Dispositivos legais desencarceradores: o óbice hermenêutico

19/05/2015

Por Geraldo Prado* e Rubens Casara – 19/05/2015

Em reação ao grande encarceramento sofrido por parcela significativa da população selecionada pelo sistema penal, costuma-se apontar a necessidade de dispositivos legais desencarceradores, conectados a um novo modelo de política criminal, aptos a romper com a naturalização do cárcere como resposta aos desvios criminalizados.  Espera-se, com a redução da distorção/perversão encarceradora, própria de uma epistemologia autoritária, uma mudança de estratégia no trato do poder penal.

Trata-se, portanto, de uma questão de poder. Os dispositivos legais desencarceradores referem-se à forma mais grave de manifestação do poder penal; são, ao menos no plano do discurso oficial, uma tentativa de superação/limitação do poder de encarcerar.

Desde Foucault, pode-se afirmar que o poder de encarcerar não é um objeto capaz de ser apropriado pelo sujeito, que, ao seu desejo, o utilizaria ou não. Como todo poder, o de colocar seres humanos em jaulas, é algo que se exerce no tempo e no espaço; um fenômeno, uma prática social, e, como tal, constituída historicamente, capaz de produzir efeitos concretos para além do local em que a punição é escondida.[1]

O poder de encarcerar faz parte de uma rede de poderes que se espalha na sociedade em meio a uma trama histórica, que se desenvolve com rupturas e permanências. Nesse movimento, as mudanças nem sempre são bruscas ou facilmente perceptíveis. Os discursos e a funcionalidade real do encarceramento sofreram modificações, de diferentes intensidades, desde o final do século XVIII. A vocação utilitária e o poder de adaptação do cárcere a diferentes (e até antagônicas) ideologias são marcas desse processo. Dito de outra forma: a engenhosidade do poder de encarcerar permite que ele seja exercido tanto para aumentar utilidades econômicas, quanto para diminuir perigos políticos, em especial na contenção das classes perigosas.

Assim, por exemplo, a partir da Revolução Tecnológica o processo de encarceramento, sem sofrer lapso de continuidade, deixou de atender ao controle da mão-de-obra de trabalho para se tornar uma forma de eliminar o perigo dessa multidão. Sabe-se que a denominada Revolução Tecnológica, em seu aspecto mais visível e perverso, representou a substituição de homens por máquinas na produção de riquezas, com a formação de uma multidão incapaz de vender sua força de trabalho. Multidão que, apesar de possuir necessidades artificiais de consumo, não dispõe da capacidade econômica necessária à aquisição desses bens. Em resumo: pessoas que não mais interessam à sociedade de consumo.

Registre-se que o poder de encarcerar é, como todo fenômeno, condicionado pelo contexto em que é exercido. Não pode, por essa razão, ser abandonado ao bel prazer de um sujeito. O encarceramento faz parte de uma tradição e apenas a mudança da tradição permitirá o abandono do cárcere. A superação do grande encarceramento depende, portanto, da compreensão desse contexto: é necessário estar em condições de enfrentá-lo, de derrotá-lo, de começar algo a partir dele.

Dito de outra forma, a superação do poder penal, e em especial do poder de encarcerar, só virá se existirem condições para tanto: é uma questão de estratégia, de tática, de produção de um novo consenso à superação da tradição autoritária que identifica liberdade com impunidade, enfim, de luta contra a hegemonia do cárcere.

Nessa luta contra-hegemônica, diversos aspectos devem ser considerados. Assume relevância, em especial, o necessário esforço para a produção de um saber capaz de penetrar na sociedade com informações sobre o fracasso das funções declaradas do sistema penal, em especial a falência do modelo de encarceramento, retrato mais perverso e atentatório à dignidade da pessoa humana com que convive acriticamente a sociedade. Impõem-se medidas que revelem, a título de exemplo, a incapacidade da pena de prisão atender aos fins que o discurso oficial lhe atribui, a relação indissociável entre o cárcere e o fenômeno da reincidência e o caráter seletivo do exercício do poder de encarcerar. Ainda dentro dessa linha, devem ser fomentados debates acerca da legitimidade da punição em um país de capitalismo tardio, em que não são respeitados os direitos fundamentais de considerável parcela da sociedade, em especial diante daquilo que Nilo Batista chamou de “pecado original da pena pública”[2]. Cuida-se da fundação da pena pública em uma estrutura social patrimonialista, que confunde o público com o privado, em que os instrumentos públicos de coação pertenciam (e ainda pertencem), de fato, às classes dominantes.

Embora se reconheça que as medidas penais desencarceradoras em certa medida re-legitimam o sistema penal, reconhece-se também que, enquanto as condições políticas que permitirão a superação do sistema penal não são construídas, é importante eliminar, tanto quanto possível, os efeitos reais do exercício concreto do poder de encarcerar.

Não se trata de atuar a partir da fé cega no cárcere como resposta aos desvios sociais, mas de agnosticamente atuar na redução de dramas e danos causados pelo encarceramento. Afinal, enquanto o “depois do grande encarceramento” não se torna realidade, pessoas em maioria que se encontram em estado de vulnerabilidade, continuam submetidas ao sofrimento inútil do cárcere.

Sem a crença epistemologicamente ingênua de que o sistema penal pode ser socialmente útil (ou, como quer parcela bem-intencionada da doutrina e da jurisprudência, “capaz de servir como instrumento de libertação da maioria oprimida”), acredita-se que os dispositivos penais desencarceradores podem servir para reduzir os efeitos reais do exercício do poder penal.

O cuidado no manejo desses dispositivos, porém, deve ser redobrado, sob pena de se ampliar o âmbito de incidência do sistema penal, ou seja, não se deve permitir que as medidas desencarceradoras sirvam para submeter novas pessoas ao controle penal através de medidas não-encarceradoras, no lugar de diminuir o sofrimento dos que estão no cárcere.

Diversas propostas de dispositivos legais desencarceradores poderiam ser formuladas, tais como: a ampliação das hipóteses de vedação à prisão cautelar (que hoje se encontram previstas, a contrário sensu, no artigo 313 do Código de Processo Penal), com a criação de “processos penais de liberdade necessária” (antítese da antiga “prisão de curso forçado”); a positivação/ atualização, diante do apego dos atores jurídicos à lei em sentido formal, do princípio da proporcionalidade aplicável às prisões cautelares; a reformulação da parte especial do Código Penal à luz da Teoria do Bem Jurídico; a ampliação das hipóteses de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (dever-se-ia ter a substituição como regra, vedada a pena restritiva de direitos, tão-somente, diante das circunstâncias do caso concreto, em situações excepcionais bem delineadas pelo legislador); a adoção do princípio do numerus clausus em matéria de execução penal, ou seja, a consagração de que só é legítimo executar penas que o sistema penitenciário comporte. O Estado que deseja punir, e por essa razão prende o indivíduo que viola a lei penal, não pode descumprir a Lei de Execução Penal na hora de executar suas sentenças condenatórias; o Estado não pode perder a superioridade ética em relação ao criminoso, por violação da dignidade humana no sistema prisional etc., todavia, optar-se-á por dar ênfase ao grande óbice à concretização dos dispositivos desencarceradores.

A hipótese aqui defendida é a de que o grande problema, o principal obstáculo à concretização dessas medidas, não se dá no plano da legislação: trata-se de uma questão hermenêutica; mesmo diante de dispositivos legais que autorizam a substituição do cárcere por outras medidas penais (como, por exemplo, o artigo 44 do Código Penal), é no momento da interpretação/aplicação da norma que se impede a diminuição do sofrimento do apenado ou que se decreta ou mantém prisões cautelares desnecessárias (em que a liberdade do acusado não gera risco processual). Diante de uma Constituição da República em tendência emancipatória (em que pesem alguns poucos comandos de incriminação), a insistência dos atores jurídicos, em especial no Poder Judiciário, em reconhecer o cárcere como resposta preferencial aos desvios sociais criminalizados, revela que o processo de encarceramento deve ser compreendido à luz da hermenêutica.

Desde os estudos de Heidegger, se realçou que há uma diferença ontológica entre o texto e a norma. A norma é, sempre e sempre, o produto da criação do intérprete; em cada norma há um pouco do intérprete: a norma como produto histórico carrega parcela ou recorte desta história, da consciência e do inconsciente do intérprete. Com o texto legal não é diferente; cada dispositivo legal desencarcerador só se torna efetivo, só se transforma em norma jurídica, em cada caso concreto, por meio da atuação do intérprete.

Não raro, porém, o juiz/intérprete esvazia o conteúdo libertador do dispositivo legal desencarcerador ao apresentar respostas estatais que prestigiam o cárcere em detrimento de alternativas menos danosas à dignidade humana. Isso é assim porque a pré-compreensão, que acompanha todo processo de interpretação, condiciona toda a cadeia de significantes e, em consequência, o resultado dessa interpretação.

Não se pode esquecer que o intérprete está inserido, ele mesmo, em uma tradição autoritária. Daí que no momento de compreender/interpretar o texto, o juiz penal pode acabar por esvaziar o conteúdo libertador do dispositivo legal. Dito de outra forma: a situação hermenêutica – a grosso modo, o contexto em que está inserido o ser-aí-julgador[3] – impede a concretização das medidas desencarceradoras, na medida em que o juiz penal não se interpreta (não reconhece, por exemplo, seus preconceitos) ao interpretar o dispositivo legal.

É necessário que o interprete/juiz passe a ter consciência de que “sua própria compreensão e interpretação não é nenhuma construção a partir de princípios, mas o aperfeiçoamento de um acontecimento que vem de longe. Os conceitos de que se utiliza não poderão, por isso, ser reclamados sem questionamentos; terá, porém, de ser aceito o que lhe foi trazido de herança do originário conteúdo significante de seus conceitos”.[4]

Ao lado do ambiente autoritário em que se inscreve o intérprete, na América Latina, porque acredita na pena (o juiz penal declara-se severo, enquanto é incapaz de reconhecer-se ingênuo e autoritário), há a reprodução do “senso comum criminológico”[5] que clama por mais e mais repressão. Existem pulsões de morte que irrompem, em regra inconscientemente, no processo de interpretação: tudo a impedir o desencarceramento.

Percebe-se, pois, que a concretização do desencarceramento exige muito mais do que apenas uma mudança legislativa, também necessária. É, antes de tudo, uma luta política, uma batalha por mudança na correlação de forças e que necessariamente passa pela construção de uma cultura democrática.

A ruptura com a tradição autoritária exige novos atores jurídicos. Isso implica, dentre outras coisas, a reformulação dos concursos públicos para ingresso nas carreiras que tratam com o poder penal e a eliminação dos controles ideológicos que buscam a manutenção da tradição autoritária das Agências Estatais. Exige, também, a construção de um saber-poder comprometido com a dignidade humana e com os valores consagrados nas Constituições Democráticas e nos tratados internacionais de direitos humanos.


* Este artigo reúne as considerações proferidas durante o Seminário “Depois do Grande Encarceramento”, realização do Ministério da Cultura e do Instituto Carioca de Criminologia. Extraído do livro Em torno da Jurisdição, de Geraldo Prado, o qual corresponde a uma coletânea de textos, votos e artigos produzidos pelo autor entre 1995 e 2010.

PRADO, Geraldo. Em torno da Jurisdição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 93-97


Notas e Referências:

[1] Sobre o tema: FOUCAULT, Michel. Genealogia e poder. In Microfísica do poder; trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 167-177.

[2] Ver: BATISTA, Nilo. Pena pública e escravismo. In História e direito: jogos de encontros e transdisciplinaridade. Gizlene Neder (org.). Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 27-62.

[3] Utiliza-se aqui expressão de cunho heideggariano empregada por Alexandre Morais da Rosa (ROSA, Alexandre Morais da. Decisão penal: bricolagem de signifi cantes. Rio de Janeiro, 2006).

[4] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997,p. 35.

[5] A expressão foi utilizada por Nilo Batista em sua fala no Seminário “Depois do Grande Encarceramento”, promovido pelo Ministério da Justiça e pelo Instituto Carioca de Criminologia.


Geraldo Prado. . Geraldo Prado é Professor da UFRJ e Consultor Jurídico. . . .


rubens-casara. . Rubens Casara é Juiz de Direito do TJ/RJ, Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Professor Universitário, Membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Corpo Freudiano.. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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