Coluna Empório Descolonial / Coordenador Marcio Berclaz
“Há quem precisa de heróis, feras que matam guerras e choram na volta ao lar” (Baihuno, Belchior)
Há muito tempo se sabe que a história é um baú de novidades, tendo ciência disso, quando um evento se apresenta como novidade, cabe indagar a novidade da história e a história da novidade.
A operação Lava-Jato ocupa um espaço significativo na história recente, concentrou esforços e esperanças no combate à corrupção, tarefa explícita que desenrola com êxitos. Justamente pelo tamanho dos seus efeitos cabe uma reflexão profunda sobre ela, capaz de atingir também os feitos ocultos, as pretensões dos seus agentes e os efeitos diretos e colaterais por ela desencadeados.
De plano já são manifestas as peculiaridades desta “ação” que congregou Polícia, Federal, Ministério Público Federal em um consórcio que também incluía, de forma velada o Judiciário Federal, conforme o que foi revelado pelo site “The Intercept”. A combinação de forças e consensos institucionais somada a uma aplicação criativa da lei penal e processual traz indagações sobre: os limites da relação institucional entre Polícia Ministério Público e Judiciário; o sentido da segmentação em atores diversos e divergentes para execução das tarefas acusatória, defensória e julgadora no processo penal, e ainda, sobre a capacidade de dissociação entre interesses político-eleitorais e os interesses institucionais no funcionamento sistema de justiça.
“República do Galeão” de Curitiba e o “mar de lama”: o udenismo togado e tuítado
“Lava Jato tem melhores publicitários do que juristas” (Gilmar Mendes)
A adoção do slogan “República de Curitiba”, embora pareça, não é casual, talvez inconsciente, mas de todo modo, ela revela a vinculação com práticas políticas já conhecidas que se autointitulavam portadoras da solução ao problema da corrupção, tido como algo a ser sanado pela punição e extirpação dos agentes corruptos. Para realizar a tarefa de depuração da política, os agentes salvacionistas não poderiam ser estorvados por disposições legais ou hierárquicas, para isso, a Lava Jato apostou na arregimentação de publicidade, posta na forma de informação, através da parceria com a mídia que alimentou a cruzada dos atores da Lava Jato na busca pela popularidade que os empoderou. Já em 2006, ao interpretar a operação mani pulite, Sérgio Moro indica essa estratégia ao justificar a existência de vazamentos na operação italiana:
Os responsáveis pela operação mani pulite ainda fizeram largo uso da imprensa. Com efeito: Para o desgosto dos líderes do PSI, que, por certo, nunca pararam de manipular a imprensa, a investigação da “mani pulite” vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no “L’Expresso”, no “La Republica” e outros jornais e revistas simpatizantes. Apesar de não existir nenhuma sugestão de que algum dos procuradores mais envolvidos com a investigação teria deliberadamente alimentado a imprensa com informações, os vazamentos serviram a um propósito útil.[1]
Em seguida no mesmo artigo, Sérgio Moro coloca a mídia como ator importante na estratégia de combate à corrupção:
A publicidade conferida às investigações teve o efeito salutar de alertar os investigados em potencial sobre o aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações. Mais importante: garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados, o que, como visto, foi de fato tentado. Há sempre o risco de lesão indevida à honra do investigado ou acusado. Cabe aqui, porém, o cuidado na desvelação de fatos relativos à investigação, e não a proibição abstrata de divulgação, pois a publicidade tem objetivos legítimos e que não podem ser alcançados por outros meios. As prisões, confissões e a publicidade conferida às informações obtidas geraram um círculo virtuoso, consistindo na única explicação possível para a magnitude dos resultados obtidos pela operação mani pulite.[2]
Fruto desta relação entre mídia, acusadores e julgador da Lava Jato, a popularidade dos protagonistas disparou, formou-se uma visão messiânica sobre estes agentes públicos, a qual foi dedicadamente nutrida por eles, usando dos mecanismos mais absurdos de promoção pessoal entre aqueles que viam na condenação de figuras políticas influentes a solução para o problema da corrupção.
Força e tarefa da lava-jato: o protagonismo da instrumentalidade
Alicerçada na opinião pública a “operação lava-jato” ganhou uma personalidade própria, ancoradouro do personalismo dos seus agentes, que atuavam desbragadamente sem a devida definição dos limites institucionais, nela Ministério Público, Justiça Federal e Polícia Federal aparecem como sócios em um consórcio justificado pelo combate à corrupção. Tal combate não poderia ser feito pelos meios convencionais, já manjados pela expertise corruptiva, assim, “É sabido que a Lava Jato não é uma simples operação. Para os seus membros, é uma Instituição. Quase uma entidade metafísica. E, na prática, um poder autônomo.”[3]
A força da operação Lava Jato era dada, em grande parcela, pela adesão da massa ao combate à “roubalheira”, a qual seria encarnada por alguns políticos. Ao inflar o ardor de um determinado campo político, a Lava Jato incorreu em uma ação política fomentada por interesses políticos e econômicos, ora desnudos pelo “The Intercept”. O apoio de parte da opinião pública era dado em função da busca pela execração moral e a condenação penal de algumas figuras políticas, desse modo, o veredicto vinha manifesto antes da sentença judicial, se esta a contrariasse, a força da popularidade dos membros do consórcio da Lava Jato se esvairia, com o risco de que a fúria da claque mudasse de direção.
Com isso a Lava Jato alicerçava-se na popularidade como mecanismo de obtenção de resultados desejados, em decorrência, a atuação judicial, mecanismo de arbitrar culpas, passou a função de executar penas por culpas impostas previamente, na mesma toada, o titular da ação penal passou a ser um depurador político. Ambos, expressando um “senso de justiça e ética” próprios em uma lógica maniqueísta que nega direitos ao inimigo político.
A força da Lava Jato vinha, em grande parte, da tarefa política implícita que desempenhava, cumprida essa tarefa velada, a “redenção moral da política” pode ficar para depois. Assim, se descobre o caráter instrumental das corporações públicas no jogo político, Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário, por mais fortalecidos que estejam, ainda não são capazes de se impor ao interesse econômico. Embora a prisão de grandes empresários da construção civil fosse usada para vender a ideia de que as instituições estavam enfrentando a criminalidade da elite econômica, a vinculação entre lavajatistas e o FBI retrata apenas a sua instrumentalidade em um quadro de dependência econômica.
“Ninguém está acima da lei!” O realismo corporativo e a modulação legal
A relação entre o poder das instituições e as razões da lei é de antiga conflituosidade. No Brasil, este conflito se desenrola em um contexto no qual a tarefa das instituições judiciárias é gerir institucionalmente a violência, em uma sociedade moldada pela violência estrutural da desigualdade. Neste contexto, as corporações públicas e privadas, em geral as públicas a serviço das privadas, pugnam pela hegemonia, tanto da elaboração da lei quanto da sua aplicação. Cabe lembrar aos portadores de uma visão poliana do Direito, que o poder modela e modula a lei.
Num cenário em que se propaga a compreensão de que a corrupção teria tomado conta do Legislativo e do Executivo, enquanto que no Judiciário seria algo raro e devidamente repelido, incapaz de abalar sua imagem e a confiança dos brasileiros nesse Poder, caberia a ele a salvaguarda do interesse público, violado pela ação dos agentes dos outros dois Poderes. Para tanto, é defendida a necessidade do fortalecimento legal e supralegal dos agentes (a palavra servidor é estranhamente evitada) da repressão à corrupção.
Na cruzada pelo incremento das próprias prerrogativas, MP, PF e Judiciário, reiteram a legislação vigente como obstáculo por ser portadora de dois excessos: primeiro, o de direitos aos investigados, em seguida, excede nos limites à ação institucional. A crítica contra lei é reiterada pelos impedimentos que criaria ao rigor dos agentes judiciais, com isso cria-se a falsa imagem de um desajuste entre o anacronismo legal e a competência do aparato judicial, policial e parquetário. Em decorrência, forma-se um álibi para a construção de sentidos legais ajustados ao interesse corporativo e político, prática vista como mecanismo para contornar a lei em razão de fins superiores.
Lacombe e Vieira analisando com precisão as concepções materializadas na Lava-Jato, escritas por Sérgio Moro em momento anterior, apontam que:
A orientação do Juiz Moro em 1998 é de que “os Juízes não devem impedir o povo de governar a si mesmo.” E sintetiza o seu pensamento sustentando a necessidade de uma postura pró ativa por parte do juiz ao interpretar a Constituição, para o bom cumprimento da função que lhe é atribuída. Para tanto tem competência para definir o significado das normas constitucionais, sem a necessidade de uma especial deferência à interpretação adotada pelos outros poderes constituídos. Ao contrário: a interpretação da Carta Maior por parte dos outros poderes deve ser submetida a um severo exame por parte do Judiciário.[4]
Avalizada pela opinião pública, alicerçada na necessidade do combate à corrupção e no entendimento de que as regras eram obstáculos a essa tarefa, a construção de sentidos para lei, a partir das compreensões próprias e “sensos de justiça” messiânicos foi o caminho natural, em um espaço em que a aplicação da lei não se restringe a uma tarefa hermenêutica, mas também de conformação de múltiplos interesses. Com isso, o realismo feito na forma de congenialidade corporativa se amparou na desproporção entre finalidades e fins. A propensão realista, chegou as raias da sugestão de uma pena bem alternativa, descrita pelo próprio Moro em 2006:
Ademais, a punição judicial de agentes públicos corruptos é sempre difícil, se não por outros motivos, então pela carga de prova exigida para alcançar a condenação em processo criminal. Nessa perspectiva, a opinião pública pode constituir um salutar substitutivo, tendo condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos corruptos, condenando-os ao ostracismo.[5]
Os demais órgãos judiciais anuíram com as práticas Lavajatistas, isso fica explícito quando o TRF4 apreciou pedido de abertura de inquérito disciplinar contra Sérgio Moro, nele o relator manifestou o seguinte entendimento:
Ora, é sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da “Operação Lava-Jato”, sob a direção do magistrado representado, constituem caso inédito (único, excepcional) no direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns. Assim, tendo o levantamento do sigilo das comunicações telefônicas de investigados na referida operação servido para preservá-la das sucessivas e notórias tentativas de obstrução, por parte daqueles, garantindo-se assim futura aplicação da lei penal, é correto entender que o sigilo das comunicações telefônicas (CF, art. 5º,XII) pode, em casos excepcionais, ser suplantado pelo interesse geral da administração justiça e na aplicação da lei penal. A ameaça permanente à continuidade das investigações da Operação lava-Jato, inclusive mediante sugestões de alterações na legislação, constitui, sem dúvida, uma situação inédita, a merecer um tratamento excepcional.” (P.A. N. 0003021-32.2016.404.8000/RS).
A manifestação acima, expressa bem a atitude de modular a compreensão da lei de forma arbitrária, afinal, em que consiste o “interesse geral da administração justiça”? Do mesmo modo, pergunta-se, em que consistiria a “excepcionalidade do caso”? Quem arbitraria o “tratamento excepcional do caso”? Neste sentido, cabe retomar novamente a análise de Lacombe e Vieira, no tocante a relação entre democracia e atuação jurisdicional:
Constituiu, assim, a Operação Mãos Limpas “uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa”, na visão de Sergio Fernando Moro. Mas isso não se faz sem o apoio da democracia, isto é, da opinião pública, diz ele, seguindo uma noção de democracia bastante próxima da de Carl Schmitt. Uma democracia consubstanciada na identidade e não na representatividade. (...) Tudo em nome do “interesse público”. Uma justificativa que, aliás, tem sido utilizada não apenas pelo juiz Sergio Moro, como também pela defesa das corporações que com ele colaboram. Basta ver que das notas publicadas em prol da suspensão do sigilo de conversa telefônica que recentemente envolveu a Presidente da República, não consta qualquer referência à legislação existente; apenas referência ao “interesse público”.[6]
As revelações feitas pelo The Intercept trazem novidade com relação à profundidade do “conúbio espúrio” entre agentes consorciados na Lava Jato, bem como, o grau de despudor de alguns comportamentos, mas com relação a atuação funcional, apenas desnuda práticas ocultas por discursos de imparcialidade e impermeabilidade política, os quais sobrevivem pela repetição e pela falta de reflexão. Tanto isso é verdade, que os órgãos de representação corporativa trataram com naturalidade os diálogos “informais” feitos entre Juiz e Procuradores.
Aguardando a próxima fase, quem poderá nos salvar da democracia?
O desaguadouro, nada natural, da Lava Jato é a “Nova Política”, feita de ressentimento, contentamento perverso, novas milícias e velhas corporações. O bolsonarismo revelou uma enorme habilidade em arregimentar paixões e corporações, agigantada e dissimulada por encobrir-se de loucura, foi capaz de agregar em um mesmo movimento político a militância de membros do Judiciário, Ministério Público e das milícias. A Lava Jato faz parte do caldo de interesses e afetos primitivos, reinventados e rotulados agora de “Nova Política”. Nessa cruzada a Lava Jato foi uma colaboradora, tanto fornecendo munição argumentativa, quanto impondo sanções penais e morais aos opositores do projeto da “Nova Política”.
Passado o frisson pelas personalidades que encarnavam o combate à corrupção para além da posição institucional, a euforia raivosa da claque fascista, claque não povo! Volta-se contra órgãos e Poderes, inclusive o Judiciário. Nesta quadra, o império da ironia parece tudo governar, aqueles que queriam salvar a democracia pelas instituições, sujeitando a lei à intuição, agora convocam a democracia para salvar as instituições.
E os trapezistas voadores de Curitiba?
Quanto a eles, a estreiteza do adejo, feito com as asas do moralismo tecido pelo interesse pessoal, corporativo, político e geopolítico, que agora traz a iminência do solo, talvez ensine a lição de Assis Brasil: “a vida dos bons e dos justos é feita mais de renúncias que de conquistas.”
Notas e Referências
[1] MORO, Sérgio. Considerações sobre a operação Mani Pulite, Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/artigo-moro-mani-pulite.pdf
[2] MORO, Sérgio. Considerações sobre a operação Mani Pulite, Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/artigo-moro-mani-pulite.pdf
[3] Qual é a razão da revolta dos procuradores da Lava Jato? Disponível em: https://www.poder360.com.br/opiniao/lava-jato/kakay-carvalho-e-streck-qual-e-a-razao-da-revolta-dos-procuradores-da-lava-jato/?fbclid=IwAR2vjKRFNIP9ELyiLzk8jU9_zdPiat1PxW0D1XJZmV229FPj_yU1JYCvmOk
[4] CAMARGO, Margarida Lacombe; VIERA, José Ribas. A estratégia institucional do juiz Sergio Moro descrita por ele mesmo. Disponível em https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/estrategia-institucional-juiz-sergio-moro-descrita-por-ele-mesmo-28032016
[5]MORO, Sérgio. Considerações sobre a operação Mani Pulite, Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/artigo-moro-mani-pulite.pdf
[6] CAMARGO, Margarida Lacombe; VIERA, José Ribas. A estratégia institucional do juiz Sergio Moro descrita por ele mesmo. Disponível em https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/estrategia-institucional-juiz-sergio-moro-descrita-por-ele-mesmo-28032016
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