Por Andreu Sacramento Luz e Ezilda Melo - 17/03/2016
“POR MIM SE VAI À CIDADE DOLENTE, POR MIM SE VAI À ETERNA DOR , POR MIM SE VAI À PERDIDA GENTE.
JUSTIÇA MOVEU O MEU ALTO CRIADOR, QUE ME FEZ COM O DIVINO PODER, O SABER SUPREMO E O PRIMEIRO AMOR.
ANTES DE MIM COISA ALGUMA FOI CRIADA EXCETO COISAS ETERNAS, E ETERNA EU DURO. DEIXAI TODA ESPERANÇA, VÓS QUE ENTRAIS!”
(Canto III, A porta do Inferno – Vestíbulo Rio Aqueronte – Caronte)
Da Divina Comédia de Dante Alighieri à instrução hermenêutica, filosófica e procedimental do Direito Processual. Destaca-se, em sede inaugural, o retrato do poeta no período em que escreveu a obra, bem como a ação “revolucionária” por ele causada, que motivaram, dentre outras estruturas, o nascimento da literatura moderna, haja vista ter sido esta uma das primeiras obras escritas em idioma outro que não fosse o latim.
À época a publicação em livros era inexistente, entretanto as leituras de obras, em praças publicas e outros ambientes, tornou-se frequente. Destarte, posicionando-se em uma dessas leituras de obras, entretanto, fundados na hermenêutica jurídica e na filosofia, ir-se-á pautar à releitura do Direito Processual, sob o prisma da arte e da literatura.
O termo Comédia utilizado por Dante, nasceu numa ordem antípoda à Tragédia, que traz em sua essência um início “bom” e um final “ruim”. Por sua vez a Comédia, apresenta um início doloroso (ruim), passando, ao final de sua essência, ao “bom”. Ressalte-se que o cabeçalho original da obra foi apenas COMÉDIA sendo, em momento posterior à sua primeira edição nos anos de 1555, acrescido o adjetivo “Divina” ao título da obra.
Desde já se pode apresentar os primeiros nexos entre a Comédia de Dante e o Processo, como por exemplo: direito processual nasce, em seu contexto mais estrito, para regular as ações procedimentais dentro do exercício da jurisdição, objetivando o fim da controvérsia que levou os sujeitos da relação à quebra da inércia da Jurisdição Estatal. Neste mesmo sentido conduz o Direito Processual a uma relação conflituosa de interesses, qualificada por uma pretensão resistida (lide), que em sua origem é negativa (ruim), mas que, após um devido processo legal, chegar-se-á a uma verdade (boa) e uma completa solução de conflitos (ironia).
A verdade aqui deve ser relativizada, embora essa não seja a pretensão do Estado, haja vista que para essa ordem, a verdade alcançada pelo processo é a verdade real dos fatos. Entretanto, acrescido de relativização, perceber-se-á que a verdade alcançada no processo é uma verdade processual, que por sua vez não se confunde com a verdade real dos fatos.
O colhimento de provas, bem como todos os procedimentos necessários para o deslinde final numa dada relação processual, coloca os seus sujeitos em uma posição de conflito: de um lado o autor e do outro o réu, jogando em um amplo tabuleiro pelo tão sonhado prêmio (a cabeça decapitada do outro, como fora em João Batista, como forma de demonstração da vitória e soberania da verdade).
A Divina Comédia é uma obra no estilo medieval, principalmente no que diz respeito à sua estrutura, que segue o modo geométrico, estando dividida em trinta e três cantos (exceto o primeiro, este, o inferno, possui trinta e quatro cantos, objetivando um total perfeito de cem cantos), sendo eles divididos em tercetos, perfazendo também um nexo com a Santíssima Trindade. Por sua vez, a organização processual, que também possui a sua estrutura positivada e organizada, contém três efeitos tutelares: tutela de cognição, tutela de execução e tutela cautelar.
Destaca-se com muita relevância a figura angelical, humana e consciente do Anjo Caído, que em telas de Salvador Dalí[2] (pintada depois de pedido especial do governo da Itália) foi retratado com o corpo notadamente gravado por gavetas vazias, do qual pode-se arguir a insuficiência do discurso jurídico e elencar as possibilidades que são abertas pela arte.
Verifica-se que este corpo angelical, aberto às interpretações daquele que o observa, alarga o campo de abordagem politica, social ou jurídica, dos argumentos dogmáticos, bem como da busca incessante por direitos das instituições (módulos/núcleos) que surgem com o passar dos tempos.
O corpo aberto do anjo e da arte reflete a necessidade que tem o Direito de se relativizar quando contraposto às novas instituições. Um corpo liberto de qualquer mácula ou receio de pecado. Um corpo pregado na cruz como forma de protesto na cidade de São Paulo. Um corpo amante e amado, que faz do seu ofício a arte de viver. Um corpo que luta por direitos, como o dos travestis, gays, mulheres, negros, deficientes, bem como de todos os monstros, nos dizes de Antônio Negri, que compõe esta carne social.
Tratando-se então da caminhada Divina, vivida por Dante, cujo ponto inicial é o Inferno, relembra-se o ensinamento de Sartre, quando da sua filosofia de defasa ao existencialismo afirma: “o inferno são os outros”.
Dando início à caminhada, Dante depara-se com o Inferno (rota de fuga por Virgílio oferecida, haja vista que a pretendida pelo poeta estava obstaculizada pelos animais, que nos traços mais remotos nos oferece a ideia dos vetores de pacificação social) onde o caos, motivador da ordem social, ou pelo menos do início da desordem individual, indica o sentido do estreio da lide, que por sua vez representa (necessariamente) o veículo condutor para a prestação jurisdicional do Estado.
Em sua inércia, mesmo ciente do inferno existente, o Estado permanece passível de provocação, cujo objeto imediato será a prestação jurisdicional. A contraprestação do Estado só existirá na ocorrência das condutas tipificadas como ilícitas e enumeradas no rol dos anéis do inferno de Dante.
Neste ponto de vista realça-se a ordem subversiva da criação do Inferno, pois segundo o poeta, com respaldos bíblicos, Lúcifer, quando expulso do paraíso, arremata consigo uma densa proporção de terras, declinando assim em uma espécie de “funil”, cujo morro ostentava-se o purgatório, e a sua divisão se daria por meio dos círculos onde a gravidade dos pecados (crimes ou atos ilícitos) indicava a posição de cada um. Depois de passado pelo Inferno e Purgatório, chegando ao Jardim do Éden ocorre a despedida de Virgílio, por ser este pagão e não poder adentrar ao mundo das condenações.
Hoje, Virgílio encerra-se na vida daqueles que não podem chegar às barras do Judiciário, bem como daqueles que, mesmo tendo acesso à justiça (Princípio Constitucional do Acesso à Justiça), não a tem como uma ordem justa. Citam-se também aqueles esquecidos, além dos anéis do Estado. Fala-se daqueles marginalizados, excluídos, onde se reproduzem Estamiras, Macabéas e alguns outros personagens da realidade. Beatriz, a inspiração de Dante aparece para lhe conduzir nessa tenebrosa e prazerosa viagem.
Beatriz, a Defensora Pública, ou também particular, cujo objetivo é manter a defesa (mesmo que técnica em alguns casos), do então “sortudo” a caminhar nas esteiras da persecução criminal ou civil.
Caminha o poeta em direção ao purgatório, cuja formação geométrica também se dava em perfil afunilado, contendo agora sete partes (são sete os pecados capitais). Dividindo-se em alto e baixo purgatório, onde, necessariamente, os pecados menos graves (pecados leves ou veniais) são representados no alto purgatório (a exemplo da Orgulho e da Inveja), enquanto os pecados mais graves (pecados mortais) estariam representados no baixo purgatório (como os pecados da Gula e da Luxúria).
Destarte, pode-se por fim compreender que o purgatório é apresentado como um espaço de transição, onde há o Contraditório e Ampla Defesa (princípios norteadores do Direito Processual), individualizado no julgamento particular do sujeito.
Será, então, o momento de toda a instrução processual onde, havendo levantamentos de provas, constará dos autos as suas respectivas informações e, como nos apresentou Santo Agostinho, nas suas Confissões, será feito o levantamento dos ilícitos cometidos durante toda a vida (ousa-se a dizer que desde o nascimento até o momento da morte – o filtro do pecado lava a alma daqueles que ali estão prostrados).
Nessa ordem de transição o objetivo das partes, dentro da ação processual, é de ter o seu direito controvertido em um Processo de garantia, sendo este entendido como o que faz “valer” as indicações constitucionais processuais, bem como o que garante o efetivo cumprimento da ordem justa.
Como alertado acima, a presença de Virgílio limita-se até as sobras da porta do Paraíso Terrestre, tendo sido, a partir de então, conduzido o poeta pela sua “musa literária”, real ou ficcional, mas que lhe eleva à categoria de pureza e misericórdia pela ablução nas águas do rio Lete (representação, na visão dantesca, do rio Tigre e Eufrates, cuja lenda sustenta ser a interseção do paraíso).
No caminho ao Paraíso, será Dante conduzido pela bela e admirável Beatriz (a beatitude), símbolo de uma sociedade “menos misógina”, cuja coroa será concedida, ora por ter suportado o ônus do processo (ou da peregrinação), ora por ter vencido a parte que demandava no polo contrário.
Beatriz é a grande defensora, a mãe desolada e a criatura (amante a amada) que objetiva manter o Devido Processo Legal. Em termos aproximados pela literatura, o perfil de Ariano Suassuna, quando da escrita do Auto da Compadecida, oferece à similar personalidade (A Compadecida) a coroa de glória na busca de uma instrução lastreada na equidade (Princípio da Equidade no Direito Processual).
Cumpre destacar, que a presença de Beatriz se encerra antes da chegada a Deus, tendo em vista que a mesma precisava retornar ao seu lugar de origem (como beata), sendo seguida a viagem então por São Bernardo, que conduz Dante para a visão gloriosa: enxergar o seu Salvador.
A sentença, decisão que põe “fim” à lide, apresenta-se como final da jornada e início de uma vida mais tranquila, cuja harmonia e paz social foram restabelecidas, por intermédio daquele que não deveria fazer faltar, qual seja o Estado (isso sem falar da fase de execução da sentença, ou cumprimento de sentença como prefere os doutrinadores contemporâneos).
Veja-se que o Estado, interventor ou não, e responsável pela manutenção da paz social, após provocação das partes (denúncia, queixa crime, ação ordinária, etc.) mostra-se fiel interessado pelo processamento da lide, bem como pelo estado finalístico que a mesma visa apresentar.
Será então o processo um meio de pacificação social, quando rompido os padrões de normatividade social. Aduz informar que a posição do Estado é, como no jogo de Xadrez, de “xeque”, cuja presença Rainha, deve se encurvar o rei e toda a sua corte.
Como em um jogo de tábua, o Direito Processual está para quem mais sabe jogar. Seria Dante um grande jogador? Ou seria o sonho o maior vilão da história? Em Alice no País das Maravilhas[3], o real e o imaginário se confundem na perpetuação dos interesses da decisão final. Ou ainda seria “Os Sapatos” de Van Gogh o maior símbolo da luta no “octógono” do processo? Sem lutas, sem mãos, sem luvas, está-se a despir o corpo nu da Neguinha do poeta popular. Ou nas palavras de Hans Christian Andersen “O rei está nu”.
Como num processo jurídico que as partes têm esperança, assim anuncia Dante: “deixai toda esperança, ó vós que entrais”. (Inferno III, 7). Como num processo também, A Divina Comédia é uma maneira de ver o cosmo dantesco e reescrever os cantos da vida e da morte. A trilogia que articula o poema inteiro seja na razão – humano –fé; seja no presente – passado – futuro; seja na culpa –redenção- esperança; no inferno – purgatório – céu é o mesmo que articula as partes – a história resumida – a resposta do processo. Do inferno ao paraíso ou um passeio ao contrário do paraíso ao inferno, purgando os pecados no purgatório ou no tempo interminável da longa duração de um processo. Talvez Dalí e Dante receberam aquela luz que ainda hoje brilha em nós: “que, por bastante voltar-me à memória, e nestes versos um pouco soar, mais poderá estender-se a tua vitória”. As conclusões do processo são de quem tem o poder para tal.
Notas e Referências:
[1] A escolha de "Um Diabo Lógico" para ser a representação da VIII Semana Jurídica da Faculdade Ruy Barbosa e para o presente ensaio deu-se por causa da Exposição "A Divina Comédia" de Dalí, inspirada no clássico homônimo do poeta italiano Dante Alighieri. Cem são os cantos que compõem o Poema Sagrado de Dante, e cem são as aquarelas ambientadas neles. A proposta visual da exposição respeitou a estrutura sequencial dos cem cantos do poema. A primeira sala é dedicada ao Inferno, com 34 imagens, nos dois outros espaços, o Purgatório (ver a construção do Purgatório na obra "Idade Média, idade dos homens", de George Duby) e o Paraíso com 33 quadros cada. O método paranóico-crítico de Dalí ajuda a analisar a entrada de Dalí para a Commedia de Dante, e assim interpretar até que ponto o "delírio de interpretação" do artista passa a ser uma traição ou uma leitura real do texto, ainda que pessoal. "Um Diabo Lógico", na divisão tripartite das cenas visuais, pertence à sala reservada ao inferno ("e já se encontra a lua sob nossos pés; pouco é o tempo que nos é concedido e há mais coisas pra ver que estas que vês" - Dante) faz menção a Judas Iscariote, "com as pernas fora e a cabeça abocada". A lógica, a racionalidade, o corte epistemológico, representados pela cabeça rachada. Onde estará a lógica? Ela entra pelo cérebro e sai pela boca? A Obra é Aberta já diria Umberto Eco na obra do título melhor traduzido (Opera Aperta) e a tentativa foi a de possibilitar uma leitura transdisciplinar do Direito com a literatura, com a pintura, com as artes plásticas e trazer o debate para o que chamam de Lógica, seja ela jurídica, ou não, mesclando tudo isso ao processo brasileiro, que à cada dia e com as alterações novas mais parece um enredo de Kafka.
[2] DALÍ, Salvador. Grandes Mestres. Abril Coleções.
[3] DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. Tradução: Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Pespectiva, 2011.
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução e notas de J. P. Xavier Pinheiro com prefácio de Raul de Polillo. W. M. Jackson, Rio de Janeiro, 1960.
BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e Intérpretes: Sobre Modernidade, Pós Modernidade e Intelectuais. Tradução de Renato Aguiar 1ª. Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
DALÍ, Salvador. A Divina Comédia. CAIXA Cultural Salvador 18 de dezembro de 2013 a 23 de fevereiro de 2014.
________________ . Grandes Mestres. São Paulo: Abril Coleções. 2013.
DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. Tradução: Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Pespectiva, 2011.
ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2012.
FOUCAULT, Michel. A ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
GAILLEMIN, Jean-Louis. Dalí El gran paranoico. Barcelona: Blume, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. Tradução de Antônio Carlos Braga. 3ª. ed. São Paulo: Editora Escala, 2009.
____________________. Além do bem e do mal. Trad. PauloCésar de Souza. São Paulo. Companhia das Letras.1998.
. Ezilda Melo é Professora Universitária, Mestra em Direito Público pela UFBA. Especialista em Direito Público pelo Curso JusPodivm. Graduada em Direito pela UEPB e em História pela UFCG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7223307007394926 www.ezildamelo.blogspot.com
. Andreu Sacramento Luz é Bacharelando em Direito pela Faculdade Ruy Barbosa. Pesquisador. Membro do Grupo de Pesquisa: Fractais Transdisciplinares do Direito. Monitor das disciplinas de Direito Civil Parte Geral e Direito Civil Obrigações da Faculdade Ruy Barbosa. E-mail: andreuluz.adv@gmail.com. .
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