Desvendando o quebra cabeça dos Direitos dos Autistas: autismo e o Direito, uma conversa necessária (Parte 1)

05/05/2017

Por Rodrigo Bahia de Souza – 05/05/2017

Leia também a Parte 2

Ah! Se o mundo inteiro me Pudesse ouvir Tenho tanto prá cantar Dizer que aprendi.. 

Ver na vida algum Motivo prá sonhar Ter um sonho todo azul Azul da cor do mar... Música “Azul da Cor do Mar”, de Tim Maia.

O universo do autismo é um verdadeiro quebra-cabeça, tanto para os profissionais da área da saúde (Psicólogos, Médicos, Psiquiatras, Terapêutas Ocupacionais, etc.), bem como hoje também representa um desafio para ser encarado pelos profissionais do Direito.

Duas pesquisas extraídas da Revista Autismo[1] mostram que, DE acordo com pesquisa feita nos EUA aferida pelo Center of Diseases Control and Prevention os casos de autismo nos Estados Unidos subiram para 1 em cada 68 crianças com 8 anos de idade. Já no Brasil, o Ministério da Saúde (em recente pesquisa divulgada em 27 de Março de 2014, com dados referentes a 2010) estima-se que houve um aumento de 30% em relação aos dados anteriores do ano de 2008, ou seja, 1 caso de autismo a cada 88 crianças.

Mesmo o autismo podendo ser detectado a partir dos 2 anos de idade, a maioria das crianças foi diagnosticada após os 4 anos.

Para alertar o mundo sobre os números alarmantes dos crescimentos de casos de autismo, a Organização das Nações Unidas em 2008 instituiu o dia 2 de Abril de cada ano como o “Dia Mundial de Conscientização do Autismo” (World Autism Awareness Day). Também esta data comemorativa se festeja com a coloração azul, desta feita diversos prédios e monumentos ao redor do mundo são iluminados com a cor Azul.

No Brasil, estima-se que dos aproximadamente mais de 200 milhões de habitantes, possua cerca de 2 milhões de pessoas com autismo. Embora numerosos, os milhões de brasileiros autistas e seus familiares ainda passam por muitas dificuldades no que tange ao acesso à justiça, principalmente no que se refere à saúde e educação.

Por esse motivo neste estudo se faz interessante referenciar o filme “Uma Lição de Amor”, no qual o ator Sean Pean interpreta Sam Dawson, um pai com problemas mentais que toma conta de sua filha Lucy (interpretada pela atriz Dakota Fanning) com ajuda de um grupo de amigos que possuem algum tipo de deficiência mental ou física. Quando a pequena Lucy completa 7 anos de idade começa a ultrapassar intelectualmente o seu pai, o que desperta a atenção na equipe de Assistentes Sociais que ingressam em juízo para retirar dele a Guarda da criança. Para se defender, Sam contrata a advogada Rita Harrison (Michelle Pfeiffer), que aceita o caso como um desafio profissional.

1. Conceituando juridicamente pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA)

O fato é que existem muitas famílias que ao se depararem com uma demanda judicial envolvendo Pessoas com Deficiência sofrem com a falta de profissionais capacitados para atender tais demandas, pois elas, via de regra, não se restringem apenas à seara jurídica, sendo necessária uma participação de uma equipe de multiprofissionais tanto na área jurídica, quanto nas áreas da saúde para que seja de fato efetivado o Direito de Acessibilidade e Inclusão destas pessoas na sociedade.

1.1 Autismo e a Constituição e normas brasileiras de Proteção à Pessoa com Deficiência

A Constituição Federal faz a inclusão da Pessoa com Deficiência lá pelo seu art. 203, V inserindo o junto as atribuições da Assistência Social, senão vejamos: 

Art. 203 CF/88:  A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos

V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir família, conforme dispuser a lei.

Não à toa a nossa Constituição de 1988 leva o apelido de “constituição cidadã”, haja vista que, teve a sensibilidade de incluir todas as diversas categorias dos extratos sociais da sociedade brasileira, e de forma acertada também previu que os deficientes também fazem jus a serem considerados pessoas sujeitos de direitos.

1.2 A Convenção Internacional de Nova York sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto 6.949/09), como instrumento normativo internacional de Proteção à Pessoa com Deficiência no Brasil.

A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, foram incorporados em nosso ordenamento jurídico com a ratificação do Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009.

Lembrando que, de acordo com o art. 5º, § 2º, da CF, os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Além da assinatura, referendo e ratificação, o quórum de aprovação em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, em cada Casa do Congresso Nacional, atribui equivalência do teor do tratado com as emendas constitucionais (art. 5º, § 3º, da CF).

O referido decreto é o único tratado que possui esta natureza jurídica formal, por força do momento de sua aprovação (posterior à EC n. 45/2004) e por ter atingido o quórum exigido na citada Emenda.

A Convenção retrata os princípios consagrados na Carta das Nações Unidas, que reconhecem a dignidade e o valor inerentes e os direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana como o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Desses princípios, decorre a constatação de que toda pessoa é titular de todos os direitos e liberdades ali estabelecidos, sem distinção de qualquer espécie.

Os direitos estabelecidos nessa Convenção são mais amplos do que os expressamente previstos em nossa Constituição da República e, por isso, complementam nosso texto Constitucional, agregando direitos para as pessoas com deficiência, e deveres para o Poder Público, no sentido de estruturar a sociedade para efetivá-los. Estando a pessoa protegida, poderá exercer todos os direitos fundamentais em sua plenitude e com todas as suas características: universalidade, indivisibilidade, interdependência e inter-relação

Todavia, a Constituição não chegou a definir quem seriam necessariamente as “Pessoas com Deficiência”, por esta razão nos valemos do art. 5º, par. 3º do texto constitucional que insere os Tratados e Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos no mesmo status de Emenda Constitucional, portanto com força legislativa hierárquica equivalente aos dispositivos constitucionais, tornando cogente a “releitura” de todo e qualquer norma infraconstitucional que tenha relação com o tema, seja revogando normas incompatíveis, seja no sentido da exigência de uma interpretação conforme todos os atos normativos ordinários.

Assim sendo nos remetemos então ao Dec. 6.949/09 que recepciona no ordenamento jurídico brasileiro a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que em seu art. 1º nos traz a definição de pessoa com deficiência: “são aquelas que têm impedimentos de de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.”

Como o autismo é uma deficiência mental, logo tem proteção constitucional e internacional pela normativa interna e externa. Agora resta a pergunta, como o Direito define a pessoa com autismo? Qual seria o conceito jurídico da pessoa Autista?

2. O autismo no mundo jurídico: em busca de conceitos, respostas e enigmas.

Na película “Rain Man” o vendedor Charlie (Tom Cruise) recebe a notícia da morte de seu pai e retorna à sua cidade natal. Chegando lá, descobre que tem um irmão autista e que seu pai deixou uma herança de três milhões de dólares à instituição onde ele, Raymond (Dustin Hoffman), reside. Ele então leva-o até Los Angeles para, com a ajuda de seus advogados, disputar sua parte da herança e se livrar da custódia do irmão. Porém, durante a viagem Charlie reconhece que Raymond pode não ser irmão que ele queria, mas se tornou o irmão que ele precisa.

O autismo em si, seja na ficção, na literatura médica, ou, e mais ainda, na vida real, é uma grande jornada pelo desconhecido.

Etimologicamente[2] “autismo” origina-se da palavra grega “autós” que significa “próprio” ou “si mesmo” e foi introduzido na literatura científica em 1911 pelo médico psiquiatra suíço Paul Eugen Bleuler que ao descrever a perda do contato do indivíduo com a realidade, um dos sintomas da esquizofrenia, utilizou o termo “autismo”

Por esse motivo uma das sintomatologias é a dificuldade de interação social; muitos não verbalizam palavras; há a ausência de contato visual com o interlocutor; maior facilidade em lidar com as áreas lógico-matemáticas, artes e afins e problemas sensoriais bem recorrentes.

2.1 Conceito jurídico do autismo: revelando uma natureza jurídica

Conforme GALINDO[3] (2012) é possível a adoção de um seguinte conceito jurídico-doutrinário para o autismo, qual seja:

O autismo, ou melhor, o transtorno do espectro autista, consiste em um conjunto de síndromes complexas, caracterizadas geralmente por problemas de excessivo isolamento individual e dificuldades de interação e desenvolvimento socioafetivo por parte de seus portadores [...] Seu grau é bastante variável – de leve a grave – e é um transtorno mais comum do que se imagina, pois há muito desconhecimento de seus caracteres por parte da própria classe médica  e, consequentemente, ausência de diagnóstico em muitos casos. É um transtorno que afeta a sociabilidade e o desenvolvimento do indivíduo. Dentre outros sintomas, dificuldades na linguagem falada comunicativa e os problemas sensoriais são muito comuns. É mais recorrente em homens do que em mulheres (4:1), e os acometidos da síndrome necessitam de intervenções terapêuticas diversas, sendo as mais comuns a psicológica, fonaudiológica e a ocupacional.

O filme australiano “Sei Que Vou Te Amar” retrata bem a problemática do autismo com uma verossimilhança não só do comportamento autista, bem como da problemática na família, como quando ocorrem acessos de fúria, descontrole, hiperssexualização das condutas, comportamentos repetitivos, autoflagelamento, dentre outros aspectos clínicos notáveis na síndrome. Uma película bem construída tanto no enredo, quanto na atuação fidedigna do ator que interpreta o autista.

Na película temos o personagem Thomas Mollison (Rhys Wakefield) um jovem que está próximo dos seus 16 anos. Seu pai (Erik Thomson) está no exército e ele e sua família acabaram de se mudar para uma nova cidade. Sua mãe (Toni Collete) está grávida e seu irmão mais velho, Charlie (Luke Ford), tem autismo e está passando por problemas da adolescência. Quando a gravidez da sua mãe está próxima do parto, Thomas fica responsável por Charlie, o que o desagrada muito, principalmente quando o irmão atrapalha o seu relacionamento com Jackie (Gemma Ward), uma nova amiga. Um confronto de família que o levará a uma viagem repleta de novos compreendimentos, frustações e angústias.

O autismo, cientifica e clinicamente falando é conceituado no Manual de Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados da com a Saúde da Organização das Nações Unidas como na classe de CID-10[4], especificamente na CID 10 F.84 na classe de Transtornos Globais do Desenvolvimento: “uma disfunção neurológica de base orgânica, que afeta a sociabilidade, a linguagem, a capacidade lúdica e a comunicação”. Portanto o termo mais correto para se distinguir uma pessoa com autismo é dizer que ela é Portadora de Transtorno Geral do Desenvolvimento do Espectro Autista.

Segundo GRANDIN[5] (2015) o DSM-IV, que é o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, classifica o diagnóstico do autismo em um modelo chamado triádico, ou seja, obedecendo três critérios:

a) Prejuízo na interação social

b) Prejuízo na comunicação social

c) Padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamentos, interesses e atividades.

O DSM-V[6] já traz um modelo diádico, com a presença de apenas dois elementos:

a) Deficits persistentes na comunicação social e interação social

b) Padrões restritos e repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e atividades.

As sintomatologias, listadas pelo autismo infantil[7], podem ser enumeradas conforme os padrões da DSM-III:

a) Surgimento em 30 meses;

b) Ausência geral de responsividade às pessoas;

c) Grandes déficits no desenvolvimento da linguagem;

d) Quando a linguagem está presente, padrões peculiares de fala, como ecolalia (repetição de sons) imediata e atrasada, linguagem metafórica e inversão pronominal;

e) Reações estranhas a diversos aspectos do desenvolvimento, p.ex., resistência a mudança, interesses peculiares ou apego a objetos animados ou inanimados;

A lei 12.764/12 acompanha a literatura médica e clínica, posto que em seu art. 1º §1º incisos I e II e §2º consideram a pessoa com transtorno do espectro autista aquela portadora de síndrome clínica caracterizada pela deficiência persistente e clinicamente significativa:

a) Da comunicação

b) Da interação social

Manifestada por:

a) Deficiência marcada de comunicação verbal e não verbal usada para interação social;

b) Ausência de reciprocidade social;

c) Falência em desenvolver e manter relações apropriadas a seu nível de desenvolvimento

d) Padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades, manifestado por comportamentos

d.1) Motores ou verbais estereotipados ou

d.2) Sensoriais incomuns

e) Excessiva aderência a rotinas

f) Padrões de comportamento ritualizados

g) Interesses restritos e fixos

E no seu § 2o a lei considera a pessoa com transtorno do espectro autista como pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais.

Portanto podemos observar que o inovador instrumento normativo brasileiro avançou e muito na compreensão do entendimento das peculiaridades inerentes ao comportamento e o modo de ser da pessoa com transtorno do espectro autista, inclusive incluindo-os na classe de pessoa com deficiência para todos os efeitos legais.


Notas e Referências:

[1] JUNIOR, PAIVA. Casos de autismo sobem para 1 a cada 68 crianças. Disponível em: http://www.revistaautismo.com.br/noticias/casos-de-autismo-sobem-para-1-a-cada-68-criancas. Acesso em 10 de Abril de 2017.

[2] FONSECA, Maria Elisa Granchi. Guiando pais e profissionais na abordagem teacch. Pirassununga: São Paulo, 2007.p.3

[3] GALINDO, Bruno In FERRAZ, Carolina Valença [et. al]. Manual dos Direitos da pessoa com deficiência. São Paulo: Saraiva. 2012. p. 105

[4] World Health Organization (Organização Mundial da Saúde) – ICD – 10. Disponível em http://www.who.int/classifications/icd/en/. Acesso em: 14 de Abril de 2017.

[5] GRANDIN, Temple. PANEK, Richard. O cérebro autista [recurso eletrônico]. Tradução Maria Cristina Torquilho Cavalcanti. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Record, 2015. p.76

[6] Idem. p.76

[7] Idem.  p. 15


Rodrigo Bahia de SouzaRodrigo Bahia de Souza é Advogado Criminalista e Civilista. Pós-graduando em Ciências Criminais pelo CESUPA (Centro Universitário do Pará). Graduado em Direito pela UNAMA (Universidade da Amazônia). Membro da Comissão de Segurança Pública OAB/PA e da Comissão de Defesa da Pessoa com Deficiência OAB/PA. Membro do Instituto Paraense do Direito de Defesa e do Grupo de Estudos Direito Penal e Democracia..


Imagem Ilustrativa do Post: puzzle // Foto de: Theodore C // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/cyclops-photo/5374246316

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito. 


 

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