De quem é o teu corpo, mulher?

21/10/2016

Por Gabriela Neckel Ramos - 21/10/2016

A cultura ocidental, muito influenciada pela Igreja, ao longo da história estabeleceu o casamento como base da sociedade, sendo um sacramento, indissolúvel que se consumava através do exercício da sexualidade e voltado à reprodução. Deste modo, sendo nos primórdios, Estado e Igreja unidos, até os dias atuais ainda observam-se resquícios das leis feitas sob tamanha influência. Um exemplo que mostra claramente a presença das normas religiosas na legislação pátria é o Código Civil de 1916 que trouxe o casamento como indissolúvel, com finalidade voltada à reprodução e patriarcal, assim como era observado quando das normas do Sistema Canônico.

Importante ressaltar que, com o Código Civil atual, muitas foram as modificações ocorridas, no entanto, alguns institutos foram preservados seguindo seu antecessor.

Quanto ao casamento, atualmente é forma de constituição de família prevista e regulamentada pela Constituição e legislação infraconstitucional de modo que, apesar de apresentar resquícios das normas religiosas anteriores, já se apresenta de maneira diversa, passando por inúmeras transformações. De acordo com sua natureza jurídica, o casamento, é classificado como negócio jurídico de Direito de Família, produzindo múltiplos efeitos no âmbito pessoal, social e patrimonial.

Os efeitos pessoais do matrimônio estão previstos no Art. 1.566 do Código Civil, sendo deveres de ambos os cônjuges a fidelidade recíproca; a vida em comum, no domicílio conjugal; a mútua assistência; sustendo, guarda e educação dos filhos; bem como respeito e consideração mútuos. É de suma importância se observar que o rol apresentado no dispositivo legal é meramente exemplificativo, existindo deveres inerentes ao casamento que não são abarcados pelo mesmo.

Merece destaque, dentre o rol apresentado, o dever da vida comum, no domicílio conjugal, também chamado de dever de coabitação. Sobre este, discorrem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, in verbis:

A doutrina mais antiga sempre retirou do conteúdo do dever de coabitação o sentido de estabelecer vida em comum, morando sob o mesmo teto e mantendo estreita conjunção íntima, através de relacionamento sexual. É dizer: o dever da vida em comum no domicílio conjugal teria um sentido mais amplo do que, simplesmente, morar sob o mesmo teto, envolvendo plena comunhão de vida, o que compreenderia, identicamente a satisfação sexual (debitum conjugale) (2016, p.281).

Portanto, o dever de coabitação seria mais do que apenas morar na mesma casa, seria a comunhão plena de vida no sentido mais íntimo, impondo o dever de manter relações sexuais na constância do casamento. Surge então, o débito conjugal, sendo o exercício da sexualidade um dever, podendo o cônjuge exigir seu cumprimento.

Maria Berenice Dias ensina que a expressão débito conjugal tem origem no Direito Canônico, que significaria o direito sobre o corpo, principalmente o direito do homem ao corpo da mulher, a fim de atender ao caráter reprodutivo imposto ao casamento (DIAS, Maria Berenice, 2012). Mais ainda, sob tal viés ideológico a consumação do matrimônio ocorreria na noite de núpcias, sendo possível a anulação do mesmo, caso a mulher houvesse perdido sua virgindade antes de sua celebração. Tal possibilidade de anulação não tem mais lugar na legislação e doutrina atual. Contudo, ainda se encontra presente a figura do débito conjugal, sendo defendida sua existência.

O débito conjugal, apesar de teoricamente ser uma figura imposta ambos os nubentes, independente se homem ou mulher, culturalmente refere-se a mulher. Ainda nos dias de hoje, reserva-se a esposa o espaço da casa e papel da procriação e ao homem o espaço público. A força física do homem ainda se mantém como poder sobre sua família e sua esposa. A mulher, apesar de ser igual ao homem aos olhos da lei, na esfera da sociedade conjugal, permanece muitas vezes em um papel de invisibilidade e sendo tratada como propriedade do marido. E é nesse cenário que o dever do débito conjugal se torna potencialmente nocivo, podendo justificar a violência doméstica e permitir o estupro marital.

Muito se acredita que relação sexual que se dá na esfera do casamento, mesmo que contra a vontade da mulher é direito, não se constituindo crime. No entanto, tal crença é equivocada, visto que a violência sexual é caracterizada pela ausência de vontade da mulher; assim o cônjuge também poderá ser sujeito ativo no crime de estupro. Conforme discorre Cezar Roberto Bitencourt “ [...] nos crimes sexuais, praticados sem o consenso da vítima, o bem jurídico protegido continua sendo a liberdade individual, mas na sua expressão mais elementar: a intimidade e a privacidade, que são aspectos da liberdade individual; aliás, assumem dimensão superior quando se trata de liberdade sexual, atingindo sua plenitude ao tratar da inviolabilidade carnal, que deve ser respeitada inclusive pelo próprio cônjuge, que a nosso juízo, também pode ser sujeito ativo do crime de estupro” (2016, p.50).

Deste modo, mesmo que em um casamento, mesmo casada com um homem a mulher ainda deveria ter seu direito a dignidade, à liberdade, à privacidade e à inviolabilidade do próprio corpo garantidos. Mesmo que em um relacionamento, a mulher é, antes, um ser humano e, como tal, possui uma gama de direitos fundamentais que devem ser respeitados sob pena de sanção, seja penal, cível ou administrativa. Titular de deveres na sociedade conjugal, assim como o homem, a titularidade de direitos da mulher também deveria se concretizar, assim como ocorre com o homem.

A mulher, colocada simbolicamente na estrutura hierárquica estabelecida no casamento em uma sociedade patriarcal, é pensada como propriedade de seu marido. Tal fato, combinado à defesa da existência da figura do débito conjugal, abre uma grande porta para o acontecimento de violências, que por sua vez, encontrarão respaldo social, pois acredita-se que o homem tem o direito de cobrar de sua mulher a satisfação de seus desejos.

Perante o risco de se cobrar um dever que considera existente extrapolando os direitos do outro como titular de direitos e pessoa, pode-se incorrer no âmbito criminal, chegando ao estupro. Deste modo, em busca da preservação do princípio da dignidade da pessoa, o direito à liberdade, à privacidade e à inviolabilidade do próprio corpo, o débito conjugal não deveria encontrar respaldo no âmbito jurídico, seja legislação, doutrina ou jurisprudência.

O casamento deve ser tido como uma comunhão plena de vida, de afeto, de carinho, respeito e compreensão. Deve-se entender que se trata de uma relação composta por duas pessoas e que antes de se buscar a satisfação de qualquer que seja o desejo, deve-se olhar para o outro e entender quais são suas necessidades, limitações e vontades. Importante que não se sujeite o outro a uma posição de inferioridade na relação e que ele seja ouvido. Mais ainda, diante da carga cultural que estigmatiza a figura da mulher, importante preservar a sua integridade física e emocional, tratá-la como a igual que é, não se apropriando da mesma.


Notas e Referências:

Maria Berenice Dias, Débito ou Crédito Conjugal? Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_545)debito_ou_credito_conjugal.pdf.  Acesso em: 17 de outubro de 2016.

Maria Berenice Dias, Casamento: nem direito nem deveres, só afeto. Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_550)1__casamento__nem_direitos_nem_deveres_so_afeto.pdf. Acesso em: 17 de outubro de 2016.

Maria Berenice Dias, Casamento ou terrorismo sexual? Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_547)4__casamento_ou_terrorismo_sexual.pdf. Acesso em: 17 de outubro de 2016.

Dias, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10.ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015

Farias, Cristiano Chaves; Rosenvald, Nelson. Curdo de direito civil: famílias. 8.ed.rev.e atual. Salvador: Ed. JusPodivm,2016

Pamplona Filho, Rodolfo. Gagliano, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil – Direito de Família. Vol. 6. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial: crimes contra a dignidade sexual até crimes contra a fé pública. Vol.4. 10 ed. rev.ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2016.


gabriela-neckel-ramos. Gabriela Neckel Ramos é Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É pesquisadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres”, membra do Centro Acadêmico XI de Fevereiro – CAXIF e estagiária da Justiça Federal de Santa Catarina. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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