Delação premiada e a nova era do risco penal calculado

11/03/2016

Por Walter Bittar – 11/03/2016

Com a crescente utilização das delações premiadas como meio de prova, a doutrina e a jurisprudência há tempos procuram elaborar um conjunto, mínimo, de elementos necessários para compreender os limites do instituto, na tentativa de retratar o real contexto da legislação, auxiliando o estudo e a compreensão do tema, em especial a partir da promulgação da Lei 12.850/13 que é a primeira legislação pátria a normatizar, ainda que em parte e de forma insuficiente, os requisitos e pressupostos de validade do prêmio legal.

Deve ser observado que - no período anterior ao advento da Lei 12.850/13 - a legislação pátria sobre o tema tinha como referência normativa, a partir da Lei 8.072/90 (art. 8º, parágrafo único) diversas normas promulgadas de forma esparsa e indiscriminadamente em diferentes legislações[1], mais afetas ao Direito Penal material, cuja tratativa não fazia referência a qualquer norma procedimental, em que pese o seu reconhecimento pelos Tribunais pátrios[2], cuja natureza jurídica podia ser compreendida como uma causa de liberação de pena, tema, coincidentemente, pouco estudado e identificado pela doutrina que procura delimitar o âmbito dos comportamentos pós delitivos positivos[3], dentre eles o chamado direito premial onde resta inserida a delação premiada.

Nada obstante, com a nova diretiva lançada pela Lei 12.850/13 restringindo ainda mais o princípio da legalidade no processo penal, já relativizado com a promulgação da Lei 9.099/95, o espectro da oportunidade quanto a propositura da ação penal, bem como da possibilidade de penas e prêmios negociados diretamente entre o Ministério Público e os investigados e processados criminalmente, abriram, dentre outras inúmeras possibilidades, uma perigosa e ampla janela para, a partir de estratégias bem entabuladas e programadas, com ciência ou não de seus protagonistas, de uma linha criminológica, ainda não explorada, que poderia ser definida preliminarmente, como criminalidade programada ou, como sugerido no título da presente abordagem simplesmente: criminalidade de risco calculado.

O problema identificado é que a possibilidade de prêmios ao delator (ou colaborador na linguagem de seus simpatizantes), inclusive conforme já identificamos na coluna anterior[4], que podem chegar, na prática, até mesmo na hipótese esdrúxula da devolução de valores de origem ilícita que, a bem da verdade, deveriam ser restituídos ao Estado, ou mesmo a(s) vítima(s), confrontam o próprio fundamento da pena[5], em especial a prevenção geral, funcionando como uma espécie de contra-legitimação, especificamente quando, ao invés de apresentar-se como elemento de dissuasão ao comportamento que se quer evitar e, portanto, delitivo, incentiva a sua prática ao permitir uma tortuosa ponte para transitar no âmbito da licitude e ilicitude há um mesmo tempo, não importando quantas vezes o faça, com a expectativa de pouca ou nenhuma ameaça por meio da pena.

Insta recordar a teoria do regresso à legalidade, justificada a partir do momento em que se oportuniza ao sujeito uma concepção de retorno ao caminho do Direito, do qual tenha eventualmente se desviado ao concorrer para um delito. Essa teoria encontra distintas formulações na doutrina, a partir do uso das expressões “regresso a legalidade”, “reintegração na comunidade jurídica”, “regresso do caminho do injusto ao caminho da justiça”, “expectativa de um comportamento fiel ao Direito”[6], dentre outras.

Todas as vertentes da teoria foram desenvolvidas para a desistência na tentativa. No entanto, ainda que de forma ampla, podem ser aplicadas à delação, posto que, nesta admite-se que existe um comportamento de “colaboração” com a justiça (mesmo porque é a própria legislação que faz referência ao termo) , pois ocorre, em tese, um ato que coloca o indivíduo delator (e, por óbvio, admitido como criminoso) novamente na legalidade ou, pelo menos, o faz retornar para o lado da legalidade[7]. Não se pode olvidar, ainda, que a delação premiada pode ser ofertada e concedida ao indivíduo já condenado[8].

Especificamente deve ser observado que indivíduos já beneficiados com acordos de delação premiada no Brasil, em épocas distintas e em procedimentos persecutórios diversos, são sucessivamente contemplados com os beneplácitos da lei, existindo rumorosos casos que podem ser elencados a título de exemplo, onde o mesmo réu, demonstrando não demonstrar a menor intimidação, ou mesmo respeito a ordem legislativa vigente, foi protagonista de prêmios oferecidos para delatores em processos criminais envolvendo quantias vultuosas e a prática de injustos penais graves[9].

Para estes “clientes” contumazes do instituto da delação premiada permite-se a existência de um tentador atrativo, institucionalizado pelo próprio ordenamento jurídico, que é justamente o de correr o risco da persecução criminal, calculando as informações que poderá indicar as autoridades legais para ser beneficiado com o acordo de isenção ou diminuição de pena, bem como o de proteção de parte de seu patrimônio, obtido por meios ilícitos, que pode ser contemplado com sua devolução, mas com a figura jurídica de ganho lícito, até porque foi restituído pela própria autoridade legal.

Novamente remetemos o leitor a nossa coluna anterior[10], onde já alertamos para o fato da prática já iniciada pelo Ministério Público no Estado do Paraná com decisões já homologadas em alguns casos, de isentar ou não solicitar a devolução total, de valores oriundos de práticas ilícitas e que pertençam ao investigado ou réu que colabore com os procedimentos persecutórios em curso.

Mesmo com a posição de parte expressiva da doutrina, no sentido de que existe critério político-criminal para fundamentar eventual liberação de pena por razões de utilidade ou pragmatismo, posto que a colaboração facilita a tarefa da administração da Justiça[11], a razão para uma tal conclusão resta escorada em razões de índole política, pois o objetivo seria evitar futuros delitos da mesma natureza[12].

Contra essa argumentação observa-se que podem ser sustentadas outras formas de fundamentação para justificar o prêmio ao delator, baseada na diminuição de pena por exigência de prevenção geral e especial pois o próprio infrator ajudaria na satisfação de algumas das metas legais, dentre elas a de resgatar ou garantir a confiança no Direito[13].

Entretanto, deve ser observado que a fundamentação de um instituto jurídico não pode ser baseada exclusivamente em razões utilitárias. Assim, o prêmio recebido pelo delator deve estar amparado e justificado com base no referencial de fim da pena, cuja fundamentação teórica não se pode afastar, mesmo diante da complexidade e paradoxos suportados pelo instituto da delação premiada.

É preciso ter presente que os critérios preventivos são tanto mais eficazes, quanto mais certos são os pressupostos normativos subordinados à concessão de prêmios aos investigados/processados, haja vista que aqueles existem para delimitar um eventual excessivo espaço discricionários para o magistrado, cujos limites devem ser encontrados nas teorias da pena.

Se desprezados os fins e fundamentos da pena criminal, permitindo que prêmios sejam concedidos, para além daqueles delimitados pelo próprio ordenamento jurídico, fica certo que o Estado, ao invés de buscar por meio dos instrumentos repressivos penais a prevenção ao delito, na verdade passa a incentivá-lo (retirando qualquer eventual fundamento da pena, se é que existem), por meio da certeza de que o risco da atividade ilícita é bastante compensador, na medida em que o infrator pode avaliar a compensação negociada com o próprio Ministério Público, com a diminuição de sua pena e legalização de capital móvel e imóvel ilícito, criando um risco calculado, abrindo uma nova – e irônica era – para a criação de um Direito Penal premial de relatividade extrema, ao ponto de permitir a legalização de condutas ilícitas, pasme-se, pela via da aplicação de penas que serão perdoadas e cujo fundamento teórico que as originaram se torna indiferente e, portanto, desprezível.

A responsabilidade pela construção da própria natureza humana e, por consequência, da necessidade de viver autenticamente a altura daquilo que construímos e, nesse ponto, considerando o Direito Penal como uma criação humana, termina por revelar uma farsa criminológica, em um quadro onde se pode antever o risco de persecução com a possibilidade de prêmio a ser recebido, onde não se pode opor, validamente, nenhuma exigência de comportamento conforme a Lei, inclusive quanto a um suposto valor utilitário oriundo de provas fornecidas por delatores, posto que tal valor deve ser endossado por algum valor mensurável, para que esse valor seja levado a sério[14].


Notas e Referências:

[1] Lei 9.034/95; Lei 9.080/95; Lei 9.269/96; Lei 9.613/98; Lei 9.807/99; Lei 10.149/00; Lei 11.343/06.

[2] A título de exemplo e não exaustivamente, veja-se as seguintes decisões: HC 75261, J. 24.jun.97, rel. Min. Octavio Galotti; RESP 418341, j. 26.maio.03, rel. Min. Felix Fischer; HC 33.833/PE, j. 19.ago.04, rel. Min. Gilson Dipp

[3] Sobre o tema, na doutrina pátria, veja-se: BITTAR, Walter Barbosa. A punibilidade no Direito Penal, São Paulo: Almedina, 2015. CARVALHO, Erika Mendes de. Punibilidade e delito, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008; RIOS, Rodrigo Sanchez. Extinção da punibilidade nos delitos econômicos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

[4] http://emporiododireito.com.br/category/walter-bittar/

[5] Veja-se, por todos: GORRA, Daniel Gustavo. Resocialización de condenados, Buenos Aires: Astrea, 2013, p. 9 e ss. BAÑOS, Javier Ignacio. El fundamento de la pena, Buenos Aires: Ediar, 2011, p. 27 e ss.

[6] PÉREZ, Laura Pozuelo. El desistimiento em la tentaiva y la conducta post-delictiva, Valencia: Tirant lo Blanch, 2003, p. 72-73.

[7] BITTAR, Walter Barbosa. Delação Premiada, 2ª. Ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 77-78.

[8] Lei 12.850/13, art. 4º, § 5º.

[9] Alberto Youssef, personagem central da operação Lava Jato, já fora investigado, processado, preso e contemplado com o prêmio de sua liberdade, pela via da delação premiada, em 2003, em decorrência de sua atuação no mercado clandestino de dólares, após apuração de um dos maiores esquemas criminosos que já existir, o “Esquema CC5”, também conhecido como caso Banestado. http://lavajato.mpf.mp.br/atuacao-na-1a-instancia/investigacao/relacao-com-o-caso-banestado. Acesso, em 8.mar.2016.

[10] http://emporiododireito.com.br/category/walter-bittar/

[11] ESPAÑA, Elisa García. El premio a la colaboracíon com la justicia, Granada: Comares, 2006, p. 49.

[12] PÉREZ, Laura Pozuelo. Op. Cit., p. 420.

[13] Com mais detalhes: PÉREZ, Octavio Garcia. La punibilidad em el derecho penal, Pamplona: Aranzadi, 1997, p. 210.

[14] Em que pese a conclusão não seja especificamente sobre os problemas ético-morais da delação premiada, o raciocínio se refere as ilações de Ronald Dworkin no livro A raposa e o porco-espinho Justiça e Valor, trad. Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 26 e ss.


Walter Bittar. . Walter Bittar é Doutor em Ciências Criminais pela PUC/RS, professor da PUC/PR e advogado criminalista. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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