Coluna Empório Descolonial / Coordenador Márcio Berclaz
Em 2015, a 19ª edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil centralizou, com ainda mais força, a produção artística do Sul Global. Sem utilizar explicitamente o “léxico decolonial”, como diria César Augusto Baldi, a curadoria do evento se propôs a dimensionar múltiplas questões caras aos(às) teóricos(as) da decolonialidade (“diásporas, identidades híbridas, trânsito migratório e viagens, narrativas pessoais, memórias, isolamento, tecido social e insularidade”). Dentro desse contexto curatorial, coube à pesquisadora Sabrina Moura organizar uma coletânea bilíngue com materiais essenciais às novas configurações geopolíticas e artísticas surgidas a partir desse tal de Sul Global. Ali, colocou desde o Manifesto Cultural Pan-Africano até textos acadêmicos de pensadores(as) como Milton Santos e Achille Mbembe.
No campo do direito, quando recorremos aos estudos pós-coloniais e às práticas de resistência anticolonial, é comum retomarmos textos do pensamento crítico, especialmente de africanos, indianos e caribenhos. Com a virada de(s)colonial, a ampliação do “léxico” com as vozes latino-americanas tem sido capaz, com apontamentos críticos necessários, de coadunar o papel o racismo estrutural e do colonialismo moderno na ordenação do sistema-mundo. Inicialmente levantado pela oralidade da resistência dos povos indígenas e tradicionais, pela luta anticolonial e pelo movimento negro, o argumento-necessidade da descolonização/decolonialidade agora é ventilado tanto por juristas como Silvio Almeida e lideranças indígenas como Ailton Krenak, quanto nos sambas-enredo da Mangueira e da Viradouro.
Não pretendo discutir profundamente sobre o nascimento da luta anticolonial, do pós-colonialismo ou da decolonialidade. Meu principal interesse com esse texto, em termos de pesquisa jurídica e de engajamento político, é colaborar para a consolidação desses “vocabulários” no debate público brasileiro. Precisamos nos reconhecer e nos multiplicar. Tendo a crer que esse movimento é fundamental para fortalecermos nossas capacidades de reinventar histórias e repensar nossas filosofias, desde perspectivas outras, como também defendido por Luis Thiago Dantas. Evidentemente, compreender as fissuras e os “deslumbramentos” desses processos de assimilação teórica e reconhecimento de práxis é fundamental, todavia isso não pode nos impedir de formar coalizões e redes em torno de projetos político-científicos que sejam radicais, críticos e emancipatórios.
Como fazê-lo? A abertura ao diálogo é um caminho necessário – como tem buscado fazer Gurminder Bhambra –, assim como a atenção a determinadas atitudes prejudiciais a ele. Em uma entrevista de 2013, Ramón Grosfoguel já falava sobre as consequências de determinadas práticas dentro do debate pós-colonial/decolonial e chamava a atenção para o desenrolar de dois extremos. Ele fala sobre as práticas de silenciamento teórico e de “populismo epistemológico” realizadas por teóricos(as) que estão trabalhando na chave decolonial.
A ideia de silenciamento teórico, segundo Grosfoguel, diz respeito à utilização de determinadas ideias e práticas, já trabalhadas em outros tempos, seja por movimentos sociais ou teóricos(as), como se fossem novas ideias. Ele cita, inclusive, o exemplo de Aníbal Quijano, influente teórico latino-americano do campo, como um mestizo que bebeu do pensamento indígena crítico e do pensamento negro radical sem lhes fazer justo reconhecimento. Falar em “colonialidade”, termo cunhado por Quijano, não seria muito diferente do que já era propagado em outras formulações trabalhadas, por exemplo, por Kwame Nkhruma, Aimé Cesáire e Abdias do Nascimento. Aliás, a existência desses silenciamentos teóricos explica porque muitas das disputas no campo decolonial giram em torno das terminologias.
Grosfoguel também alerta para outra prática contraproducente, o que chama de “populismo epistemológico”. Citando o exemplo de Walter Mignolo que, mesmo teorizando e sendo contrário aos binarismos coloniais, acaba por se socorrer ao ímpeto de afirmar novos binômios, dentro do campo decolonial, como “se é indígena, então é decolonial” e “se é europeu, então é colonial”. Nessa lógica, indígenas defensores do sistema-mundo moderno/colonial/capitalista ainda seriam considerados decoloniais e europeus conscientes dos movimentos de descolonização epistemológicas seriam considerados coloniais, simplesmente pelos lugares geográficos e epistêmicos que ocupam. Grosfoguel, inclusive, cita o exemplo do português Boaventura de Sousa Santos que, por ser um europeu branco, é frequentemente deslegitimado por isso.
Tais reducionismos geográficos e raciais afastam a possibilidade de coalizões entre subalternizados(as) e aliados(as) atentos(as) à necessidade de descolonização. Também faz com que figuras subalternizadas e que se posicionam de forma imperialista e colonial, como diversas figuras políticas de extrema direita da atualidade, sejam afastadas de potenciais diálogos emancipatórios. Aliás, os exemplos reportados por Grosfoguel, de Quijano e Mignolo, não desmerecem as contribuições que eles fazem ao debate e, nem do outro lado, nos impedem de apontar críticas a figuras como Boaventura de Sousa Santos. A reflexão aqui proposta é, na verdade, uma tentativa de equalizarmos determinados “lugares comuns” cada vez mais frequentes quando invocamos as noções de lugar de fala, virada decolonial e desobediência epistêmica.
De todo modo, as possibilidades de se pensar o deslocamento dos eixos geográficos – vejam a ótima coletânea organizada por Valter do Carmo Cruz e Denílson Araújo de Oliveira – e epistemológicos, o que alguns chamariam de uma intenção de “sulear” nossas percepções, outras de fortalecer nossa amefricanidade, ganham espaço no nosso imaginário - e isso é bastante interessante em termos de criatividade política. Na introdução da nova coletânea sobre o pensamento feminista contemporâneo, dedicada às perspectivas decoloniais, Heloisa Buarque de Hollanda inclusive chega a se questionar: “agora somos todas decoloniais?”. Seria interessante que sim.
Os movimentos sociais latino-americanos, que se utilizem da figura potente de Abya Yala, constituem um dos exemplos de práxis decolonial. Atualmente, por exemplo, temos jovens mulheres indígenas que não se sentem representadas nem mesmo pelo feminismo decolonial/anticolonial, pois tal perspectiva implica em questões que não versam sobre as necessidades dessas mulheres, mas sim daquelas que vivem sob um regime colonial. Nesse ponto, talvez, a possibilidade decolonial se coadune com a desobediência epistêmica já praticada há anos pela luta anticolonial. A fala de Jota Mombaça, no seminário Arte e Descolonização, organizado pelo MASP em 2019, me abriu os olhos para essas possibilidades quando resgatou o pensamento de Denise Ferreira da Silva.
O colonialismo é a política do medo, como diria Grada Kilomba, e os nossos corpos ainda estão presos. Ainda estamos presos a um regime que voluntariamente nos obriga a viver de modo colonial, através do sistema econômico elitista, também desigual e os vestígios históricos que transformaram nossas figuras históricas colonizadoras em ídolos do povo subalternizado. Todavia, em termos de ambição política, o mais importante não é definir o quanto estamos atrelados a determinada perspectiva teórica ou não, mas é alterar nossos modos de ser, estar e viver buscando descolonizar as estruturas em que estamos inseridos(as) por meio do nosso poder de agência.
A onda “decolonial” – o que alguns chamariam de “neologismo do momento”, como aponta Silvia Rivera Cusicanqui de forma inquietante – parece recente, todavia é fruto de muitos outros acontecimentos históricos e acúmulos teóricos combinados e tensionados. Sobretudo, pensar descolonização e decolonialidade tem acompanhado os movimentos de resistência às estruturas de dominação que se reproduzem desde o assalto genocida, racista e predatório à Abya Yala e do estabelecimento da parceria insustentável entre capitalismo, Estado e direito. Pode ser que ainda não entendamos o que realmente significa ser uma pessoa decolonial, mas, ao mesmo tempo, também é possível que, desde já, tomemos atitudes descolonizadoras.
Notas e Referências
Agradeço às leituras, apontamentos e sugestões de Alina Silva Ribeiro, César Augusto Baldi, Douglas Romualdo Silva, Rogerio Lacerda e Lahanna Kathilla Alves dos Santos Belau.
FOTO: Matheus José Maria