Direito real de habitação não é garantido ao cônjuge sobrevivente se a sucessão foi aberta na vigência do Código Civil de 1916

28/02/2016

Por Vitor Vilela Guglinski – 28/02/2016

O julgado que comentamos abaixo traz questão envolvendo importante alteração operada pelo CC/2002, em relação ao direito real de habitação do cônjuge sobrevivente. No caso, a Quarta Turma do STJ observou o disposto no art. 2.041 do diploma civil em vigor, o qual estabelece que, em relação à ordem de vocação hereditária, às sucessões abertas na vigência do CC/1916 não se aplicam as regras da novel codificação, esclarecendo implicações afetas a direito intertemporal.

Confira-se o noticiado no informativo nº 495 do STJ:

EMENTA: Quarta Turma - SUCESSÃO. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO.

Em sucessões abertas na vigência do CC/1916, a viúva que fora casada no regime de separação de bens com o de cujus tem direito ao usufruto da quarta parte dos bens deixados, em havendo filhos (art. 1.611, § 1º, do CC/1916). O direito real de habitação conferido pelo novo diploma civil à viúva sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens do casamento (art. 1.831 do CC/2002), não alcança as sucessões abertas na vigência da legislação revogada (art. 2.041 do CC/2002). In casu, não sendo extensível à viúva o direito real de habitação previsto no art. 1.831 do novo diploma civil, os aluguéis fixados pela sentença até 10 de janeiro de 2003 – data em que entrou em vigor o novo estatuto civil – devem ser ampliados a período posterior. REsp 1.204.347-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 12/4/2012.

COMENTÁRIOS

Em apertada síntese, pode-se conceituar o direito real de habitação como sendo o direito de habitar, gratuitamente, casa alheia, sendo vedado ao habitante perceber frutos (aluguéis, por exemplo) ou alienar (emprestar) o bem objeto desse direito, estando o beneficiário limitado ao uso do bem, sozinho ou com sua família, em decorrência de seu caráter intuitu personae.

Existem duas espécies de direito real de habitação: (i) voluntária, em que as partes, por acordo de vontade (ato inter vivos ou testamento), e mediante escritura pública, constituem esse direito; (ii) legal, isto é, derivada de norma cogente, portanto não sendo objeto de disposição pelas partes. Quanto à necessidade de registro, somente a primeira modalidade (voluntária) o reclama, devendo ser devidamente registrado no Registro de Imóveis (art. 167, I, n. 7, da Lei nº 6.015/79), enquanto a habitação legal independe de registro, exatamente por decorrer da própria lei.

No sistema anterior, o direito real de habitação conferido ao cônjuge sobrevivente estava condicionado ao regime de bens que regulava o casamento, sendo que, para tal efeito, somente estaria amparado o consorte que fosse casado sob o regime da comunhão universal, conforme previa o art. 1.611, § 2º, do CC/1916, abaixo transcrito:

Art. 1.611 - A falta de descendentes ou ascendentes será deferida a sucessão ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estava dissolvida a sociedade conjugal.

(...)

§ 2º Ao cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão universal, enquanto viver e permanecer viúvo será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habilitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar (destaque nosso).

Modificando profundamente a previsão anterior, a atual codificação dispõe que o direito real de habitação será conferido ao cônjuge sobrevivente, independentemente do regime de bens do casamento, a teor do estatuído no art. 1.831 do CC/2002. Notem a regra:

Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação do que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar (destaque nosso).

Como se vê, o CC/2002 ampliou o direito real de habitação ao cônjuge sobrevivente. A ratio dessa alteração possui inegável vocação constitucional, estando amparada pelo princípio da dignidade humana (art. , III, da CF/88) e pelo direito fundamental à moradia, etiquetado no art. 6º da Carta Fundamental.

Quanto à parte final do art. 1.831, pairam severas críticas da doutrina. Flávio Tartuce, citando Jones Figueiredo Alves e Mário Luiz Delgado, noticia a existência do PL 699/2011 (disponível em: http://www.câmara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=494551), o qual, no momento em que escrevemos estes comentários, aguarda parecer na Comissão de Desenvolvimento Indústria e Comércio (CDEIC), cujo objetivo é exatamente alterar a regra, que passaria a ter a seguinte redação:

“Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, enquanto permanecer viúvo ou não constituir união estável, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar” (destaque nosso).

Argumenta-se que a manutenção da atual dicção do dispositivo em referência pode ocasionar injustiças, já que o direito real de habitação jamais extinguir-se-ia, mesmo diante da contração de novo casamento ou união estável por parte do cônjuge sobrevivente.

Outro problema apontado por Tartuce diz respeito ao imóvel destinado àquele direito real ser o único a ser inventariado. O autor propõe interessante indagação: “se o falecido deixou mais de um imóvel residencial, perderia o cônjuge supérstite seu direito real de habitação?

Para responder a esse questionamento, o eminente civilista ampara-se nos ensinamentos de Zeno Veloso, chancelado por José Luiz Gavião de Almeida, para quem “a existência de outros imóveis residenciais não afasta o direito real de habitação sobre o bem que servia de moradia à família do falecido. Nesse caso, o imóvel ofertado em substituição não pode ser de conforto inferior. Deve-se garantir ao cônjuge sobrevivente a mesma situação que desfrutava em sua residência anterior” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil 6: Direito das Sucessões. 5ª ed. Revista e atualizada, São Paulo: Método, 2012, p. 201).

Sendo assim, tendo em vista essas importantes implicações envolvendo o tema, recomendamos que o leitor acompanhe o trâmite do PL 699/2011, uma vez que redundará em relevante alteração da disciplina do direito real de habitação do cônjuge sobrevivente, hoje vitalício, conforme considerado linhas atrás.

Finalmente, digno de observação a aplicação do art. 2.041 do CC/2002 ao julgado em tela, que trata da aplicação da lei no tempo, especificamente aos casos envolvendo o Direito das Sucessões, cuja literalidade diz:

Art. 2.041. As disposições deste Código relativas à ordem da vocação hereditária (arts. 1.829 a 1.844) não se aplicam à sucessão aberta antes de sua vigência, prevalecendo o disposto na lei anterior.

Assim, tendo o autor da herança falecido, e sido aberta a sucessão na vigência do CC/1916, suas regras é que serão aplicáveis. Com vistas nessa regra é que a Colenda Turma julgadora determinou a extensão dos aluguéis devidos pela viúva do de cujus a período posterior à entrada em vigor do Novo Código Civil. Em outras palavras, não havendo direito real de habitação, não haverá gratuidade de ocupação de casa alheia, mas sim relação locatícia, o que, obviamente, justifica a cobrança de aluguel.


Vitor Vilela Guglinski. Vitor Vilela Guglinski é Advogado. Pós-graduado com especialização em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Ex-assessor jurídico da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora (MG). Autor colaborador dos principais periódicos jurídicos especializados do país. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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