Por Soraia da Rosa Mendes - 14/04/2016
Recentemente preparando um texto para um livro sobre colaboração premiada lancei mão em minha pesquisa de uma obra que reúne trabalhos sobre esse e outros tantos temas de direito penal e processo penal. Confesso que a espetacular reunião de artigos escritos por renomados juristas brasileiros e estrangeiros me foi, em um primeiro momento, realmente fascinante. Contudo, analisando seu conjunto, algo me chamou mais atenção do que os capítulos que tratavam do assunto que era meu objeto de estudo e reflexão naquele momento.
A obra que eu consultava, publicada por uma das maiores e mais importantes editoras do país, trata-se de uma coleção de oito volumes, com mais de seis mil páginas, composta por 386 textos. Comecei a analisa-la com calma e contabilizei que dentre os mais de 400 autores somente 57 eram mulheres, sendo que em onze artigos elas figuravam como coautoras em parceria com autores, e em outros seis eram as tradutoras de trabalhos estrangeiros.
Ou seja, a tomar esta obra como exemplo, o que nós mulheres penalistas e processualistas penais pensamos e falamos sobre direito material e processo gira em torno de 13% do que se considera ser doutrina essencial em nosso país.
Resolvi então apurar minha pesquisa com alguns temas específicos, selecionando um relacionado às demandas das mulheres por proteção na esfera penal (violência doméstica) e outro de caráter mais geral, mas que demanda um recorte de gênero (lei de drogas).
O resultado foi ainda mais espantoso, pois naquele tema para o qual (e pelo qual) muitas pesquisadoras debruçam anos de seus estudos – violência de gênero – nos artigos publicados figuravam quatro autores para também quatro autoras. E, no tema mais geral – drogas –, dos seis trabalhos somente dois eram subscritos por juristas mulheres (sendo um deles em coautoria com um penalista homem).
Por óbvio que não estou a afirmar que somente mulheres possam escrever sobre violência doméstica. Todavia, mais aterrador que o fato de que justamente um tema como esse seja equanimemente “partilhado” com autores homens, é o tratamento na maioria insípido a ele dispensado, como se o mesmo em nada dissesse com o gênero e pudesse ser analisado sob a perspectiva puramente constitucional, penal ou processual penal.
Por outro lado, também não estou a reivindicar que a política de drogas devesse (em uma compensação a beirar o sexismo às avessas, como afirmariam alguns) ser tratado por uma maioria feminina. Entretanto, o que espanta mais uma vez é que, em um objeto de estudos como este, no qual, aqui, rapidamente, eu possa pensar em no mínimo cinco grandes e reconhecidas juristas que pudessem aborda-lo sob a especificidade de gênero em nenhum momento esse recorte tenha tomado a relevância devida.
Nunca é demais lembrar que, no Brasil a população carcerária composta por mulheres cresceu 567% nos últimos 15 anos, passando de 5.601 para 37.380 detentas; destas 67% são negras; 80% são mães; na maioria de mais de dois filhos; e grande parte delas está presa pelo tráfico de ínfimas quantidades de drogas; crime, como sabido, praticado sem violência ou grave ameaça. São 68% as mulheres presas por envolvimento com o tráfico, na maioria esmagadora não ligadas a organizações criminosas. Em verdade, ocupantes de posições coadjuvantes no crime, que se referem a serviços de transporte ou de pequeno comércio, muitas pela necessidade de sustentar suas próprias famílias.
Nossas vozes continuam a ser silenciadas nas obras e nos eventos jurídicos. E isso tem uma razão de ser.
De fato, nos últimos anos a participação feminina tem crescido em número em todos os segmentos da esfera jurídica. Somos juízas, promotoras, procuradoras, professoras, delegadas, defensoras públicas, advogadas, desembargadoras e ministras. Todavia, muitas ainda são as dificuldades que enfrentamos para que continuemos a crescer não só em quantidade. Nossa participação na espaço público jurídico ainda é meramente formal.
O que a participação desigual dos diversos atores e atrizes na esfera pública mostra que, é toda vez que um grupo de desiguais discute alguma questão e algo transparece como de interesse geral, via de regra, este é o dos dominantes[1]. Como diz Nancy Fraser, a pesquisa feminista tem documentado uma síndrome demonstrativa de que em locais de discussão mistos há uma tendência de que os homens interrompam as mulheres mais do que estas os interrompem; que os homens falem mais, por mais tempo, e com maior frequência que as mulheres; e que as intervenções das mulheres sejam, com mais frequência, ignoradas ou não respondidas[2]. E daí porque, os/as membros de grupos sociais subordinados, tais como o das mulheres, dos negros e dos homossexuais têm encontrado vantagens em constituir públicos alternativos, que a autora designa como contra-públicos subalternos, contrapostos ao espaço público único.
Para Fraser, os “públicos” seriam cenários paralelos nos quais os/as membros destes grupos sociais subordinados criam e circulam contradiscursos para formular interpretações condizentes com suas identidades, interesses e necessidades. Espaços próprios nos quais seria possível reduzir (embora talvez não eliminar), as desvantagens enfrentadas em esferas públicas “oficiais”.
Foram muitos os obstáculos superados. Mas ainda são de pedras os caminhos que as mulheres percorrem nas diferentes carreiras jurídicas desde os bancos das faculdades de Direito. Para alguns simplesmente não existimos enquanto juristas. E isso tem se tornado flagrante desde que começamos a apontar para as mesas dos grandes congressos e encontros e lá encontrarmos (quando encontramos) somente uma ou duas mulheres.
O mundo jurídico é doente. Portador de uma síndrome cujas diversas manifestações são a nossa invisibilidade na doutrina, nos boletins, nas mesas dos eventos, nos artigos virtuais sobre os mais importantes debates da atualidade.
Creio que precisamos começar a pensar na criação e/ou fortalecimento de espaços públicos contra-hegemônicos. A publicar obras sobre todos, absolutamente todos, os temas que estejam em voga em coletâneas de maiorias femininas. E a deixar sempre nos eventos jurídicos, ao nosso lado, uma cadeira vazia a simbolizar que nossa ausência é eloquente.
Notas e Referências:
[1] PINTO, Céli. Teorias da Democracia: Diferenças e Identidades na Contemporaneidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 51. E, neste sentido, vão os estudos de Iris Young, Seyla Benhabib e de Nancy Fraser.
[2] FRASER, Nancy. Rethinking the Public Sphere: a Contribution to the Critique Actually Existing Democracy. In: CALHOUN, C. (Org.). Habermas and the Public Sphere. Cambridge: MIT Press, 1992. p. 119.
. . Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutora em Direito pela Universidade de Brasília – UnB.. .
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