Por João Marcos Braga – 11/05/2017
Ontem, no interrogatório do Ex-Presidente Lula, o renomado Professor-Titular René Ariel Dotti, um dos criminalistas mais respeitados do nosso país, sugeriu a utilização de critérios morais para a fixação de eventual pena a ser imposta ao acusado. É muito conturbada a relação entre culpabilidade, moral e pena. Houve uma efetiva evolução, na dogmática penal, até se retirar da pena e da culpabilidade aspectos morais. Nesse contexto, é importante ressaltar alguns pontos da moderna teoria da culpabilidade e da pena, a fim de evitar retrocessos.
A partir do século passado, a culpabilidade passou a ser percebida como o limite e a medida da pena. É bem verdade que essa concepção decorreu do embate entre o naturalismo (teoria psicológica), neokantismo (teoria psicológica-normativa) e ontologismo-fenomenológico (teoria normativa)[1]. É a partir do modelo teórico proposto por Roxin que a moderna teoria da culpabilidade ganha nova roupagem, “ela deixa de ser um juízo compreensivo dos elementos subjetivos do tipo, segundo a tradição causal, tampouco se constitui num juízo de reprovabilidade, conforme a teoria normativa e o finalismo”[2]. Passa a ser um juízo de responsabilização sobre a motivação do agente.
A ampliação do sentido dogmático de culpabilidade para a ideia de responsabilidade e a harmonização desse com as perspectivas político-criminais, como é proposto por Roxin, agrega às distintas funções de limitação e de graduação da pena[3].. Como lembra Salo de Carvalho, “Roxin percebeu que o conceito de culpabilidade havia cumprido duas funções práticas distintas na história do direito penal: a primeira, de justificar o fim retributivo da pena, a segunda de limitar a imposição das sanções penais” [4]. É exatamente essa segunda função que “exerceria a tutela dos direitos fundamentais do autor do delito contra os excessos e as ingerências punitivas indevidas” [5].
A teoria de Roxin permite um critério mais bem definido para estabelecer o grau da pena. Se de um lado a teoria normativa pura, demarcada a partir da ideia de retribuição, firmava parâmetros gerais para a retribuição, no sentido de que a pena deveria corresponder ao grau de culpa. Ao incorporar as perspectivas preventivas, Roxin opera uma readequação da culpabilidade às novas diretrizes político-criminais[6]. De acordo com o Professor de Munique, a culpabilidade formaria juntamente com a responsabilidade os elementos constitutivos da imputação subjetiva:
Para a imputação subjetiva da ação injusta devem concorrer a culpabilidade do autor e a necessidade preventiva de pena. Por isso, proponho chamar a categoria do delito que sucede ao injusto não de “culpabilidade”, mas “responsabilidade”. Afinal, na teoria da imputação subjetiva devem ser integradas, ao lado da culpabilidade, aspectos preventivos, de maneira que a culpabilidade representa somente um apecto – de qualquer maneira essencial – daquilo que denomino “responsabilidade”[7].
A partir de uma releitura dos textos de Roxin, Juarez Tavares propõe as seguintes conclusões, em relação à culpabilidade moderna: 1ª) “o juízo de culpabilidade está sempre associado a uma determinação da responsabilidade com base na necessidade da pena”[8]; 2ª) “se a pena é desnecessária para fins preventivos, não deverá ser imposta”[9]; 3ª) “se o fato é de pequena gravidade, ainda que não seja insignificante, a pena pode ser extinta”[10]; 4ª) se as condições fáticas do art. 59 do Código Penal são favoráveis ao réu, a pena deve ser reduzida abaixo dos limites fixados pela culpabilidade[11].
Nesse contexto, em linhas bem gerais, pode-se dizer que o princípio da culpabilidade, tal como concebido pela dogmática penal de hoje em dia, é um importante instrumento de proteção do indivíduo frente ao poder do Estado, notadamente porque esse princípio: a) restringe a responsabilidade penal apenas ao autor do delito; b) afasta a possibilidade da incidência da sanção penal quando inexistente um vínculo subjetivo; c) excluí a responsabilidade pelo resultado[12]; d) diferencia e valora graus de responsabilidade distintos[13]; e) garante a proporcionalidade da pena em relação à ação lesiva do bem jurídico. Esses elementos limitadores do poder punitivo não se encontravam presentes na antiga teoria psicológica. Entretanto, a partir do conceito normativo de culpabilidade esse juízo passou a estar submetido a um juízo mais depurado[14], de maneira que a culpabilidade é uma etapa significativa de proteção ao autor frente ao poder de intervenção do Estado[15]. Tratando-se de uma etapa protetora, o conteúdo da culpabilidade “deve ser complementado com elementos que podem ser suscetíveis de refutação e isso apenas será possível quando se mesclem características objetivas com referências normativas, capazes de cobrir o empírico com uma roupagem adequada a uma ordem jurídica baseada na defesa da pessoa e de seus direitos”[16].
A moderna teoria da culpabilidade propõe a exclusão da teoria retributivista e, principalmente, da palavra reprovabilidade, especialmente porque ela, como lembra Nilo Batista, instala “uma conotação ética no juízo sobre a conduta do sujeito”[17] e, por isso, está “em franca colisão com um dos pilares do penalismo ilustrado: a radical separação entre o direito e a moral”[18]. Essa nova formulação da culpabilidade, que tenta extirpar o conteúdo moral da culpabilidade, alinha-se aos avanços empíricos alcançados no âmbito da criminologia.
É sabido que o estudo da delinquência, especialmente pela escola criminológica das subculturas, revelou “a existência de uma sociedade plural, com diversos sistemas de valores divergentes em torno dos quais se organizam os grupos”[19]. BARATTA chega a afirmar que “a teoria das subculturas criminais nega que o delito possa ser considerado como expressão de uma atitude contrária aos valores e às normas sociais gerais, e afirma que existem valores e normas específicos dos diversos grupos sociais (subculturas)”[20]. Nesse contexto, a ideia de que o Direito Penal exprimiria regras e valores aceitos unanimemente pela sociedade não é verificável empiricamente. Também é importante a crítica formulada pela escola do leabeling aprroach, no sentido de que não existem propriamente valores per se, porém valores de quem observa contrastados com os daquele que é observado.[21]. Na verdade, em uma sociedade de classes, como a brasileira, o Direito penal está protegendo relações sociais, interesses, estados sociais ou valores escolhidos pelas classes dominantes, ainda que, sob o critério de sua universalidade[22].
Nesse novo contexto, Juarez Tavares delimita com precisão qual deve ser o conteúdo da culpabilidade, que deve ser firmado não como um juízo positivo, como proposto pelos causalistas e finalistas, mas sim um juízo negativo da capacidade de motivação. “Esse juízo deve ser emitido como uma condição essencial da culpabilidade em um estado de garantia e não pode ser substituído por outras formulações, sob pena de vir a se confundir com um juízo puramente moral”[23]. Para o autor, a culpabilidade estaria relacionada com a mistura de alguns elementos empíricos revestidos por referências normativas, formuladas em conformidade com as bases democráticas de um Estado de Direito, vejamos:
Na antiga teoria causal, como a culpabilidade resultava de mera constatação de que o autor imputável havia atuado com dolo ou culpa, sua substância era composta, exclusivamente, de elementos empíricos sujeitos a puro juízo de cognição. Nesse caso, o jurídico se expressava por meio do empírico. Com a normatização do conceito de culpabilidade, que até hoje perdura, esse juízo deve passar por um crivo mais apurado, de modo a se poder retratar a culpabilidade como uma etapa significativa de proteção do autor em face do poder de intervenção do Estado. Em se tratando de uma etapa protetiva, o conteúdo da culpabilidade não pode ser composto, exclusivamente, de elementos abstratos que conduzam a um puro juízo hipotético de poder atuar de outro modo. Esse conteúdo tem de estar recheado de elementos que possam ser suscetíveis de refutação e isso só será possível quando se mesclem nesses elementos características objetivas, apreensíveis não apenas por juízos aléticos, mas também por referências normativas, capazes de revestir o conteúdo empírico de uma roupagem adequada a uma ordem jurídica assentada na defesa da pessoa e de seus direitos[24]. (grifos)
Dessa forma, a culpabilidade deve se relacionar visar à “individualização da pena à gravidade objetiva do fato, e não a juízos subjetivos de conveniência de clamor público ou de realização da moralidade” [25]. Para tanto é necessário que a avaliação do juízo de culpabilidade se firme exclusivamente “sobre fatores relacionados ao desvalor do fato e ao desvalor do resultado, o que implicaria obedecer fielmente ao princípio da proporcionalidade entre fato e pena” [26].
Em uma ordem democrática, é exatamente da possibilidade de refutação que decorre a legitimidade do conceito de culpabilidade. Pode se dizer, então, que ela é um juízo firmado sobre a gravidade do fato, acerca de elementos empíricos, mas com conteúdo jurídico, formulado em conformidade com o Estado Democrático de Direito.
A confusão entre a instituição da pena, cujo limite é sempre a culpabilidade, e a moral, afronta os princípios de secularização de um Estado Democrático de Direito. Como bem ressalta Salo de Carvalho, “o processo secularizador permitiu, na Modernidade, uma refundamentação antropológica da legitimidade do político” [27], o que, segundo Canotilho, conduz ao reconhecimento dos direitos naturais do indivíduo e, em consequência, a uma concepção universalizadora de direitos humanos[28]. De outro lado, “a justificação e a configuração do direito a partir da moral não apenas possibilitaram a ingerência do sistema punitivo na vida íntima e privada das pessoas, mas ampliaram as teias da persecução criminal à esfera do pensamento, das convicções, das crenças e das opções individuais” [29].
Não é aceitável que a pena do indivíduo seja fixada com base em nenhum critério moral. Como bem ressalta o Professor Luigi Ferrajoli, “para que se possam proibir e castigar condutas, o princípio da separação entre direito e moral exige como necessário o dano de um modo concreto a bens jurídicos alheios, cuja tutela é a única justificação das leis penais como técnicas de prevenção de sua lesão”[30]. Por tudo isso, o Código Penal, a moderna teoria da culpabilidade e da pena não autorizariam que fossem levados em conta atributos morais de Lula como fundamento para avaliar sua personalidade. Tampouco se poderia lançar mão de fundamentos morais para majorar eventual pena a ser lhe imposta, como fez sugerir o Professor-Titular René Ariel Dotti ontem no interrogatório do Ex-Presidente. Trata-se, com todo o respeito, de grave equívoco.
Notas e Referências:
[1] CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª edição. 2015. p. 172.
[2] CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª edição. 2015. p. 173.
[3] CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª edição. 2015. p. 176.
[4] CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª edição. 2015. p. 176.
[5] CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª edição. 2015. p. 176.
[6] CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª edição. 2015. p. 176.
[7] ROXIN. Claus. A culpabilidade e sua exclusão no direito penal. In: Estudos de Direito Penal. 2ª ed. 2008. – Rio de Janeiro – Renovar. p. 154.
[8] TAVARES. Juarez. Culpabilidad y individualización de la pena. In: Racionalidad y Derecho Penal. p. 97.
[9] TAVARES. Juarez. Culpabilidad y individualización de la pena. In: Racionalidad y Derecho Penal. p. 97.
[10] TAVARES. Juarez. Culpabilidad y individualización de la pena. In: Racionalidad y Derecho Penal. p. 97.
[11] Daí a conclusão de Juarez Tavares: “Assim, se pode dizer que o art. 59 impõe que o julgador estabeleça na condenação dos limites máximos da pena pela determinação da culpabilidade. Delimitado o máximo pela culpabilidade, a pena somente pode ser diminuída; os elementos do art. 59 são critérios complementares, que apenas podem ser considerados a favor do réu e não contra ele”. (TAVARES. Juarez. Culpabilidad y individualización de la pena. In: Racionalidad y Derecho Penal. p. 97).
[12] Esta dimensão da culpabilidade contém um critério da culpabilidade que a distingue da imputação subjetiva. Aqui se afirma e se pressupõe mais do que uma responsabilidade subjetiva, se diferenciam modos de causação. “Aqui se afirma que culpable de uma lesión sólo puede ser quien por lo menos hubiera podido governar el acontecer lesivo” (HASSEMER, Winfried. ¿ALTERNATIVAS AL PRINCIPIO DE CULPABILIDAD?. Traduzido do alemão por Francisco Muñoz Conde, Catedrático de Direito Penal da Universidade de Sevilla, Espanha. Disponível em: << http://www.juareztavares.com/textos/hassemer_alternativa_culpabilidade.pdf>>. p. 4)
[13] Sob uma perspectiva superficial de análise, o dano infringindo à vítima pelo delito é sempre o mesmo, independentemente de o resultado ter sido causado de forma culposa ou dolosa. A partir do princípio da culpabilidade é possível diferenciar e valorar a ação dolosa e culposa.
[14] TAVARES. Juarez. Culpabilidad y individualización de la pena. In: Racionalidad y Derecho Penal. p. 97.
[15] TAVARES. Juarez. Culpabilidad y individualización de la pena. In: Racionalidad y Derecho Penal. p. 102.
[16] TAVARES. Juarez. Culpabilidad y individualización de la pena. In: Racionalidad y Derecho Penal. p. 103.
[17] BATISTA, Nilo. Cem anos de reprovação. In: Cem anos de reprovação. 2011. p 126.
[18] BATISTA, Nilo. Cem anos de reprovação. In: Cem anos de reprovação. p 126.
[19] PABLOS DE MOLINA, Antônio Garcia. Tratado de Criminología. 1999, p. 718. Apud: TANGERINO, Davi de Paiva. Culpabilidade. 2014, p. 151/152.
[20] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal. 1999. p. 70.
[21] TANGERINO, Davi de Paiva. Culpabilidade. 2014, p. 160.
[22] TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2003. p. 193.
[23] TAVARES, Juarez. Culpabilidade e individualização da Pena. In: Cem anos de reprovação. p 133.
[24] TAVARES, Juarez. Culpabilidade e individualização da Pena. In: Cem anos de reprovação. p 133.
[25] TAVARES, Juarez. Culpabilidade e individualização da Pena. In: Cem anos de reprovação. p 133.
[26] TAVARES, Juarez. Culpabilidade e individualização da Pena. In: Cem anos de reprovação. p 133.
[27] CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª edição. 2015. p. 172.
[28] CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª edição. 2015. p. 172.
[29] CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª edição. 2015. p. 172.
[30] FERRAJOLI, Direito e Razão, p. 208.
. João Marcos Braga de Melo é Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. Mestrando em Direito Penal na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Pós-Graduado em Direito Penal Parte Geral pelo IBCCRIM/COIMBRA. Pós-Graduado em Direito Penal Econômico pelo IBCCRIM/COIMBRA. Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pelo IDP..
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