Se a Constituição é utopia, nós somos utopistas, se a liberdade é sonho ou quimera, nós somos sonhadores, se o Direito é falácia, nós somos palradores ingênuos, se a verdade é demagogia, nós somos demagogos, se a justiça é devaneio, nós somos insensatos, se o contrato social é ficção e engodo, nós somos seus derradeiros abencerrages, se a separação de poderes é arcaísmo e velharia, nós somos os guardas desse museu.
Paulo Bonavides.
– I –
O novo utensílio sacado pelos neoprocessualistas (viés processual/procedimental do neoconstitucionalismo) são os denominados “processos estruturais”, cuja marca predominante é propiciar, fora da arena adequada, “mudanças em instituições ou políticas”.
Sob o fundamento de promover a resolução de lides coletivas (direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos), instaurar-se-ia uma espécie de processualidade capaz de originar decisões “fruto da atividade jurisdicional criativa”, levando em conta a “conclusão de que, a partir da legitimação estatal para atuar em conflitos típicos do Estado moderno”, o “apego irrestrito à legislação escrita assume papel secundário e insuficiente”[2], podendo o “juiz tomar a providência que considerar mais adequada ao caso concreto, esteja ou não expressamente prevista no texto legal”[3].
– II –
Para os “estruturalistas”, o processo passa a ser eminentemente dúctil e criativo (=by chance) e o devido processo legal (CF, artigo 5º, LIV) uma espécie de devido processo jurisdicional, sendo construído, manejado e controlado pela jurisdição à margem e à míngua de limites a serem implementados pela função legislativa. O sujeito controlado (=juiz) se transpassa em controlador (=juiz) e vice-versa num agir único e absoluto.
Não é disso que tratam os denominados processos coletivos regidos notadamente pelos artigos 91 usque 104 da Lei 8.078/90 e pela Lei 7.347/85, na concretização da tutela jurisdicional comunitária e, muito menos, a denominada “execução negociada”, pois não são fruto de “hipercriatividade institucional alternativa”[4] ou “proceduralização”, matriz teórica sob a qual a ideia básica é a de que o Poder Judiciário “aja como um verdadeiro árbitro de interesses, mediante a definição de condições de interação entre as instituições que consideram fazer jus à posição de decidir”, ao invés de conferir uma “solução material”, cabendo-lhe, em última análise, especificar, de acordo com quais procedimentos, as partes chegarão, por si mesmas, à solução negociada que considerem mais adequada”[5].
Néviton Guedes acerta quando afirma que “desde que alguns teóricos passaram a professar o dogma de que, além de dizer o Direito, os juízes têm condições de produzir justiça perfeita e acabada para todos os casos concretos, fomos caminhando progressivamente para esse estado de coisas” onde já se crê, aqui e ali, aqueles que de fato abraçam a ideia de que “já seria possível obter do Judiciário, em respostas certas e indiscutíveis (a quadratura do círculo da “única resposta correta”), entre outras maravilhas, honestidade na política, amor paternal e mesmo felicidade (tudo isso sem esforço pessoal ou custo coletivo)”[6].
Parece que a doutrina “neo” do Estado Constitucional despreza sem o menor constrangimento que magistrados “não são profetas, magos ou bruxos e, por isso mesmo, não dominam nenhuma ciência oculta que lhes permita, por mera habilidade hermenêutica, produzir coisas de palavras. O Judiciário não detém nenhuma pedra filosofal de onde possa operar milagres a partir do direito” e nem desfruta do “confortável lugar do bom mago, aquele que, nos contos de fadas, alcança a maravilha de produzir decisões que, parecendo não implicar custos ou dificuldades a ninguém, permite a todos viver felizes para sempre”[7].
Por não aceitarem o papel de coadjuvante do Poder Judiciário, a doutrina e parte significativa da magistratura nacional defendem “uma espécie de juiz que, indo além do direito posto, deve realizar a mal explicada ‘justiça social’ ou ‘justiça do caso concreto’, também não podem, para manter coerência, iludir o público, devendo prepará-lo para o incremento de técnicas e decisões que são, ainda que se negue, essencialmente políticas”[8].
Lamentavelmente, ao invés de incentivarmos a autocontenção do Poder Judiciário, acabamos por assimilar um discurso mal ou bem intencionado que eclode no interior da própria Academia, em que a “dificuldade contramajoritária do Judiciário, de que falava Bickel, se transforma em ‘virtude’; e a ‘virtude passiva’ dos juízes, defendida pelo mesmo grande jurista, vai sendo censurada como fraqueza institucional”. Em outras palavras, o Poder Judiciário, frente ao seu natural e justificado déficit de representação democrática, deveria autoconter-se nas “virtudes passivas”, testificando a sua atuação “ao largo das decisões e das políticas públicas democraticamente adotadas pelos que receberam o voto do eleitor (Executivo e Legislativo)”[9].
Alguns juristas, professores de direito, magistrados, membros do Ministério Público, procuradores e advogados, ao invés de pregarem, como líderes de uma religião, a predominância do desempenho do Poder Judiciário, fazendo da suposta ciência uma espécie de panfleto político, tal como dissertou recentemente Eduardo José da Fonseca Costa[10], deveriam se ocupar em restabelecer o locus do Poder Judiciário à “virtude passiva”, devolvendo-o ao “seu lugar de prudente recato”, sendo, assim, “mais do que provável que a sociedade lhe reconhecerá a legitimidade da autoridade perdida”[11].
Desconsideradas todas essas premissas, o Poder Judiciário deixa de operar com base na legalidade e imparcialidade, convertendo-se numa instituição que decide por e com critérios políticos e esta politização judicial a implicar, necessariamente, na parcialidade e no protagonismo.
Um standard peculiar e extremado do realismo moral tomou, por completo, o Brasil.
Para muito além da criação (=concretização e/ou revelação) do direito nos espaços permitidos pela Constituição Federal e legislação em geral, quer seja por meio de princípios e/ou cláusulas gerais, quer seja por meio de conceitos legais indeterminados – os quais não podem ser colmatados mediante diferentes posições no espectro político-ideológico e convicções ético-morais pelos intérpretes-aplicadores – parte considerável dos juristas pátrios fomentam uma postura ativista do Poder Judiciário de modo que este passa a legislar e a administrar, corrigindo, aniquilando e/ou constituindo direitos à margem e ao arrepio das normas e atos administrativos, metamorfoseando políticas públicas construídas na esfera dos Poderes Executivo[12] e/ou Legislativo, derrogando ou ab-rogando as espécies normativas de regência de cada área ou ramo do direito por meio de pseudos precedentes, inclusive, com força retroativa, interferindo, com essa postura, diretamente na previsibilidade normativa e na esperável segurança jurídica[13].
Pensamos que, ao intérprete, não cabe ignorar nem subverter aquilo que foi politicamente estabelecido pelo legislador (constitucional e/ou infraconstitucional) no momento de analisar tanto o programa normativo quanto o âmbito da norma dele extraível.
Com isso, reconhecemos que é perfeitamente possível ao julgador/intérprete/jurista caminhar com uma certa liberdade de adequação, um espaço de conformação do texto normativo à norma do caso concreto, desde que – e somente se – não haja uma tergiversação nos significados das palavras e expressões contidas nos textos legais, por melhores que sejam as intenções, os propósitos, os sentimentos ou as particulares visões ideológicas do interprete-aplicador, pois, se assim for, saímos do campo da discricionariedade (denominada regrada) e passamos para o campo da arbitrariedade[14].
Interpretar/aplicar o Direito não é uma atividade de pura “serendipidade” ou uma espécie de eureka aristotélica de sentidos da norma, mas a extração de possíveis significados. A interpretação, no ponto, é uma atividade de conhecimento por estabelecer que o intérprete reconhece os dados linguísticos preexistentes para a obtenção dos possíveis significados.
Não se olvida, claro, que entre os significantes normativos e os possíveis significados é capaz de existir um espaço de incerteza, indeterminabilidade ou vagueza própria da linguagem, cuja consequência é a dificuldade de intelecção do texto normativo. Todavia, sendo a interpretação uma atividade de conhecimento, serão aceitáveis concretizações que sejam justificadamente coerentes com o ordenamento jurídico e compatíveis com a dogmática jurídica, cujo papel primordial é reduzir os espaços de incertezas (lato sensu) possibilitando um controle[15] objetivo da interpretação conferida ao texto normativo.
A atuação do magistrado não deve sucumbir às tentações do jusrealismo (=judge-made law), que repele a Constituição-texto e a legislação-texto como limites de sentido e faz o direito depender de prévia decisão judicial, sem a qual o texto normativo torna-se apenas um enigma, sem qualquer orientação prospectiva ou valência de instância limitadora[16].
Em outros termos: o Direito, para o neoconstitucionalismo, ora é um conjunto de profecias sobre o que farão os juízes, ora é o que de fato eles fazem à margem da legislação (rule-nihilistis) e da dogmática jurídica, ou, tanto menos, desprezando-as.
Processos estruturais, tais como defendidos pela teoria neoconstitucionalista/neoprocessualista brasileira, revelam-se, a um só tempo, uma “invencível contradição performática: é defender a primazia da Constituição, violando-a”; é “uma espécie enrustida de ‘não-constitucionalismo’: um movimento ou uma ideologia que barulhentamente proclama a supervalorização da Constituição enquanto silenciosamente promove a sua desvalorização”[17].
Ressalte-se: o Constitucionalismo, movimento secular, garante o fortalecimento das instituições e, ipso facto, o sistema democrático de modo a promover as garantias fundamentais, o respeito à separação de funções[18], buscando, sobretudo, uma atuação interinstitucional de maneira democrática e dialógica entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário[19].
– III –
Processo é garantia constitucional contrapoder; transformá-lo em veículo para a realização dos desígnios estruturalistas moldados pela livre atuação da jurisdição é tergiversa-lo. É nitidamente reconhecer o processo como instrumento meneado pela jurisdição e de modo nenhum prestigiá-lo em seu loci natura: garantia constrajuridicional[20].
O epitetado processo estrutural é a nova fórmula para a implementação de posturas ativistas[21]. Com o qualificativo de solucionar litígios estruturais, ao menos no Brasil, tornou-se um roteiro perigoso em busca de uma suposta “legitimidade democrática”, a qual, para atingir a efetividade prometida transcende limites ou marcos legais, obrando como se legislador fosse.
Com o movimento neoconstitucionalista, os adeptos do processo estrutural não são simpáticos à legalidade. Ideologizam-na com requintes extra legem. Fazem-se “compositores” do direito fora dos espaços de discricionariedade previstos nos textos normativos (=limites sintáticos, semânticos e lógicos).
Vamos nos ater, simplesmente, em alcançar com discernimento a modernidade e com ela seus desígnios: (i) o respeito e a preservação da legalidade; (ii) a garantia dos direitos fundamentais insculpidos em nossa Constituição Federal e em tratados/convenções internacionais; (iii) a preservação da separação funcional dos poderes (=espécie de direito fundamental a assegurar a desconcentração e o controle do exercício do poder) e, (iv) a fiscalização de constitucionalidade e seus limites interpretativos.
Metaforicamente, o intérprete deve ser comparado ao músico: ao executar uma peça de qualquer estilo poderá externar sua técnica de expressão artística, mas, ao fazê-lo, não lhe é dado alterar a melodia e a estrutura harmônica da obra; se assim agir não interpreta; compõe outra.
Ao Poder Judiciário não é assegurado a elaboração de políticas públicas ou institucionais; sua função é implementá-las tais como idealizadas ou declará-las inconstitucionais ou, ainda, conferir-lhes uma interpretação conforme, com todos os cuidados necessários para que não passe a engendrá-las, transformando a interpretação jurídica em construção política à margem das arenas adequadas (=poderes executivo e legislativo).
Façamos da honrada dogmática[22] uma arma de combate epistemológico e orientador[23] para nos defendermos desse (neo)predador do Estado Democrático de Direito e do Constitucionalismo – ambos construídos às duras penas no caminhar do processo civilizatório – o que, por si só, fará valer todo o esforço e o sacrifício dedicados por cada um de nós, mesmo que aparentemente estejamos lutando sozinhos contra um crescente “Estado Juristocrático de Direito”, no seio do qual parcela significativa de funções são deliberadamente subtraídas dos demais poderes e agregadas ao Judiciário, comprometendo-se, a norma estrutural-estruturante na qual o poder estatal encontra sustentação democrática.
Notas e Referências
[1] Parte das ideias aqui expressadas foram lançadas no texto Neoconstitucionalismo: do protagonismo judicial ao cataclismo da separação de poderes encartado na obra coletiva coordenada por Antônio Carvalho Filho e Eduardo José da Fonseca Costa denominada Direito, processo e garantia: estudos em homenagem à J. J. Calmon de Passos. Londrina: Thoth, 2021.
[2] OSNA, Gustavo. Nem “tudo”, nem “nada” – Decisões estruturais e efeitos jurisdicionais complexos. In: ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marco Félix (Org.). Processos estruturais. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 200-201.
[3] SILVA, Ricardo Alexandre da. Condenação e cumprimento de sentença. São Paulo: Conceito Editorial, 2012. p. 177.
[4] COSTA, Eduardo José da Fonseca. A execução negociada de políticas públicas em juízo. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 59, p. 109-136. jan./mar. 2016, p. 132.
[5] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 4ª Ed. São Paulo: RT, 2020, p. 1.481.
[6] Juízes não são deuses nem profetas, por óbvio! São Paulo. Consultor Jurídico. 18 de nov. 2014. Disponível em: https://bit.ly/30U9eDB.
[7] GUEDES, Néviton, op. cit., passim.
[8] Ibid., passim.
[9] Ibid., passim.
[10] “(...) muitas vezes, fazem policy disfarçada de science. Vendem obliquamente planos estratégicos de otimização jurisdicional como se fossem interpretações científicas da Constituição e das leis procedimentais. São menos processualistas [proceduralists] que jurisdicionalista [jurisdictionalists], menos juristas [jurisconsults] que políticos [politicians]. De todo modo, quem concebe um modelo de jurisdição, concebe outrossim um modelo de processo. Existe correlação linear entre uma coisa e outra. A toda teoria sobre a jurisdição corresponde uma teoria sobre o processo, e vice-versa. Nem sempre o processualista as correlaciona explicitamente. A propósito, por vezes sequer tem consciência dessa correspondência. Porém, uma teoria sempre traz consigo a outra em potencial. Uma se subentende na outra. Enfim, o par jurisdição-processo apresenta dependência mútua. E essa interdependência é uma expressão do princípio republicano (...) Pudera: o vínculo jurisdição-processo é um vínculo poder-contrapoder. Onde há um poder do Estado [+], ali há de haver as respectivas garantias contraestatais, que o limitam. Decididamente, não pode haver poder incontrastável” (Processo e política. São Paulo. Empório do Direito. 24 jul. 2020. Disponível em: https://bit.ly/2CiyLOv).
[11] GUEDES, Néviton. Op. cit., passim.
[12] Não são incomuns decisões judiciais – monocráticas e colegiadas – proferidas por membros dos mais diversos tribunais da federação que causam graves lesões às políticas públicas já instauradas ou em vias de implementação, uma vez que, substituindo-se à Administração, o Poder Judiciário desconsidera critérios técnicos inerentes à atividade regulatória típica de Estado, suspendendo atos administrativos (legítimos e legais) e irrompendo lesões à ordem pública (acepção administrativa), tornando inviáveis a plena efetivação das respectivas políticas públicas.
[13] A respeito do tema, a contribuição de Dimitri Dimoulis auxilia na derrubada do caráter mítico da decantada busca por segurança jurídica como um fim em si mesmo, in verbis: “É difundida a opinião que o direito moderno objetiva e/ou efetivamente garante a segurança jurídica. Ao mesmo tempo, constata-se que o termo é polissêmico, adquirindo vários significados e operando tanto no registro normativo como no descritivo. Basta indicar que um estudo encontrou mais de dez significados do termo, com importantes diferenças em sua extensão e consequências jurídicas (...). A segurança jurídica é resultado (psicológico) de uma configuração jurídica cujo elemento principal é a previsibilidade das consequências jurídicas. Isso simplifica o debate. Devemos analisar uma situação objetiva, e não uma sensação, como é a segurança, que depende de fatores tanto racionais como irracionais. (...) O nosso esclarecimento conceitual indicou que, apesar do ceticismo em relação à possibilidade de os sistemas jurídicos garantirem a segurança, isso é possível e há técnicas normativas que permitem seu fortalecimento. A segurança deve ser entendida como imperativo de previsibilidade e de igual tratamento abandonando a desmesurada pretensão da automaticidade da estabilidade”(...) O argumento da segurança jurídica só convence se lhe for atribuído o sentido da preservação de competências constitucionalmente distribuídas, independentemente de seu grau de concretude e estabilidade e sem conferir ao aplicador poderes de criação de normas que possa contrariar as superiores. Essa é uma versão minimalista, formalista e não apologética do argumento da segurança jurídica. Não se trata de preservá-la porque constitui um valor político ou moral. Tampouco se trata de exigir seu fortalecimento porque um sistema jurídico deve oferecer alto grau de segurança. A segurança jurídica simplesmente indica um conjunto de normas que fazem parte do ordenamento jurídico e devem ser respeitadas por essa razão, tal como se joga futebol respeitando as regras” (Positivismo Jurídico: teoria da validade e da interpretação do direito. 2ª Ed. Livraria do Advogado, 2018, p. 119-122).
[14] Aqui vale a ideia de Humberto Ávila: “O crucial é demonstrar que o intérprete – seja ele o legislador, o administrador ou o julgador – não é livre nem para definir os fins, nem para escolher os meios. Os fins a serem perseguidos não são os fins subjetivamente definidos pelo próprio intérprete, mas aqueles estabelecidos peça Constituição. E os meios a serem escolhidos não são os meios arbitrariamente escolhidos pelo próprio intérprete, mas aqueles eleitos pela Constituição. Desse modo, se a Constituição regrou determinada matéria referindo diretamente aquilo que é permitido, proibido ou obrigação, não cabe ao intérprete, mesmo que se socorrendo de um princípio, substituir o que a Constituição diretamente definiu como permitido, proibido ou obrigatório – repita-se, por melhores e mais cativamentes que sejam suas intenções” (Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 24.
[15] Realçando a importância da dogmática jurídica, destacamos a lição de Tércio Sampaio Ferraz Jr: “Observamos, nesse sentido, que a Dogmática surge, na relação de aplicação, quando os seus dois polos adquirem um caráter contingente. De um lado, em termos de tomada de decisão, os casos podem ou não existir, podem ser interpretados de um modo ou de outro. E de outro, com o fenômeno da positivação, as próprias normas podem ser postas desta ou daquela maneira. Ora, quando ambos os polos da relação ficam contingentes, a própria relação de aplicação se torna contingente, pois ficamos obrigados a reconhecer que não há só́ uma, mas várias possibilidades de se aplicar o Direito. Surge daí́ a necessidade socialmente fundada de um instrumento estabilizador dessa dupla contingência, na forma de critérios de relacionamento da relação de aplicação. Esse instrumento é a Dogmática Jurídica. Sua função social, neste sentido, está na limitação das possibilidades de variação na relação de aplicação, quando seus dois polos se tornaram contingentes. Observa-se, assim, que a Dogmática não é um simples eixo de mediação entre normas e fatos nem se resume no desenvolvimento de técnicas de subsunção do fato à norma, como chegaram a dizer os representantes da Jurisprudência dos Conceitos e da Escola da Exegese. Sua função repousa, outrossim, no controle de consistência de decisões tendo em vista outras decisões; em outras palavras, no controle de consistência da decidibilidade, sendo, então, a partir dela que se torna viável definir as condições do juridicamente possível” (Função Social da Dogmática Jurídica. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 96-97).
[16] TAVARES, André Ramos. Paradigmas do judicialismo constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012p. 31.
[17] ÁVILA, Humberto. Neoconstitucionalismo: entre a ciência do direito e o direito da ciência. Neoconstitucionalismo: entre a ciência do direito e o direito da ciência. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE). Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 17, jan/mar. 2009, p. 19.
[18] O termo “separação de poderes” empregado no texto leva em conta tanto as funções típicas e atípicas desenvolvidas quanto os possíveis compartilhamentos e as suas respectivas formas de controle (arranjo constitucional).
[19] No ponto, a precisa advertência de Jeremy Waldron ao se posicionar contrariamente a supremacia jurisdicional (espécie de controle judicial forte e nefasto ao diálogo institucional), a qual, como visto, encontra-se na base da teoria neoconstitucional: “La supremacía legislativa rara vez está acompañada por la creencia de los legisladores de que no tienen nada que aprender de las otras ramas de gobierno; y en los casos en que la legislatura permanece soberana, pero en que se le otorga un papel al poder judicial, los jueces tienen mayor probabilidad de ser escuchados en comparación a la probabilidad que tendrían los legisladores de ser escuchados en un sistema en que los jueces tuvieran la última palavra”. (...) “Sin embargo, creo que, en general, haríamos bien en no aducir la posibilidad de diálogo como un argumento a favor del control judicial fuerte. El control judicial fuerte tiende a cerrar el diálogo. Lo que queremos es un sistema en el que los tribunales expresen su opinión en cuestiones constitucionales; cuando lo hagan, las legislaturas normalmente las escucharán, aunque no adhieran de manera automática, basándose en el prestigio asociado a la función judicial. Sin embargo, los tribunales y sus defensores están tan dominados por sus mitos sobre la deliberación legislativa y las opiniones de los legisladores sobre los derechos que son incapaces de devolver el favor; es especialmente improbable que lo hagan cuando saben que pueden prevalecer en el sistema constitucional sin tener que escuchar, y sin tener que prestar deferência” (WALDRON, Jeremy. Contra el gobierno de los jueces: Ventajas y desventajas de tomar decisiones por mayoría en el Congreso y en los tribunales [Derecho y Política] [Spanish Edition]. Siglo XXI Editores. Edição do Kindle).
[20] Para uma incursão ao garantismo processual: COSTA, Eduardo José da Fonseca. Processo e garantia. Londrina: Thoth, 2021.
[21] O sentido de “ativismo judicial” quer se referir a hipótese de o Poder Judiciário (=juiz ou Tribunal) assumir competências que não são atribuídas a ele. É dizer, com Virgílio Afonso da Silva: “quanto mais as assume, tanto menos competências tendem a ter os outros poderes (...). O que está em jogo não é a frequência com que tribunal usa essas competências, mas o simples fato de poder usá-las quando entender conveniente e oportuna” (Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021, p. 510). Em outros termos: “ativismo compreendido como o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesses) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos)”, com adverte Elival da Silva Ramos (Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p 129).
Portanto, a marca indelével do nosso conceito de ativismo judicial é a usurpação e o uso estratégico de funções/atribuições e competências alheias às previstas nos textos legais (constitucional e infraconstitucional), características essas que permeiam, não raro, os denominados “processos estruturais” no Brasil.
[22] A dogmática jurídica deve ser asséptica a influxos ideológicos do jurista que a desenvolve. A ela interessa única e exclusivamente o direito fruto do ajuste/pacto/arranjo institucionalizado, independentemente da matiz político-ideológica perfilhada em dado momento histórico. Para nós, a dogmática que não se afina a essas características, ou seja, que se encontra desgarrada dos conceitos e da cientificidade que do direito posto são exigidos, daquela não se tratará, mas cuidar-se-á, isso sim, de pura verve ideológica.
[23] “Por um lado, a dogmática é objeto de conhecimento teórico, por outro atua como orientação para a práxis, projetando-se diretamente sobre a jurisprudência e a produção de novo material jurídico. Por ser a disciplina pela qual prática e teoria jurídicas se comunicam, recai sobre ela a responsabilidade em fornecer métodos e respostas para a aplicação e interpretação de conceitos controversos. Aliás, a própria existência da dogmática jurídica pode ser explicada pelo fato de o Direito não se manifestar sempre [um] como bloco homogêneo, preciso e transparente. No entanto, do fato de a dogmática operar como instância intermediária entre teoria e práxis jurídicas não significa que ela está irremediavelmente apta a proporcionar esses métodos e respostas. A multiplicidade de conceitos controversos na legislação e em decisões jurídicas é uma das causas do interesse da dogmática jurídica por temas da Teoria do Direito. Ainda que tais disciplinas tenham tarefas e métodos próprios, não se trata de universos apartados e distantes. Ao contrário, são níveis de racionalidade reciprocamente complementares. Em um paralelo com a famosa expressão de Kant, poderíamos dizer que a teoria sem dogmática é vazia, mas a dogmática sem teoria é cega” (BARBA, Rafael Giorgio Dalla. Desafios metaéticos à doutrina do processo justo. Revista de Processo – REPRO. São Paulo, RT, vol. 308. out./2020, p. 2. Versão eletrônica).
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