Da democracia à partidocracia: reflexos no crescimento da corrupção

19/12/2016

Por Emerson Garcia – 19/12/2016

1. A inter-relação entre democracia e partidos políticos 

A democracia, em sua expressão mais simples, faz do povo a origem e o fim do poder estatal. Como o povo titulariza o poder, nada mais natural que o exerça diretamente ou por intermédio dos representantes que venha a escolher. O governo assim formado deve direcionar suas ações ao bem comum, que há de ser contextualizado na coletividade que representa, não em outra qualquer. Especificamente em relação ao processo de formação do governo, constata-se que o crescimento populacional em muito dificulta a operacionalização da democracia direta, o que confere uma posição de primazia à democracia representativa.

A democracia representativa torna-se operativa com a realização de eleições. É o momento em que os interessados em exercer o mandato eletivo devem submeter o seu nome àqueles que possuem capacidade eleitoral ativa, os cidadãos. Nesse processo, constatou-se que a ideologia prestigiada assume maior relevância que a individualidade de cada ser humano, bem como que a complexidade da vida contemporânea exige, tanto quanto possível, a concentração de referenciais ideológicos, o que colaborou para o surgimento dos partidos políticos.

Os partidos políticos podem ser vistos como verdadeiras organizações interpessoais de natureza ideológica. Aglutinam indivíduos que comungam de valores políticos similares e possuem uma estrutura essencialmente dialética: o debate justifica a sua existência e direciona a sua atuação. Não se compatibilizam com a imposição ou a mansa resignação, isso sob pena de se tornarem meros instrumentos de legitimação do arbítrio. Como se constata pela etimologia da expressão, cada partido consubstancia uma parte das ideias vigentes no ambiente sociopolítico, o que, ao menos conceitualmente, permite a construção de sua identidade.

Os partidos possibilitam a organização do pensamento político e o evolver da própria democracia, em muito contribuindo para a vinculação dos governantes ao alicerce ideológico que possibilitou a sua ascensão ao poder. Como afirmou James Bryce,[1]a associação e a organização dos partidos são, para os órgãos governamentais, o mesmo que os nervos motores para os músculos, os tendões, os ossos para o corpo humano. Eles transmitem a força motriz, determinam a direção para a qual os órgãos devem se dirigir”. Os programas partidários permitem que consideráveis parcelas da população permaneçam unidas em prol de objetivos comuns, fazendo que o voto assuma colorido ideológico e não puramente pessoal, direcionado, pura e simplesmente, pela simpatia e persuasão do candidato preferido.

A preeminência da vontade da maioria, fórmula que serve de norte a praticamente todos os procedimentos eletivos, é um verdadeiro postulado democrático. Não significa, por outro lado, possa ser aniquilada ou simplesmente desconsiderada a participação das minorias. Maiorias e minorias, de modo dinâmico e volátil, têm decisiva participação na formação do poder e na preservação do ideal democrático. Mantêm entre si uma relação dialética que assegura o contínuo aperfeiçoamento do sistema, daí a impossibilidade de as maiorias ocasionais adotarem medidas, fáticas ou jurídicas, que inviabilizem a organização de seus opositores e assegurem a sua perpetuação no poder. A democracia encontra-se intimamente interligada ao pluralismo, referencial de respeito mútuo, de livre debate de ideias e opiniões.

2. O alvorecer da partidocracia e a suscetibilidade à corrupção

O fato de o povo não se conectar diretamente aos seus representantes tem potencializado a influência dos partidos políticos na formação e na condução do governo. Essa influência, em não poucos aspectos, transmudou-se em dominação. Enquanto a expressão “partido político” indica o conjunto de pessoas, dotadas de semelhanças ideológicas, que se reúnem para conquistar e manter o poder, o designativo “partidocracia” (Parteienstaat para os alemães, Party Government para os ingleses, Stato di Partiti ou Partitocrazia para os italianos) significa, em sentido lato, “o governo dos partidos.”[2] As decisões já não são mais tomadas pelos parlamentares, mas, sim, pelos dirigentes dos seus partidos, cuja influência é diretamente proporcional à sua falta de visibilidade para a opinião pública.

As instituições, ademais, deixam de ser o epicentro estrutural do poder, cedendo lugar aos partidos políticos, que dominam a cena política e absorvem as instituições. A tradicional divisão de poderes entre Executivo e Legislativo, por exemplo, cede lugar à tensão dialética entre “bloco de governo” e “bloco de oposição”, o que importa em um redimensionamento ou, melhor dizendo, arrefecimento dos mecanismos de checks and balances sempre que maiorias ocasionais com idêntica ideologia partidária dominem a cena política. Os partidos, assim, deixam de ser canais eleitorais para tornarem-se titulares do próprio mandato político.

Esse estado de coisas, longe de ser exclusivo do sistema parlamentar, em que as coalizões partidárias são necessárias para a estabilidade política,[3] tornou-se endêmico nas democracias contemporâneas, pela singela razão de os partidos políticos serem o principal caminho de acesso ao poder.

Atrelada à crescente influência dos partidos políticos no processo decisório das estruturas estatais de poder, tem-se a suscetibilidade dessas associações à corrupção. A ideologia é degenerada por completo e as cifras passam a direcionar as decisões políticas, o que se torna particularmente grave quando lembramos da pouca visibilidade dos dirigentes partidários.

A intensidade com que a corrupção tem penetrado nos partidos políticos e, por via reflexa, nas estruturas estatais de poder, foi bem retratada no “barômetro global da corrupção”, um dos índices divulgados pela Transparência Internacional, organização não governamental de origem germânica que divulga quadros analíticos a respeito do estágio de desenvolvimento de corrupção nos distintos quadrantes do mundo. Como mencionamos em obra específica,[4] o índice relativo a 2005, primeiro a ser divulgado, revelou que o impacto da corrupção sobre a vida pessoal e familiar é mais acentuado nos lugares mais pobres. Conquanto possa soar paradoxal, um percentual relativamente pequeno de famílias em países com alta circulação de riquezas admitiu ter pago subornos nos últimos 12 meses, enquanto uma proporção relativamente alta de famílias de um grupo de países da Europa Oriental, África e América Latina admitiram tê--lo feito. Tomando como parâmetro a renda per capita, o efeito econômico do suborno difere de um país para outro, podendo absorver ou não parte considerável do orçamento familiar. Quanto aos setores mais corruptos, as instituições políticas ocupam o ápice da escala em 45 dos 65 países alcançados pela pesquisa[5]. O primeiro lugar da lista é ocupado pelos partidos políticos. No barômetro global relativo ao período 2010/2011, foram consideradas, como instituições mais afetadas pela corrupção, nessa ordem, os partidos políticos, a polícia, o Judiciário, o Legislativo, o setor privado, os servidores públicos, o sistema de educação, a mídia e os corpos religiosos. Na República Federativa do Brasil, a primazia foi dos partidos políticos.

A permeabilidade dos partidos políticos à corrupção configura um fator de análise que parece passar despercebido à nossa incipiente e, por vezes, insipiente democracia. Ainda não nos demos conta de que o envolvimento da cúpula de um partido político em atos de corrupção configura indicador seguro de que igual prática será adotada pelos governantes que a ele estejam vinculados. Apesar disso, ainda acreditamos, ingenuamente, que os candidatos são impermeáveis.

Esse quadro tem trazido muitos dissabores ao povo brasileiro, a começar pela manutenção no poder de partidos políticos cuja cúpula já foi, inclusive, condenada pela prática de atos de corrupção. Apesar dessa constatação, observava Rui Barbosa[6] que “[d]eplorar os partidos, que são positivamente um bem e uma necessidade congénita à sociedade humana, tanto importa como ‘reprovar a névoa e o vento”, ou as forças que equilibram o mundo. O que deprava os partidos são as considerações pessoais, e destas a responsabilidade pertence aos que não sabem dirigi-los, senão cultivando-as; porque lhes falece capacidade, ou sinceridade, para dominarem pelas ideias, e ficam reduzidos a restribar-se nos indivíduos que as não têm, governando com a inveja, a mediocridade e a ronha”.

3. Epílogo

Nosso grande desafio, especialmente em períodos eleitorais, é enxergarmos a estrutura partidária que está por trás de cada candidato e, num segundo momento, os interesses políticos e econômicos que movem essa estrutura. Somente assim conseguiremos ultrapassar a retórica e alcançar a essência, antecipando, com relativa facilidade, o que farão quando eleitos.


Notas e Referências:

[1] La République Américaine, Tome III. Le Système de Parti – L’Opinion Publique, trad. de P. Lestang, Paris: M. Giard & É. Brière, 1901, p. 1.

[2] DE LA MORA, Gonzalo Fernandez. La Partitocracia, Madrid: Institutos de Estudios Políticos, 1977, p. 149.

[3] Cf. SPÄTE, Ludwig. Parlamentarismus und Parteienstaat in Deutschland: Konflict zwichen Parteienstaat und Parlamentarismus. Deutschland: Grin Verlag, 2008, p. 2 e ss.. Sobre o papel dos sindicatos na partitocracia, vide: PELINKA, Anton. Gewerkschaften im Parteienstaat. Berlim: Duncker & Humblot, 1980.

[4] Vide a primeira parte da obra Improbidade Administrativa. 8ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: Editora Saraiva, 2015, p. 61 e ss..

[5] Observada uma escala de 1 (pouco corrupto) a 5 (muito corrupto), são os seguintes os setores e instituições mais afetados pela corrupção: a) partidos políticos – 4,0; b) parlamento – 3,7; c) polícia – 3,6; d) sistema legal/Judiciário – 3,5; e) negócios/setor privado – 3,4; f) tributação – 3,4; g) alfândega – 3,3; h) mídia – 3,2; i) serviços médicos – 3,2; j) concessionárias de serviços públicos – 3,0; k) sistema educacional – 3,0; l) militares – 2,9; m) registro e autorização de atividades – 2,9; n) organizações não governamentais – 2,8; e o) organismos religiosos – 2,6. Realizando-se uma divisão por região, o resultado é o seguinte: a) Ásia – partidos políticos (4,2), parlamentos (3,9) e polícia (3,9); b) África – polícia (4,4), partidos políticos (4,2) e aduana (4,0); c) Europa Ocidental – partidos políticos (3,7), parlamentos (3,3) e iniciativa privada (3,3); d) Europa Central e Oriental – polícia (4,0), partidos políticos (4,0) e parlamentos (3,9); e) América Latina – partidos políticos (4,5), parlamentos (4,4) e polícia (4,3).

[6] Teoria Política. Seleção, coordenação e despacho de Homero Pires. São Paulo: W. M. Jackson Inc. Editores, 1964, p. 69.


emerson-garciaEmerson Garcia é Doutor e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Antuérpia – Bélgica) e em Ciências Políticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa. Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Consultor Jurídico da Procuradoria-Geral de Justiça e Diretor da Revista de Direito. Consultor Jurídico da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP). Publicou, como autor, coautor, coordenador ou tradutor, mais de quatro dezenas de obras jurídicas. Foi examinador em quase uma centena de concursos públicos, sendo Coordenador da Banca de Direito Constitucional em diversos exames nacionais da Ordem dos Advogados do Brasil. É membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), participando, ainda, da American Society of International Law e da International Association of Prosecutors. Facebook: emersongarcia / Fanpage: professoremersongarcia / Instagram: professoremersongarcia


Imagem Ilustrativa do Post: An Englishman, even if he is alone, forms an orderly queue of one.” // Foto de: martin.mutch // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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