni (apud PILATI 2011, p. 40) acrescenta que:

o conceito de inimigo é incompatível com o Estado de Direito. O hostis, pelo contrário, reclama um Estado Absoluto. As consequências da admissão do inimigo são aquelas registradas por Carl Schmitt, ou seja, a suspensão da Constituição nas emergências, instalando-se uma ditadura jurídica.

Importante ainda observar ainda que, para Pilati (2011, p.41), por outro lado, não se pode falar que o poder punitivo em exercício na América Latina reproduz o direito penal do inimigo. Isto porque a proposta de Jakobs é muito mais limitada do que já acontece nessa região. Na verdade, o âmbito de aplicação da teoria do autor alemão são os países centrais.

Portanto, a adoção ao direito penal do inimigo poderia estar em contradição à Constituição brasileira, pois afronta os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, tratando criminosos como inimigos do Estado e produzindo, assim, um direito baseado, não na punição por fatos delituosos, mas num sistema penal voltado ao autor, aferindo-se principalmente sua periculosidade.

2.2 Abolicionismo Penal

O abolicionismo penal, segundo Bezerra (2010), é um movimento relacionado à descriminalização, que é a retirada de determinadas condutas de leis penais incriminadoras e à despenalização, entendida como a extinção de pena quando da prática de determinadas condutas. Nucci (apud BEZERRA 2010) afirma que:

trata-se de novo pensamento que vem ganhando adeptos entre penalistas especialmente na Europa, (...) fruto de estudos e artigos de Louk Hulsman (Holanda), Thomas Mathiesen e Nils Christie (Noruega) e Sebastian Scheerer (Alemanha). O autor explica que se trata de um novo método de vida posto apresentar uma nova forma de pensar o direito penal, uma vez que se questiona o verdadeiro significado das punições e das instituições, com o objetivo de construir outras formas de liberdade e justiça.

O discurso penal agrada a sociedade. Vemos, no atual momento, legisladores com discursos ferozes pró-aumento da repressão penal, repercutindo em votos a seu favor, e apresentadores televisivos disputando pontos de audiência com o discurso do direito penal mais rigoroso para “vagabundo”, e que se valem disso para chamar atenção e conquistar aderência do público.

Todos atuando num discurso do direito penal máximo, pois a sociedade não pode ser refém do “vagabundo”. E, nas palavras de Greco (2011, p.5), “a disputa por pontos de audiência transformou nossa imprensa num show de horrores que, por mais que possamos repugná-lo, gostamos de assisti-lo diariamente”.

Podemos perceber claramente que o direito penal é de todos os ramos do direito, o mais forte, mais rigoroso, mais cruel, pois ataca diretamente a liberdade do indivíduo. Porém, Greco (2011, p.6) afirma que somente caem nas garras do direito penal, aqueles indivíduos menos favorecidos, demonstrando a seletividade do direito penal. Em suas palavras:

certo é que o direito penal tem seu público-alvo. Nem todas as pessoas farão parte de sua “clientela”. Aqueles que militam nessa seara podem testemunhar, com segurança, que o direito penal tem cor, cheiro, aparência, classe social, enfim, o direito penal, também como regra, foi feito para um grupo determinado de pessoas, pré-escolhidas para fazer parte do show.

A verdade é que, no Brasil, prefere-se o Estado Penal ao Estado Social, de modo que não se percebe que investimentos na área social são verdadeiros inibidores de criminalidade, investimentos no ensino fundamental, médio e superior, lazer, cultura, saúde, habitação são relegados a segundo plano, priorizando-se o setor repressivo.

Dornelles (apud GRECO 2011, p.13): afirma que “O mito do Estado Mínimo é sublinhado, debilitando o Estado Social e glorificando o Estado Penal. É a constituição de um novo sentido comum penal que aponta para a criminalização da miséria”.

Desse modo, perfaz-se necessário um Estado Social, que garanta condições mínimas de dignidade a todos, com recursos na educação, lazer, moradia, cultura, dentre outros, de modo que isto reverta-se em condições mínimas para o indivíduo inserir-se na vida social e excluí-lo da criminalidade.

Temos aí o problema da efetivação de direitos fundamentais positivos, como os que constam no artigo 6º de nossa Carta Magna. É mais fácil o estado cumprir e efetivar direitos fundamentais negativos (um não fazer – como exemplo o art. 5º CF), do que efetivar direitos fundamentais positivos (Art. 6º CF), pois exige um “agir, um fazer”, que requer recursos por parte do estado para tal efetivação.

Desse modo, a teoria abolicionista traz à tona a discussão acerca da eficácia do direito penal como solucionador dos conflitos sociais e como ressocializador do indivíduo delinquente. O direito penal, portanto, muito possivelmente possui caráter seletivo (tem clientela definida), isso ficando evidenciado quando vê-se punidos fatos de bagatela, por um lado, e a impunidade dos crimes do colarinho branco por outro. Um bom exemplo é o art.16 do Código Penal:

Art. 16 – Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços. (BRASIL, 1940)

Vemos, portanto que, caso seja reparado o dano ou restituída à coisa, o agente criminoso tem sua pena reduzida. Agora nos casos de crimes tributários a recíproca não é verdadeira. A lei 9.249 de 26 de dezembro de 1995 trouxe a lume a possibilidade de extinção da punibilidade do agente, nos crimes tributários, caso o pagamento do tributo ou contribuição social fosse feito antes do recebimento da denúncia. A Lei 12.382/11 estendeu este benefício à hipótese desta dívida ser paga de forma parcelada, suspendendo o “jus puniendi”.

Dessa forma, vemos como o sistema penal escolhe sua clientela, pois, ao furtar um relógio, por exemplo, e devolvê-lo, o agente tem sua pena diminuída, mas se sonegar milhões e indiretamente matar milhares de pessoas que necessitavam de tais recursos para o bom funcionamento do aparelho estatal a políticas sociais como saúde, por exemplo, o agente tem o benefício da extinção da sua punibilidade, de modo que o direito penal trata desigualmente classes sociais distintas.

Isso tudo demonstra, à luz da teoria abolicionista, a injustiça do sistema penal, e como o direito penal também não é capaz de cumprir as funções atribuídas às penas (reprovação e prevenção), sem falar da cifra negra, que nada mais é do que as infrações penais que não foram objeto de persecução pelo Estado ou que nem mesmo chegaram ao conhecimento de seus órgãos oficiais.

Assim, nem todo delito é denunciado, nem todos os delitos denunciados chegam ao registro pelos órgãos públicos, nem todos os delitos denunciados e registrados são objetos de investigação, e por fim, nem todos os delitos denunciados, registrados e investigados, acabam sendo condenados, de modo então que a teoria abolicionista acredita que há uma verdadeira deslegitimação da atuação do direito penal.

Marmelstein (p. 274) afirma que, no Brasil, as cláusulas pétreas (art. 60 §4º, CF) não podem ser suprimidas, pois, conforme o artigo mencionado, não pode ser objeto de deliberação as propostas de emenda constitucional tendentes a abolir “os direitos e garantias individuais”.

Assim, como não existe pena perpétua, todos presidiários um dia estarão livres novamente. E aí se tem que pensar que tipo de indivíduo está retornando ao convívio social, pois, se este indivíduo não foi ressocializado, a tendência é que volte pior do que quando entrou, pois a prisão não ressocializa, mas dessocializa, e é uma verdadeira escola do crime, tornando a reincidência uma realidade quase certa, e fazendo novos indivíduos tornarem-se vítimas do delinquente não reinserido do modo adequado.

Greco (2011, p.10), afirma que:

quando o Estado consegue fazer valer seu Jus Puniendi, com a aplicação da pena previamente cominada pela lei penal, essa pena não cumpre as funções que lhe são conferidas, isto é, as funções de reprovar e prevenir o delito. Além do mais, aquelas condutas que foram selecionadas pelo Estado, de acordo com um critério político [...] poderiam muito bem, acaso geradoras de conflitos, merecer atenção somente dos demais ramos do ordenamento jurídico, principalmente do direito civil e do direito administrativo, preservando-se desta forma, a dignidade da pessoa humana, que não se encontraria na estigmatizante condição de condenada pela Justiça Criminal.

Nas lições de Queiróz (2005, p.89-90):

O sistema penal é incapaz de prevenir, por meio da cominação e execução de penas, quer em caráter geral, quer em caráter especial, a prática de novos delitos [...] Salienta-se assim, que a despeito da incriminação, o aborto, o homicídio, o uso e tráfico de entorpecentes, etc, se repetem sistematicamente como se tal proibição simplesmente não existisse, não se abstendo os potenciais infratores da prática de tais crimes pelo só fato de existir uma norma penal incriminadora. A só reincidência desmentiria a função preventiva ou dissuasiva da norma penal. A prevenção geral, portanto, não se confirma, sendo desacreditada a todo momento, servindo à só legitimação do discurso e da atuação do sistema.

Queiróz (2005, p.89-100) elenca algumas características que servem de críticas ao sistema penal. De modo sucinto:

a) O sistema penal não é capaz de prevenir, quer em caráter geral ou especial, a prática de novos delitos;

b) O sistema penal é arbitrariamente seletivo, escolhe sua clientela e é produtor e reprodutor de desigualdades;

c) O sistema penal opera à margem da legalidade, viola Direitos Humanos pelo próprio sistema, pois o direito penal criminaliza uma série de condutas e os órgãos incumbidos de sua repressão possuem uma capacidade muito inferior à demanda, ou seja, o sistema penal é programado para não funcionar.

Zaffaroni (apud QUEIRÓZ 2005, p.94) afirma que:

a disparidade entre o exercício do poder programado e a capacidade operativa das agências é abismal, e por outra parte, se se desse a inconcebível circunstância de que seu poder se incrementasse até chegar a corresponder a todo exercício programado legislativamente, produzir-se-ia o indesejável efeito de penalizar várias vezes a toda população.

d) O sistema penal apenas intervém em situações excepcionais, as cifras ocultas (cifra negra) consomem a maioria dos delitos praticados, pois é irrisória a quantidade de crimes que o sistema penal consegue apurar e punir, sendo que a grande maioria dos delitos sequer chega ao conhecimento dos órgãos responsáveis, e quando chegam poucos são de fato punidos.

e) Reificação (coisificação) do conflito, pois há uma neutralização da vítima no sistema penal. A Vítima no processo penal é duplamente perdedora: em primeiro lugar, frente ao infrator, em segundo frente ao Estado, pois está excluído de qualquer participação em seu próprio conflito.

f) O crime carece de consistência material. Ressalta-se que, sob a etiqueta de “delito”, agrupa-se toda uma série de comportamentos que nada têm em comum (exceto o fato de estarem criminalizados). A criminalidade, sob essa perspectiva, não existe por natureza, senão que é mais exatamente uma realidade socialmente construída.

g) O sistema penal intervém sobre pessoas, e não sobre situações. Todo sistema penal gira em torno da ideia de culpabilidade individual, desprezando por completo o ambiente ou sistema social em que se insere. Culpam-se os indivíduos, ignoram-se os sistemas, as estruturas sociais.

h) O sistema penal intervém de maneira reativa e não preventiva. O Direito Penal sempre intervém quando as consequências das infrações já se produziram, mas não efetivamente para evitá-las. Tem efeito, portanto, simbólico, pois as consequências da violência não podem ser eliminadas efetivamente, mas apenas simbolicamente, pela aplicação de sanção penal.

i) O sistema penal só atua tardiamente. O resultado da intervenção do sistema de justiça criminal (a sentença e a execução) não é imediatamente posterior à prática do crime. Muitos delitos duram quase década para serem julgados.

j) O sistema tem uma concepção falsa de sociedade. O sistema penal supõe, e supõe falsamente, um modelo consensual de sociedade, onde todos reprovam de forma unânime os comportamentos definidos como delituosos. Têm-se, portanto, uma concepção dicotômica de sociedade: tudo é acordo ou desacordo, bom ou mau. Logo, representa uma negação do pluralismo necessário nas sociedades, cujos interesses não raro se conflitam.

k) A lei penal não é inerente às sociedades. Antes do estabelecimento da lei penal, havia outras formas de resolver os conflitos, como a lei civil.

l) O sistema penal intervém sobre os efeitos e não sobre as causas da violência.

A teoria abolicionista, apesar de fazer uma crítica ao direito penal, e desvendar suas fragilidades, não explica ou não soluciona o problema de como reprovar e prevenir o crime de modo eficaz.

É neste contexto que surge então o minimalismo penal. Existem vários tipos de minimalismo, porém o enfoque deste trabalho é o minimalismo enquanto contração do âmbito de atuação do direito penal, protegendo bens jurídicos de maior relevância.


* Artigo elaborado a partir da monografia apresentada para obtenção do título de bacharel em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL. 06/2016.


Rodrigo Darela de Souza. . Rodrigo Darela de Souza é Graduado em História, Graduado em Direito, Especializado em Direito Penal e Processo Penal. . .


Imagem Ilustrativa do Post: She, smoking // Foto de: mihi_tr // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mihi_tr/3372006219

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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