Desde quando tentar apagar a chama da tocha olímpica é crime? Matar a onça pode?

06/07/2016

Por Alan Pinheiro de Paula – 06/07/2016

Tudo começou quando Prometeu “roubou” o fogo de Zeus para entregar aos homens mortais. Este é o motivo pelo qual até hoje a chama olímpica retrata a importância dos Jogos Olímpicos. Embora na Mitologia Grega não se tenha registro da instauração de procedimento policial pelo “roubo”, aqui no Brasil um homem foi preso em flagrante por tentar apagar a chama da tocha olímpica. Pode isso Doutor?

A tocha olímpica chegou a Brasília no dia 3 de maio e, após percurso programado por cerca de 300 cidades, esperemos que chegue ao Rio de Janeiro no dia 4 de agosto, data anterior à abertura oficial das Olimpíadas de 2016.

No entanto, diante de um período de crise política e econômica, o que deveria servir de motivo de festa não vem agradando todos os brasileiros como poderíamos imaginar. Nas redes sociais, por exemplo, os comentários não são menos hostis que: “O País está em crise! Peguem a tocha e enfiem no...”

Na quinta-feira (24/6) em Cuiabá-MT, durante a passagem da tocha em meio a um tumulto de comemorações e protestos, quase a chama olímpica foi apagada por um jato d’água lançado pelo morador de um edifício. A pessoa responsável pelo “atentado”, para sua sorte, não foi identificada e, para a alegria ou tristeza geral, a chama se manteve luzente.

No domingo passado (26/6) em Maracaju-MS, um homem de 27 anos não teve o mesmo destino. Depois de tentar apagar a chama da tocha olímpica com um balde d’água, ele foi preso em flagrante pelo crime de tentativa de dano qualificado e, mediante o pagamento de mil reais de fiança na delegacia, foi liberado para responder ao processo em liberdade[1]. Pode isso Doutor?

A Constituição Federal reconhece ao indivíduo o direito de opinião, conforme podemos observar em seu artigo 5°, IV: “é livre a manifestação do pensamento...”[2]. Esse direito pode ser exercido das mais variadas formas, desde palavras, gestos e até mesmo por meio de condutas inusitadas como essa vista em Maracaju.

No entanto, considerando que os direitos fundamentais não são dotados de natureza absoluta, os bens jurídicos genericamente são merecedores de proteção legal. À roda do direito de propriedade, pode ser citado o Código Penal, que, em seu artigo 163, prevê como crime a conduta de “Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia”[3]. Analisando o núcleo do tipo, de acordo com Guilherme de Souza Nucci; “destruir” quer dizer arruinar, extinguir ou eliminar; “inutilizar” significa tornar inútil ou imprestável alguma coisa aos fins para os quais se destina; “deteriorar” é a conduta de quem estraga ou corrompe alguma coisa parcialmente. Em relação ao objeto material do crime, o tipo penal prevê “coisa”, que é tudo o que existe, sendo imprescindível algum valor econômico[4].

Em relação ao caso do sujeito que tentou apagar a chama da tocha olímpica aqui no Brasil, não me parece tão clara a ocorrência deste crime. Quiçá uma provocação de tumulto em solenidade pública, contravenção prevista no artigo 40 da Lei das Contravenções Penais[5]. Basta analisar os elementos constitutivos dos respectivos tipos penais, porém, este não é o objetivo deste sutil artigo. Suponhamos que ocorresse efetivamente um dano à tocha olímpica por convicção política. Será que a liberdade de manifestação de pensamento não afastaria a responsabilidade penal?

Não podemos enxergar a conduta e o tipo penal sem considerar os valores, como verificado na teoria tridimensional de Miguel Reale[6]. Será que um brasileiro, revoltado com os escândalos sociais, não teria o direito de se manifestar mediante um balde d’água ou de outra forma?

Vamos relembrar um caso polêmico nos EUA envolvendo a queima da bandeira estadunidense. No final do século passado, Gregory Lee Johnson, jovem revolucionário, queimou publicamente a bandeira dos EUA em protesto ao governo do então Presidente Ronald Reagan. De acordo com a legislação texana, ele foi preso, processado, multado e condenado por ultraje a um símbolo nacional.

O caso foi parar na Suprema Corte norte-americana, oportunidade que e ele foi absolvido. Como ele conseguiu Doutor? Na verdade, Johnson invocou a liberdade de manifestação de pensamento prevista na Primeira Emenda da Constituição dos EUA. Diante do conflito de normas jurídicas, aquela Corte afastou a criminalização da conduta de Johnson em prol do seu direito de opinião. Na relatoria do juiz William Brennan Jr., “se há um princípio fundamental na Primeira Emenda, é o de que o Estado não pode proibir a expressão de uma ideia pelo simples fato de a sociedade considerar a ideia em si mesma ofensiva ou nociva”[7].

Fazendo uma comparação entre as questões travadas neste artigo (chama da tocha olímpica e bandeira dos EUA), não consigo vislumbrar qualquer diferença substancial, sem contar a distância de cerca de oito mil quilômetros entre o Mato Grosso do Sul e o Texas. Poderíamos, desta forma, pensar na absolvição de um relutante brasileiro incriminado até mesmo por destruir a tocha olímpica, desde que em razão do seu direito de opinião. Será que cola essa tese Doutor? Para responder a esse questionamento, devemos nos perguntar qual o substrato do conceito de crime estaria afastado? Tipicidade? Antijuridicidade? Culpabilidade?

Parece-me “data venia” que, neste caso, estaria afastada a culpabilidade. A admissão da inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade representaria a racionalização do “jus puniendi”, de acordo com o atual Estado Democrático de Direito. Conforme a doutrina, as causas supralegais de exclusão de culpabilidade por inexigibilidade diversa podem ser classificadas em: a) provocação da legítima defesa; (b) cláusula de consciência; (c) a desobediência civil; d) o conflito de deveres. Dentre elas, a desobediência civil, mencionada por Luiz Flávio Gomes e Antonio García Pablos de Molina, “consiste em atos de manifestação de descontentamento, para a defesa de bens jurídicos coletivos ou comuns”[8]. Destarte, um ato de rebeldia, desde que pacífico e ponderado, no qual o agente pratica um tipo penal com o objetivo de demonstrar publicamente um descontentamento político, por exemplo, não poderia ensejar responsabilização criminal. Vale apena a reflexão!

Tudo bem que a tocha olímpica, como símbolo do esporte mundial, deva ser protegida, mas, numa viragem temática, a que ponto chegamos quando uma onça em extinção é assassinada em razão da passagem do artefato? Isso não aconteceu, né Doutor? O pior é que aconteceu.

Durante a passagem da tocha olímpica em Manaus-AM, na segunda-feira (20/6), uma onça de cativeiro foi acorrentada e exposta de forma espetaculista frente à famigerada tocha. Para que Doutor? Pergunte ao Comitê Olímpico. Batizada como Juma pelo Exército, a onça foi abatida por um tiro de pistola no Centro de Instrução de Guerra na Selva logo após sua exibição olímpica. Esse incidente ocorreu depois de o animal avançar sobre um militar[9].

Obviamente que, neste caso, deveria ser resguardada a vida de uma pessoa em risco, justificada a morte da onça pelo instituto jurídico do estado de necessidade, causa esta excludente da antijuridicidade. No entanto, qual a razão para expor um animal em extinção a uma apresentação daquela natureza? Pelo Twitter, o Comitê Rio 2016 respondeu: “Erramos ao permitir que a Tocha Olímpica, símbolo da paz e da união entre povos, fosse exibida ao lado de um animal selvagem acorrentado. Essa cena contraria nossas crenças e valores. Estamos muito tristes com o desfecho que se deu após a passagem da tocha. Garantimos que não veremos mais situações assim nos Jogos Rio 2016”[10].

Depois do ocorrido, não deu outra, manifestantes se reuniram em frente ao Centro de Instrução de Guerra na Silva localizado em Manaus. A mobilização teve como proposta a forma de utilização de animais silvestres para fins de entretenimento. De acordo com Joana Darc Cordeiro, presidente da Ong Pata-Manaus: "A petição é para que o Exército repense a utilização de animais silvestres em eventos. Não somos contra o Exército. O que nós queremos é pressionar para que o Exército repense a forma como explora a onça para fins de entretenimento e animais silvestres em geral. O animal fica sob estresse e tem outros desgastes”[11].

Bom, em meio a tantos escândalos na política nacional, processo de impeachment em curso, seleção brasileira em crise, sem falar na saída da Inglaterra da União Europeia, será que deveríamos nos preocupar com a passagem da tocha olímpica? Onde ela está agora Doutor? Parece-me que já passou aqui por Santa Catarina, mas retornará semana que vem.


Notas e Referências:

[1] http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2016/06/homem-e-preso-ao-tentar-apagar-tocha-olimpica-com-balde-de-agua.html

[2] Constituição da República Federativa do Brasil

[3] Código Penal Brasileiro

[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: 3 ed. rev. atual. eampl. 2. tir. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007b.

[5] Lei das Contraveções Penais

[6] Reale, Miguel. Lições preliminares de direito. 24. Ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

[7] http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/520008/001063266.pdf

[8] GOMES, Luiz Flávio, GARCÍA PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito Penal: parte geral. 2. ed. São Paulo

[9] http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/06/brasil-se-comove-com-morte-de-onca-exibida-ao-lado-da-tocha-olimpica.html

[10] https://twitter.com/rio2016/status/745339132034060289

[11] http://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2016/06/ativistas-protestam-contra-morte-de-onca-abatida-apos-tocha-em-manaus.html


Alan Pinheiro de Paula. Alan Pinheiro de Paula é Especialista em Gestão de Segurança Pública pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Professor de Direito Administrativo na Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Professor convidado em diversos cursos preparatórios para concursos públicos. Professor da Academia de Polícia Civil do Estado de Santa Catarina (ACADEPOL). Delegado de Polícia.


Imagem Ilustrativa do Post: a onça // Foto de: Rodrigo Senna // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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