Decolonialidade e pensamento/prática amefricana: o que as “teorias do sul” tem a ver com isso?

15/07/2019

 Coluna Empório Descolonial / Coordenador Marcio Berclaz

Para Nailah Veleci e Winnie Bueno, a benção das mais novas. 

A recepção da teoria decolonial no Brasil não implicou somente, até o presente momento, a ênfase numa colonialidade sem raça, no racismo sem nominar a raça e mesmo na discussão de colonialidade sem qualquer envolvimento de gênero ou sexualidades. Tem sido comum, muitas vezes,  em certos meios acadêmicos, inaugurar um novo cânone acadêmico fundador, à imagem e semelhança dos chamados “três porquinhos” da sociologia ( Marx, Weber e Durkheim, todos brancos e homens), também com três homens.

Este processo acarreta, por sua vez, algumas consequências importantes: a) a manutenção de um parâmetro masculino e heterocentrado na definição das discussões; b) uma ausência de encaminhamento de gênero e raça como estruturais e estruturantes; c) a re-colonização dos currículos e discussões, agora com “novos” autores, reforçando a centralidade da branquitude ou da heteronormatividade na teoria e prática; d) a ausência de discussão, no âmbito dos movimentos sociais, das distintas colonialidades existentes.

Neste sentido, Iris Hernández, analisando a noção de cidadania a que apelam os movimentos de diversidade sexual, LGTBI e lésbicas feministas chilenas, mostra como a readequação e normatização destes movimentos são produtivos e incentivadores da colonialidade, compondo agenda racista e liberal. Uma agenda, na linha de Jasbir Puar e Leticia Sabsay, “homonormativa”, recuperando a família e o casal como modelos hegemônicos centrais e, simultaneamente, conectados com agendas internacionais ocidentais imperialistas, racistas e neoliberais.

A centralidade do movimento gay branco de classe média, para ela, é uma demonstração dessa colonialidade no “guarda chuvas” da “diversidade sexual”, devendo ser pensado, no caso brasileiro, até que ponto não somente a agenda de “casamento homoafetivo”, mas também a de criminalização da lgbtifobia- com o recurso de associação ao racismo, num país que praticamente não pune tal crime, quando ocorrente contra negrxs- é extensão desta agenda, conjugada com a glamourização de Tel Aviv e o financiamento da parada de São Paulo pelo governo de Israel, sem questionar o Pinkwashing e a colonização da Palestina.

Recorde-se que Lélia González, já em 1990, que os nazistas vieram os judeus como “raça inferior” e nós “nem isso. Não éramos seres humanos para eles. Hoje, infelizmente, a história se repete em relação aos palestinos.”[1] Para ela, não havia como separar a luta antirracista, contra o sexismo e a luta a favor da Palestina. E da mesma forma, recordava, contra todo um feminismo internacional e institucional, sua experiência no Conselho das Mulheres, que entendia importante, mas como luta “absolutamente provisória”, da qual não se pode “esperar grandes resultados”, de fato uma “frente de trabalho” em que, ao fim, o Conselho poderia “engolir a gente”. [2]

Recuperar Lélia e Beatriz, neste particular, da mesma forma que também Abdias, Guerreiro Ramos e Clóvis Moura, por exemplo, é salientar toda uma tradição afrocentrada, brasileira, que localizava, antes do léxico “decolonial”, o racismo como eixo estruturante do sistema capitalista e, antes da “interseccionalidade”, o papel da mulher negra na articulação das estruturais coloniais de raça, classe e sexo. Neste sentido, tanto Cláudia Pons Cardoso quanto Débora Alcântara tem identificado,no pensamento das duas, que “o exercício do patriarcado na colonialidade só se dá derivado do racismo”, antecipando, portanto, uma interpretação sobre o que se denominou, com Rita Segato, Lugones e Breny Mendonza, entre outras, como “colonialidade de gênero”.[3]

Tanto Lélia quanto Beatriz  criticavam a esquerda que, absorvendo a ideia de democracia racial, não vislumbra, para análise da realidade social, nada além da classe. É importante salientar, aliás, que se esquece que Quijano, criticando o eurocentrismo da análise de classes de autores marxistas brancos, destacava  que: a) o conceito de classe e de interesse de classe requer ser pensado em termos de heterogeneidade histórico-estrutural; b) a ideia de classe eurocentrada estava reduzida à relação entre capital e salário; c) no centro, a forma hegemônica da relação capital-trabalho foi, predominantemente, a relação salarial; d) na “periferia colonial”, a relação salarial foi estruturalmente dominante, mas demograficamente minoritária, convivendo com escravidão, servidão, produção mercantil simples e reciprocidade; e) no “eurocentro”, a classificação social apareceu apenas ligada à relação ao trabalho, porque os “europeus” não se viam como racializados e, portanto, as classes sociais foram conceitualmente separadas e diferenciadas das raças e suas relações pensadas como externas. [4]

Esta crítica ao eurocentrismo branco da esquerda branca brasileira é bem salientado em “A mulher negra na sociedade brasileira”, de Lélia, e “A mulher negra no mercado de trabalho”, de Beatriz, este último, aliás, destacando o racismo, a colonialidade  e o sexismo na diferenciação entre recrutamento, entrada no mercado de trabalho, “tarefas femininas” e exploração sexual das atividades. [5]

Beatriz, sempre recordada por seus estudos sobre quilombos, vai se preocupar, em 1982, com a colonização do pensamento, a partir de seu processo psicoterápico, porque “não se pode esquecer que grande parte da comunidade negra está nos hospícios ou nos cárceres” e que a sociedade dual “me proíbe de ser como eu sou, da mesma forma como faz com muitos outros negros”. Neste momento, “as pessoas que supostamente deveriam nos tratar não nos conhecem, ainda que pensem que sim”, porque esquecem que “a inferiorização do negro é uma coisa que eu sou levada a vivenciar a todo momento e isso me empurra a brigar, agredir as pessoas ou faz com que eu me recolha para dentro de uma casca”. [6]

Tal como Lélia, que buscando na psicanálise, vai agenciar o conceito de “amefricanidade”, Beatriz, em 1992, a partir de – e mesmo contra- Foucault, Deleuze, Guattari e Groddek, discutindo diferença, desejo, natureza negra e racismo vai pensar sobre um “devir negro a se explorar”, um “devir minoritário” que percebe a diferença entre “falta e carência como sendo o que causa o racismo”, um verdadeiro “mal estar que se introjeta no indivíduo a partir da discriminação”, a cumplicidade frente ao que oprime na relação opressor/oprimido. Ao fim, um devir utópico na “produção de subjetividades territorializadas no eu, no corpo físico”, livres da ética da produção e da “acumulação que secciona o homem, segundo a ordem do sistema do capital”.  E daí recupera tanto o axé, enquanto energia vital, mas também o “ntu”, que só se “completa e adquire força pelo reconhecimento do outro”[7] Um questionamento que a aproxima, também, tanto de Mbembe quanto de Zapata Olivella.

Se tanto em Beatriz quanto Lélia, mas para a primeira de forma mais veemente, os quilombos são formas alternativas de organização social libre, que pensar, a partir daí, em termos de relações sociais, lutas antirracistas e teoria contemporânea de poder? E que dizer de quilombos, em suas variantes históricas analisadas por Beatriz, enquanto continuum da colonialidade, como fuga, mas também como paz quilombola e, portanto, como novas formas não necessariamente estatais, de sociabilidades, de lutas, de resistências e de, talvez, um efetivo devir quilombola?[8]

Assim, nos termos de Débora Alcântara, o quilombo, em Beatriz, pode ser visto como “ação amefricana, porque, desde sua origem, é inclusiva de diversos setores subalternos/racializados, cujas atualizações estão atreladas às respostas contra as atualizações da colonialidade”.[9] E é essa dificuldade do reconhecimento do negro como pessoa, que coloca, para Beatriz, a importância da frase de Nina Rodrigues: “O Quilombo de Palmares, se fosse vitorioso no Brasil, seria um quisto dentro do Brasil, assim como o Haiti é um quisto dentro das Américas”.[10] É a impossibilidade da aceitação.

         E a ação de Lélia, por sua vez, vai criticar um feminismo “radical”, em que a “opressão racial e a exploração de classe ficam devidamente esquecidas nos porões de uma sociedade cujos sistemas de classificação social e econômico fazem da mulher negra” o foco de sua perversão.[11] E daí a provocação, antes de Lugones, no sentido de que “se a gente não nasce mulher, é porque a gente nasce fêmea”, de acordo com uma tradição eurocentrada e, portanto, “tornar-se negra é uma conquista.”

         Pensar “teorias do sul” e direitos humanos a partir do Sul significa um repensar, impensar ou despensar e um reatuar em relação a padrões hegemônicos de inteligibilidade, mas também de tensionar a versão hegemônica da teoria crítica – e também da  recepção brasileira da decolonialidade- no sentido de recolher os pedaços e reconstituir o corpo de Osíris, pelas mãos de Ísis, como forma de recuperar a força do solo, da vegetação, da terra, da ancestralidade e das formas de ressurreição das teorias e práticas que foram ignoradas, silenciadas e consideradas como inexistentes.

 Mas tendo o cuidado, como bem destacam Khatibi e Catherine Walsh, de: a) não somente se construir “casa afuera”, mantendo o pensamento dominante como referente, sujeitando-o ao questionamento e produzindo novas formas, histórias e modos de pensar;  mas também b) “casa adentro”, explorando as contradições, negociações, mediações, incongruências- ou, como diria Beatriz, as frichas- inter ou intra subalternos. [12] E, aqui, com ancestros e ancestras, como também o faziam, o tempo todo, Zapata Olivella e Juan Garcia Salazar ( líder esmeraldenho equatoriano). Com a benção dxs mais velhxs.

 

César Augusto Baldi é doutor em Direitos Humanos pela Universidad Pablo de Olavide, organizador dos livros “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” ( Renovar, 2004) e “Aprender desde o Sul”( Forum, 2015).

 

Notas e Referências

[1]  GONZÁLEZ, Lélia. Primavera para rosas negras. IN: Idem. São Paulo: Filhos da África, 2018, p. 373.

[2]  GONZÁLEZ, Lélia. Entrevista de Lélia González ao Jornal do MNU. IN: “Primavera para rosas negras”. São Paulo: Filhos da África, 2018, p. 386.

[3]  CARDOSO, Cláudia Pons. Outras falas: feminismos nas perspectivas de mulheres negras brasileiras. Salvador: Tese de Doutorado, 2012; ALCÂNTARA,, Débora Menezes. Pensamentos amefricanos contra o déficit decolonial em Walter Mignolo. Realis, v. 8, jan-jul. 2018, p. 209.

[4] QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. IN: SANTOS, Boaventura de Sousa & MENEZES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p. 104-110.

[5]  NASCIMENTO, Beatriz. A mulher negra no mercado de trabalho. IN: NASCIMENTO, Beatriz. Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual; possibilidade nas dias da destruição.São Paulo: Filhos da África, 2018, p. 80-85.

[6]  NASCIMENTO, Beatriz. Maria Beatriz Nascimento pesquisadora. Idem, ibidem, p. 249-250.

[7] NASCIMENTO, Beatriz. Por um território (novo) existencial e físico. Idem, ibidem, p. 421-428.

[8]  Provocação, aqui feita, para a tese de doutorado de Cledisson Geraldo dos Santos Jr, no âmbito do programa de CiÊncias Sociais, Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da UFRRJ.

[9] Op. Cit, p. 215.

[10]  NASCIMENTO, Beatriz. Historiografia do quilombo, Idem, ibidem, p. 136.

[11]  GONZÁLEZ, Lélia. A importância da organização da mulher negra no processo de transformação social. Idem, ibidem, p. 364.

[12] WALSH, Catherine. (Re)pensamiento critico y (de)colonialidade. IN: Pensamiento crítico y matriz (de)colonial. Quito: Abya Yala, 2005, p. 29-33.

 

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