DIÁLOGO OU QUIMERA? O PAPEL DOS PROCESSOS ESTRUTURAIS NO BRASIL  

14/06/2021

A crescente judicialização da política, associada a quadros de omissão ou inércia das instâncias majoritárias, acarreta a necessidade de empregar novos mecanismos procedimentais para solucionar a violação contínua e generalizada de direitos fundamentais, que atinge, principalmente, grupos vulneráveis, nos denominados “litígios estruturais”. A solução dessas questões, pela via processual, demanda a criação de remédios judiciais que divergem dos ordinários pela complexidade das decisões a serem prolatadas, bem como pela possibilidade de uma gestão judicial ativa e com enfoque dialógico[1], normativamente representada pela figura do “ativismo dialógico”[2].

Assim, no que toca à função do juiz, os processos estruturais inovaram ao provocar uma mudança de sua postura, bem como uma relação de longa duração entre ele (o magistrado) e a instituição envolvida, por meio de uma série de medidas estruturais, que objetivam adequar o procedimento às especificidades da causa. A implementação das sentenças estruturais, dessa forma, tem o condão de viabilizar uma ingerência permanente do Poder Judiciário nas esferas de competência das autoridades administrativas, com o intuito de moldar a ação pública do Estado, para superar quadros complexos de inconstitucionalidade[3].

Atualmente, as decisões judiciais que buscam solucionar litígios estruturais consistem em um poderoso instrumento para levar a cabo processos de transformação social, sobretudo em contextos de desigualdade e déficit de proteção de direitos fundamentais, típicos de países do Sul Global.

Ao contrário do que alguns doutrinadores argumentam, processos estruturais, em seu estado da arte, devem ser compreendidos enquanto uma ferramenta processual precursora de um relacionamento entre o Poder Judiciário e os entes governamentais, visto que uma decisão dessa natureza significa menos um ato coercitivo, um comando, e mais um ato de colaboração, com o intuito de superar um determinado estado de coisas violador de direitos[4], que demanda um enfrentamento multidimensional e, consequentemente, o envolvimento de diversos atores jurídicos, políticos e sociais.

Deparando-se com a realidade exposta até aqui, alguns juristas classificam o papel desempenhado pelos magistrados, no bojo de uma demanda estrutural, como “utópico” e “ativista” (expressão que assume, na grande maioria das vezes, um sentido pejorativo). No entanto, não seriam os juristas que defendem os processos estruturais os mais realistas? Para eles, a questão central do processo estrutural é possibilitar um Judiciário mais eficiente na proteção de direitos fundamentais e que realmente promova um equitativo acesso à justiça.

Afirmar isso pode chocar aqueles que, sob o argumento do garantismo processual, defendem a inutilidade dos processos estruturais, seja por sua ameaça à separação de poderes, seja pela sua suposta ineficiência. Contudo, a realidade brasileira mostra o contrário. Hoje, nosso sistema judicial incentiva o ajuizamento de ação individuais[5] para tratar de direitos socioeconômicos, o que favorece as classes econômicas mais ricas em detrimentos dos mais pobres, grupo social que mais necessita dos bens assegurados pelos direitos sociais[6].

Insistir em um modelo atomizado de judicialização dos direitos socioeconômicos permite que juízes interfiram em políticas públicas da pior forma possível, sem ter noção do contexto maior no qual se insere o pleito individual. Relatório elaborado por Fabíola Sulpino Vieira[7] para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), divulgado em março de 2020, ressalta a necessidade de o Judiciário ampliar o seu olhar para além da tutela individual, focando na realização da macrojustiça. Caso contrário, a abundância de ações individuais pode agravar as desigualdades de acesso à justiça.

Portanto, os defensores dos processos estruturais não são apenas juristas que não aceitam o papel coadjuvante do Judiciário[8]. Na verdade, eles apenas não ignoram uma realidade básica: quando o Judiciário opta por focar em demandas individuais, ele está sendo protagonista também. Protagonista em perpetuar um modelo desigual de acesso à justiça, indo de encontro aos deveres estabelecidos pela Constituição. A grande questão é decidir se o Judiciário seguirá intervindo de uma forma desestruturada, “enxugando gelo” e tratando apenas alguns dos sintomas dos problemas estruturais, ou se irá intervir de forma estruturada, buscando produzir uma reorganização do estado de coisas causador das violações aos direitos fundamentais[9].

Além da necessidade de promover igualdade no acesso à justiça, os recentes casos de ações estruturais em trâmite no STF afastam a ideia de que o Judiciário iria utilizar essas demandas para expandir ilimitadamente seus poderes. Antes, o Supremo busca dialogar não só com o Poder Público, como com os grupos afetados pelo litígio estrutural.

No julgamento de medida cautelar na ADPF nº 709, que trata das omissões da União na proteção das comunidades indígenas durante a pandemia de COVID-19, o relator, ministro Luis Roberto Barroso, fixou algumas medidas para a proteção dos grupos indígenas: criação de sala de situação para gestão de ações de combate à pandemia quanto aos povos em isolamento; necessidade de elaboração e monitoramento de um Plano de Enfrentamento da COVID-19 para os povos indígena, com a participação do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e de representantes das comunidades indígenas. Além disso, a Fundação Osvaldo Cruz e o Grupo de Trabalho de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) deveriam fornecer o apoio técnico necessário à elaboração do Plano [10]. Tanto o plano de ação, como seu monitoramento, deveria ser construído pela União, em parceria as entidades competentes e o grupo afetado. Não seria fruto de um solipsismo do juiz.

Outro exemplo de ação estrutural de caráter dialógico é a ADPF nº 635[11], conhecida como ADPF das favelas, que questiona quadro de constante violência policial nas favelas do Rio de Janeiro. A ação possibilitou uma audiência pública histórica, nos dias 16 e 19 de abril deste ano, com participações de representantes de movimentos sociais, organizações e entidades relacionadas aos direitos humanos e às vítimas de violência do Estado.

A legitimidade que se defende que as decisões estruturais apresentam está embasada na concretização do diálogo institucional, na medida em que se possibilita compreender por qual razão os poderes políticos decidiram de determinada forma, viabilizando que o processo de deliberação da Corte esteja mais alinhado com a   realidade   fática   e, consequentemente, seja mais bem concretizado. Dessa forma, o juiz assumiria um papel importante e desafiador na condução desse tipo de processo (não para ditar a solução definitiva, mas para conduzir o processo deliberativo)[12].

Nesse sentido, pontua-se que, em razão do inexorável diálogo institucional intermediado pelo magistrado, as demandas estruturais podem configurar uma forma de garantir cumprimento concretização do texto constitucional, pois esse tipo de atuação processual objetiva romper com o universo das minirracionalidades, visando instituir uma deliberação conjunta e mais realista do fenômeno social.

Dessa forma, enquanto a pós-modernidade se caracteriza pela produção de um discurso que não é mais compartilhado entre os indivíduos, o que dificulta a comunicação entre as mais diversas linhas sectárias, proporcionando o surgimento de “bolhas ideológicas”, que não conseguem apreender a realidade por completo, em toda a sua complexidade, além de poderem ser facilmente manipuladas[13], as demandas estruturais, as quais se tornaram mais comuns no Brasil após 2015, em razão do ajuizamento da ADPF nº 347, vêm na contramão do paradigma dominante, reforçando a importância da racionalidade no momento da deliberação.

Essa racionalidade, importante que se diga, não é mais marcada pela tentativa de manipulação da sociedade para se enquadrar em conceitos abstratos, criados pelo universo jurídico. Em verdade, assistimos ao processo invertido. Com as demandas estruturais, a linguagem constitucional ganha reforço, porque suas promessas se tornam mais próximas de serem cumpridas ao se olhar, por meio do diálogo, ao que é politicamente possível de ser feito.

Logo, os processos estruturais demarcam o que é de competência do direito e o que é de competência da política, viabilizando o surgimento de um Poder Judiciário mais próximo da realidade social. Afinal, a mola propulsora para início de toda e qualquer demanda estrutural é e sempre será o Direito[14], bem como as soluções pensadas para os problemas tratados em tais ações também são jurídicas, embora sejam mediadas pelas possibilidades e prioridades políticas, cunhadas na noção de juridicidade.

Assim, como uma espécie de freio à fragmentação dos discursos, à redução dos espaços de solidariedade, à fragmentação de interesses e às disputas econômicas individualizantes, que caracterizam o mundo pós-moderno[15], os processos estruturais, mediados por uma posição dialógica atenta à realidade social, inauguram uma nova forma de vislumbrar a função jurisdicional Estado. Nessa nova perspectiva, o Judiciário é mais consciente de suas possibilidades, na medida em que passa a reconhecer as profundas desigualdades no acesso à justiça e a ineficiência de insistir em um modelo de demandas individuais e desestruturais para tutelar direitos socioeconômicos. A outra alternativa é insistir na ilusória concepção de que grupos vulneráveis vão obter a proteção necessária nas chamadas instituições políticas tradicionais, ou que as ações individuais e não estruturais são suficientes para proteger os direitos desses segmentos sociais.

Conclui-se, portanto, estar diante de uma possibilidade de diálogo e não de uma quimera. De todo modo, se aos críticos das demandas estruturais, ainda permanecer a convicção de que o modelo proposto é uma utopia, que seja uma utopia como fala Eduardo Galeano, que sirva para nos impulsionar na atividade de caminhar em prol da efetivação dos direitos sociais a todos.

 

Notas e Referências

[1] VAN DER BROOCKE, Bianca; KOZICKI, Katya. Litígios estruturais e a tomada de decisão participativa: perspectivas para uma justiça eficaz e inclusiva. In: PAMPLONA, Danielle Anne; PINHEIRO, Daniella Maria; FACHIN, Melina Girardi; PASSOS, Rafaella Mikos. Novas reflexões sobre o Pacto Global e os ODS da ONU. Curitiba: NCA Comunicação e Editora, p.585-600, 2020, p.585.

[2] LIMA, Flavia Danielle Santiago; FRANÇA, Eduarda Peixoto da Cunha. Ativismo dialógico x bloqueios institucionais: limites e possibilidades do controle jurisdicional de políticas públicas a partir da Sentencia T-025/04 da Corte Colombiana. Argumenta Journal Law, n. 31, p. 209-243, jul./dez., 2019, p.212.

[3] VAN DER BROOCKE, Bianca; KOZICKI, Katya. Litígios estruturais e a tomada de decisão participativa: perspectivas para uma justiça eficaz e inclusiva. In: PAMPLONA, Danielle Anne; PINHEIRO, Daniella Maria; FACHIN, Melina Girardi; PASSOS, Rafaella Mikos. Novas reflexões sobre o Pacto Global e os ODS da ONU. Curitiba: NCA Comunicação e Editora, p.585-600, 2020, p.586.

[4] FRANÇA, Eduarda Peixoto da Cunha; SERAFIM, Matheus Casimiro Gomes; ALBUQUERQUE, Felipe Braga. Processos estruturais e COVID-19: a efetivação do direito à saúde em tempos de pandemia. Revista Culturas Jurídicas, v. 8, n. AOP, p. 1-29, p. 7, 2021.

[5]“ Há notícia, por exemplo, de que a Defensoria Pública de São Paulo, embora detenha legitimidade para o processo coletivo, propôs, de 2014 a maio de 2017, aproximadamente 61 mil ações individuais pleiteando vagas para crianças em creches (média de quase 20 mil por ano). O motivo dessa proliferação de ações individuais é simples e foi explicado por um defensor público: “Nós sempre conseguimos. Nunca perdemos uma ação”. VITORELLI, Edilson. Levando os conceitos a sério: processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas diferenças. Revista de Processo, v. 284, n. 28, p. 333-369, jan, 2018, p.341.

[6] BRINKS, Daniel M.; GAURI, Varun. The Law’s Majestic Equality? The Distributive Impact of Judicializing Social and Economic Rights. Perspectives On Politics, [S.L.], v. 12, n. 2, p. 375-393, jun. 2014.

[7] VIEIRA, Fabíola Sulpino. Direito à saúde no Brasil: seus contornos, judicialização e necessidade da macrojustiça. Texto para Discussão nº 2547, p. 57. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Brasil, 2020. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/9714. Acesso em: 26  mai. 2021.

[8] ROSSI, Júlio Cesar. “Processos (des)estruturais: a nova fórmula do ativismo judicial brasileiro. Empório do Direito. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/processos-des-estruturais-a-nova-formula-do-ativismo-judicial-brasileiro-1. Acesso em: 26 mai. 2021.

[9] SERAFIM, Matheus Casimiro Gomes. Compromisso Significativo: contribuições sul-africanas para os processos estruturais no Brasil. 2021. 166 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2021. p. 114-115

[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 709. Decisão monocrática sobre os pedidos cautelares. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Diário Oficial da União. Brasília, 2020. p. 33-35. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15343710124&ext=.pdf. Acesso em: 31 out. 2020.

[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635. Relator: Ministro Edson Fachin.. Diário Oficial da União. Brasília, 2019. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5816502. Acesso em: 27 mai. 2021.

[12] PINHO, Humberto dalla Bernardina de; CÔRTES, Victor Augusto Passos Villani. As medidas estruturantes e a  efetividade  das  decisões  judiciais  no  ordenamento  jurídico  brasileiro. Revista  Eletrônica  de  Direito Processual –Redp, Rio de Janeiro, v. 13, n. 13, p.229-258, 2014, p. 250

[13] KAKUTANI, Michiko. A morte da Verdade: Notas sobre mentira na era Trump. Intrínseca: Rio de Janeiro, 2018, p. 09.

[14] Afinal, toda demanda estrutural tem início por decorrência da ausência de efetivação de um direito sócioeconômico, cuja concretização é uma promessa de cunho jurídico. Logo, por um descompasso entre o direito e a realidade fática é que esse tipo de demanda emerge.

[15] GÉHENNO, Jean-Marie. O fim da democracia – um ensaio profundo e visionário sobre o próximo milênio. Tradução de Howard Maurice Johnson e Amaury Temporal. 2. ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 13.

 

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