Crônica da reforma do Código de Processo Penal brasileiro que se inscreve na disputa política pelo sentido e função da Justiça Criminal

19/07/2015

Por Geraldo Prado* - 19/07/2015

Introdução

Em texto datado de 10 de maio de 2010 a AJUFE (Associação dos Juízes Federais do Brasil) emitiu a Nota Técnica nº 3, por meio da qual propõe mudanças ao texto do Projeto de Lei do Senado nº 156, que busca instituir um novo Código de Processo Penal.

Também o Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) ofereceu ao Senador Valter Pereira, em 20 de abril de 2010, emendas ao texto do PLS nº 156[1].

Da mesma forma o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por intermédio da Portaria nº 126, de 17 de junho de 2010, constituiu Comissão para emitir nota técnica sobre o referido projeto[2].

Universidades, corporações de profissionais da área jurídica e institutos de pesquisa que atuam no campo da Justiça Criminal têm opinado com o propósito de tentar influir no processo legislativo de edição de um novo Código de Processo Penal no Brasil, na sequência das audiências públicas promovidas pelo relator, Senador Renato Casagrande, a partir do texto base, que hoje está bastante modificado, do anteprojeto elaborado por comissão de juristas composta por Hamilton Carvalhido (coordenador), Eugênio Pacelli de Oliveira (relator), Antonio Correa, Antonio Magalhães Gomes Filho, Fabiano Augusto Martins Silveira, Felix Valois Coelho Junior, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Sandro Torres Avelar e Tito Souza do Amaral.

Em comum entre as iniciativas a certeza de que não há “paz doutrinária”, isto é, não há sequer consenso acerca da concreta necessidade de dotar o Brasil de um Código de Processo Penal que difira na base (estrutura), no modelo e nas práticas do texto que está em vigor desde o Estado Novo (Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941).

Ao estudioso das Ciências Sociais por certo que as distintas visões de mundo, que operam na dinâmica da firme discussão em torno da proposta de uma nova lei processual penal, não causam estranheza. As divergências, que cobrem aspectos centrais do modelo em disputa, refletem diferentes concepções do Estado de Direito, do papel do Direito Penal e do Processo Penal e das funções políticas e propriamente jurídicas que devem ser cometidas ao juiz criminal. São ideologias em rota de colisão, e em uma democracia isso é relativamente comum.

O “mundo do direito”, porém, vive da ilusão do consenso, da suposta “suspensão dos conflitos”, da superação das controvérsias sem que de fato os problemas que estão no cerne das discussões sejam nomeados e enfrentados. Vive-se da crença de que é possível sustentar a permanência das formas de processar e julgar as pessoas acusadas de praticar crimes, sem embargo de, na maioria das vezes, estas formas resultarem da aplicação política de critérios peculiares aos sistemas autoritários.

A discussão pública, especialmente no âmbito das corporações, com frequência confisca do discurso as expressões “ideologia”, “autoritarismo” e até mesmo “inquisitorialismo”, para operar a partir da chave de leitura da “tradição do processo penal brasileiro” tomada como hábito ou rotina instituída, com práticas inscritas no cotidiano do foro e delegacias de polícia a que nos acostumamos e que supostamente devemos seguir reproduzindo.

O campo de disputa de sentidos fica, pois, delimitado e restringido exatamente na razão direta em que tem êxito a ação (política) de subtrair o conteúdo ideológico do debate sobre a reforma do processo penal.

Refletir sobre esta “restrição” corresponde à tentativa de entender como funcionam determinados grupos sociais e como “pessoas de carne e osso” atuam na qualidade de porta-vozes de interesses que são legítimos, mas não são necessariamente consensuais, e que se projetam no campo da “divisão de poder” que, esta sim, varia sensivelmente de território, alargando-se, mas desenhando pontos de interseção entre os intelectuais (e a academia) e os políticos, incluindo os agentes públicos que atuam na esfera do Poder Judiciário.

Uma breve análise, na modalidade de crônica da Reforma do Processo Penal, foi a melhor maneira que encontrei de homenagear um jurista brasileiro que nunca teve medo, como pensador, professor, advogado e cidadão, de lidar com todas as dimensões da questão criminal e nunca se curvou à dogmática reinante, dogmática que até hoje persegue, cada vez mais escancaradamente, o propósito de desencarnar o Direito Penal, para não permitir que se veja e se sinta o sangue que esparrama em nosso solo como resultado concreto de sua cotidiana aplicação. E a Vera Malaguti, socióloga, criminóloga e intelectual cuja contribuição acadêmica fortalece a corrente dos que acreditam que sensibilidade e justiça andam de mãos dadas.

Aos professores Nilo Batista e Vera Malaguti, portanto, não apenas minha admiração, mas também a gratidão!

O Código de Processo Penal como “lugar” de luta política

Em 1989 o jurista italiano Luigi Ferrajoli[3] publicou a obra Direito e Razão: teoria do garantismo penal, posteriormente traduzida e bastante difundida na Espanha e na América Latina.

Entre as teses defendidas em Direito e Razão, e posteriormente reafirmadas em Derechos y Garantías: la ley del más débil[4], está a ideia do direito como sistema artificial de garantias, preordenado constitucionalmente à tutela dos direitos fundamentais[5].

De acordo com o pensador italiano, em ordenamentos de Constituição rígida a “função de garantia do direito resulta atualmente possível pela específica complexidade de sua estrutura formal”, a orientar não somente o “ser” do Direito, porém ainda o “dever ser”, em virtude dos condicionamentos de validade jurídica que decorrem da sintonia fina entre o direito infraconstitucional e o catálogo de direitos fundamentais que são herança de um liberalismo político construído na base do valor “dignidade da pessoa humana”.

No contexto em que o paradigma de validade jurídica está concebido, a aplicação do direito “válido” pelos juízes resulta obrigatória e, consequentemente, também se impõe a “não aplicação” das normas jurídicas inválidas, pois em desarmonia com os direitos fundamentais. Trata-se de premissa para a democracia substancial e os juízes, incluindo por óbvio os criminais, não estão demitidos da tarefa de ajuste e aplicação dos direitos fundamentais em seu cotidiano, ainda que ao custo de “não aplicar” normas em contradição com os citados direitos e assim contrariar a vontade da maioria.

A legitimação no exercício do poder penal decorre da independência judicial instrumentalmente conexa à função de assegurar diariamente a plenitude dos direitos fundamentais nos casos concretos. Trata-se de legitimação jurídica (constitucional) e política!

O desafio aos juízes nas novas democracias constitucionais, sob essa perspectiva, pois, não é pequeno: avaliar os instrumentos que existem há bastante tempo, e que formam “a tradição do sistema de justiça criminal”, para verificar a compatibilidade destes instrumentos legais com os direitos fundamentais que decorrem ora da Constituição da República ora dos tratados de direitos humanos.

Em outras palavras: cuida-se de controlar a atividade parlamentar, uma vez que a existência de uma lei processual penal, por mais antiga que seja não confere a esta lei, automaticamente, o “certificado de executividade”. Aliás, as leis processuais penais editadas durante regimes autoritários ficam sob suspeição por esta mesma razão, algo como uma espécie de questionamento ou “vício” de origem.

Em um ambiente de compreensão do direito dirigido pela teoria do garantismo, a prevalência da Constituição da República, que é típica do regime da supremacia da Constituição a reclamar mecanismos de controle de constitucionalidade, pode levar a casos de atrito entre a atuação dos Congressos (parlamentos) e os juízes.

Uma das críticas mais mordazes ao modelo aponta para alguma espécie de “ditadura dos tribunais”, a amesquinhar a atividade parlamentar ordinária, ao suprimir da legislação ordinária, ou do poder da maioria, determinadas matérias, uma vez que os vínculos constitucionais aos poderes públicos, vínculos substanciais, temperam ou modelam a (inexistente do ponto de vista jurídico) onipotência da maioria.

Por isso verbalizam-se reações ao “ativismo judicial” instrumentalizado pelos mecanismos de fiscalização da constitucionalidade das leis. Sob essa ótica, afinal, onde está (ou para onde é remetido) o espaço do político? A atuação dos parlamentos está esvaziada? A democracia representativa cede em prol de uma “representação direta dos interesses” via Constituição? Em outras palavras – e parafraseando Anna Pintore: serão os direitos fundamentais “um instrumento insaciável, devorador da democracia”?[6]

A tese principal de Anna Pintore, nesta troca de ideias entre ela e Luigi Ferrajoli, expressa a preocupação, injustificável segundo advogo, de que a defesa dos direitos fundamentais possa conduzir ao sacrifício dos traços democráticos dos ordenamentos constitucionais[7].

Claro que há aí uma disputa sobre o conceito e conteúdo da própria democracia. E Ferrajoli irá ressaltar: existe também alguma confusão decorrente da análise conceitual de tipo teórico-jurídico e os discursos axiológicos de pertinência da filosofia política[8].

Valendo-me agora das palavras de Ferrajoli:

“A propósito da relação que estabeleço entre direitos e garantias (Anna Pintore) se pergunta: de que tipo de relação se trata? Já havia abordado amplamente o problema... sustentando em resposta a Riccardo Guastini, que em ordenamentos nomo dinâmicos como aqueles em que vivemos, a relação entre direitos e garantias é uma relação de dever ser, que a teoria enuncia como uma implicação não diferente a que existe entre permitido e não proibido e que, sem embargo, como esta, pode ser desatendida, vale dizer, não atuada ou violada pela legislação vigente.”[9]

No plano, portanto, de uma Constituição rígida o “conteúdo” da norma posta pelo legislador ordinário pode confrontar com as determinações da própria Constituição da República e assim, para que a violação (e também a omissão legislativa) não reflita a não efetividade constitucional o juiz atua corretivamente.

Há, portanto, pontos de contato entre a atividade parlamentar e a judicial. Ambas, todavia, estão inspiradas em um conceito de democracia que supera a tradicional vontade da maioria (que gerou a barbárie nazista) para agregar o caráter plural que assegura as minorias contra a opressão das maiorias, reconhecendo a vitalidade dos direitos fundamentais de todas as pessoas.

De toda maneira, seria muita inocência do analista supor que em uma cultura de positivismo jurídico como a que se vive no Brasil, a difusão de uma teoria jurídica possa, isoladamente, alterar em profundidade práticas de reverência à lei que se cristalizaram e que, em matéria penal e por conta da exploração midiática, conferem ao profissional do direito “a garantia” de sempre poder explicar ao público o próprio comportamento processual por sua “conformidade à lei”. O que é algo que, em certa medida, para este mesmo público, em geral soa mais compreensível do que uma alusão um tanto abstrata a princípios constitucionais.

Não se discute que a opção em aplicar o Código de Processo Penal de 1941, malgrado este Código tenha sido atualizado em 2008 pelas Leis n. 11.689/08, 11.690/08 e 11.719/08, não decorra com exclusividade da aparente “segurança” para os profissionais do direito, especialmente os juízes.

O acompanhamento dos movimentos de reforma do Código de Processo Penal em outros países, nos quais se vivenciou a transição da ditadura para a democracia, revela igualmente a forte resistência ideológica a modelos ou estruturas processuais em que há limitação de poderes em detrimento do reposicionamento do juiz penal, que passa a ser “garante jurídico-constitucional” da presunção de inocência.

Este reposicionamento é fruto da eleição constitucional em favor do sistema acusatório, por força da adoção de um princípio (acusatório) que desloca o juiz das atividades de postulação[10] e de instrução para a posição de assegurador do devido processo legal, garante da presunção de inocência, fiscal da licitude das provas obtidas pelas partes e destinatário destas provas, que haverão de fundamentar a sua decisão. Não é pouco!

A linha demarcatória das novas funções processuais do juiz, reclamadas pela transição do autoritarismo para a democracia, com o abandono de uma das principais ferramentas autoritárias, o processo de natureza inquisitória, é tênue, frágil e passa quase despercebida, cotidianamente, justo porque é traçada por princípios!

Muito embora o atual momento seja da retórica da força normativa da Constituição, entre nós e nas democracias que se submetem a constituições rígidas, ainda assim a arquitetura princípio-lógica do processo penal esbarra nas rotinas da tradição autoritária, ancoradas em Códigos de Processo Penal que têm maior densidade normativa para os profissionais do Direito, pois são às regras do Código que os referidos profissionais recorrem para justificar o seu comportamento[11].

Os Códigos são visíveis! E apagam os princípios constitucionais do processo penal, pois a mera existência das regras codificadas, apesar de inconstitucionais, oculta os princípios e sugere argumento de autoridade que, descontextualizado, parece empurrar contra a parede quem defenda ponto de vista contrário: a legalidade!

Verifica-se aí o divórcio entre os enunciados constitucionais do processo penal e as práticas rotineiras. Ergue-se uma barreira simbólica, porém fortíssima, contra a força normativa da constituição relativamente à presunção de inocência e seus derivados, entre os quais o próprio sistema acusatório.

Não raro os iniciantes na militância do processo penal se deparam com essa situação esdrúxula: em algum momento estes iniciantes foram ensinados que o direito processual penal abebera-se da Constituição da República, mas são surpreendidos por comportamentos concretos que a par de negar a aplicação dos princípios, ao se fazer incidir as regras antagonistas anteriores, resultam de uma consciência difusa, inquisitorial, de que a “natureza do processo penal” é mesmo assim. E como os desvios funcionais são inevitáveis e atingem até a relação entre atos concretos e tipos legais de processo flagrantemente inquisitoriais, os iniciantes e os “iniciados” seguem vivendo um processo penal à parte, diferente de tudo, irreconhecível mesmo pelos manuais.

Como salientado nas linhas anteriores, este fenômeno não é exclusivamente brasileiro.

Ennio Amodio sublinhará a existência, na Itália, de um processo penal invisível, que não se lê em manuais ou nos repertórios jurisprudenciais, mas que se toca com a mão na prática judiciária[12]. Processo cuja transformação em prol da acusatoriedade termina por deparar com obstáculos opostos que exprimem uma “cultura das corporações”, de matriz inquisitorial, que crê para além das mais elementares objeções epistemológicas, em uma magistratura “depositária exclusiva da função de busca da verdade”.[13]

Certo que mesmo o desvio que a prática processual consagra em face do modelo legal inquisitorial pode ser corrigido, nos tribunais, por meio do “apelo” à lei. E a lei é, ao fi m e ao cabo, neste contexto de fragilidade dos princípios constitucionais, o Código de Processo Penal.

O Código de Processo Penal passa, pois, a ser o “objeto do desejo” das forças que disputam a representação (idealização) do direito processual penal e se transforma em campo de luta, mesmo quando proliferam leis processuais especiais cuja edição, por sua vez, exprime as mesmas contradições e enfrentamentos mencionados.

Os diferentes estágios dessa luta permitem compreender as pressões sobre os parlamentos e as oscilações legais, entre fórmulas compatíveis com a Constituição e recaídas autoritárias, de índole inquisitorial[14].

Do ponto de vista psicológico, entendem-se assim o comportamento e até determinada jurisprudência, que estão pautados pelo objetivo de preservar a validade de processos penais que sem dúvida alguma são nulos. Compreende-se, porém não se justifica.

Na prática, a atuação de cada juiz em seu órgão está condicionada pela autoridade conferida ao Código de Processo Penal, porta-voz da legalidade processual penal para além da própria Constituição da República, em uma inversão de valores que em aparência conta com o apoio da opinião pública.[15]

Como pode um juiz julgar com imparcialidade, quando se vê solitário, na sala de audiências, em um processo criminal, a ter de ser acusador, defensor e juiz ao mesmo tempo?

Em busca do seu “Código de Processo Penal”

Há muitas formas de se investigar a delimitação do campo de produção do saber jurídico penal no Brasil em sua correspondência com o campo político.

Lilia Schwarcz irá acentuar o perfil institucional, no exame do período entre a constituição das primeiras Faculdades de Direito no Brasil, em 11 de agosto de 1827, e a lógica que oporá a Faculdade de Direito do Recife à Faculdade de Direito de São Paulo, em uma disputa pela definição das premissas do jurídico e seu papel na conformação de uma nova sociedade no jovem Brasil independente[16].

Gizlene Neder, por sua vez, destacará os vínculos entre o discurso autoritário e a ordem burguesa no Brasil, em obra que leva este título, e investigará o papel dos juristas e bacharéis no país que então nascia[17].

Caberá, todavia, a Angela Alonso deslocar o olhar das instituições, em regra percebidas como entidades coesas, cimentadas por interesses comuns de seus membros, para as pessoas da chamada “geração de 1870”, em tese responsável pela difusão inicial de uma “modernidade” intelectual em nosso país[18].

Trabalhando com a categoria do “repertório”, no âmbito da história das ideias, que está definido como “conjunto de recursos intelectuais disponível numa sociedade em dado tempo”, verdadeira “caixa de ferramentas às quais os agentes recorrem seletivamente, conforme suas necessidades de compreender certas situações e definir linhas de ação” (grifo da autora)[19], a autora buscará entender o movimento de 1870 a partir da combinação das chaves de leitura das categorias cognitivas (formas de pensar conformadoras de sistemas racionais) e esquemas de orientação prática.

Dito de outra maneira: a percepção da relação entre experiência e cultura, em dado momento, a partir da manifestação de agentes em uma situação de crise e, portanto, prévia à transformação, não deve menosprezar o movimento intelectual em prol do político e vice-versa, tampouco supor uma autonomia entre ambas as instâncias, até porque a pesquisa termina por revelar a inexistência desta situação autônoma[20]!

Daí sua proposta de abordagem política do movimento intelectual, sustentada na tese de que “formas de pensar estão imersas em redes sociais[21].

Com efeito, não se deve deixar de considerar, como importante elemento conformador da realidade, a articulação entre o pensamento (sobre o Brasil, sobre o Direito etc.) e a ação política, como se não houvesse uma dimensão de ação coletiva nas práticas de pessoas e grupos reunidos por afinidades variadas. E, principalmente, como se a disputa pelo poder não estivesse em jogo.

Angela Alonso irá chamar atenção para o fato de que “movimentos intelectuais são uma modalidade de movimento social”.

Sem dúvida que neste contexto as oportunidades políticas jogam um papel decisivo, e não há privilégios de posição (casta intelectual). A análise empírica será decisiva para ditar que pensamentos, sofisticados ou pobres, segundo certos critérios, foram (e são decisivos) para a determinação das formas de pensar (jurídico) dominantes, em um campo (político) em que a adoção de uma posição específica (escolha) implica, necessariamente, a exclusão de outras possibilidades de ação, em detrimento de grupos sociais precisos.

Excluir de plano a importância de ideias sustentadas sem base teórica sólida conforme a doutrina dominante configura grave erro metodológico, cujas consequências são significativas.

Não há “espaço vazio” também nesta articulação entre “movimento intelectual” e “ação política”!

De nada adianta, por exemplo, ignorar que inúmeros porta-vozes autorizados do direito seguem se valendo da retórica da “busca da verdade real”, contra todas as fortes e consistentes posições teóricas que reduziram a pó semelhante categoria, como categoria válida do pensamento jurídico e filosófico[22], se estes agentes penetram com suas ideias nas Faculdades de Direitos e nas corporações, “simplificando” a tarefa de pensar e gerando os “fundamentos” para a manutenção de determinado status quo!

Principalmente, e aí trasladando para os dias atuais e para a questão do Código de Processo Penal a reflexão de Angela Alonso, será inútil construir alguma estratégia de ação política voltada à consolidação do estado de direito, mediante contenção do poder punitivo e proteção dos direitos fundamentais, ignorando as redes sociais mobilizadas em torno da manutenção do poder.

Porque é de manutenção do poder que se fala quando corporações judiciais tentam preservar a iniciativa probatória em suas mãos e recusam a fórmula do juiz das garantias, proposta no PLS 156/09.

E no “repertório” de que dispõem estas corporações e os grupos sociais interessados em preservar uma função de mais intenso controle social, via sistema penal, os agentes recorrem seletivamente às ferramentas mais adequadas a seus propósitos, em uma disputa em que para a ocupação de posições (vagas nos tribunais superiores, direção de escolas de magistratura, integração em comissões legislativas ou de emissão de “notas técnicas”) tolera-se muita coisa, mesmo que ao sacrifício da coerência e da reafirmação de determinados consensos que extrapolam as fronteiras brasileiras e consolidam, em parte, a cultura democrática de tutela dos direitos humanos.

É preciso ter isso em conta. Como também é necessário compreender o contexto mais amplo em que a disputa pelo poder está inserida.

O pensamento criminológico crítico não está desavisado das consequências das novas conformações econômicas (globalização) e de sua influência na administração da miséria pelo sistema penal[23].

Não faltam pesquisas, algumas relevantes de institutos oficiais dos governos, para demonstrar como paralelamente à nova conformação gerada pela globalização, o número de encarcerados multiplicou-se[24].

O sistema criminal pensado a partir da eficiência punitiva tem sido a proposta chave a orientar a maioria das ações parlamentares.

O interesse, portanto, em manter as posições capazes de influenciar na definição de um Código de Processo Penal com o propósito de manter tudo como está, associa-se à política da globalização de mercados mediante gestão penal dos “efeitos colaterais”.

Talvez não seja completamente eficiente propor uma participação ativa dos juristas no próprio processo legislativo, mas não se pode desprezar esse caminho sem arcar com as consequências.

Fabiano Martins adverte para a necessidade de comunicação entre a doutrina e a esfera política, ainda durante o processo legislativo, por meio do emprego de técnicas que favoreçam esse diálogo[25], de sorte a imprimir racionalidade ao “produto final” em uma espécie de acertamento entre a lei e a Constituição da República pelo ângulo da harmonia com os direitos fundamentais.

E uma das “ferramentas” deste repertório, girando a seta dos argumentos típicos da doutrina jurídica (“mudança no estilo argumentativo”), consiste em produção de um saber “orientado às consequências”[26].

Em artigo a ser publicado no Boletim do IBCCRIM, sob o título “Embargos infringentes no PLS 156”, levei em conta pesquisa de campo, a cargo do professor Antonio Pedro Melchior, para demonstrar que a manutenção do sistema proposto no PLS 156, com vedação aos embargos na hipótese de condenação original, em primeiro grau, pode levar a injustiças. São significativos os números de reforma em embargos, na mencionada hipótese, para absolver definitivamente os acusados.

Argumentos do gênero pesam nas decisões políticas. Mas não são os únicos e tampouco livram do risco do emprego em sentido oposto, para fazer valer soluções não admitidas pela Constituição da República.

O que se quer acentuar é que não há um único caminho na luta pela definição de uma nova lei processual. E que a consciência de que esta definição está no centro de uma disputa de sentidos, em que o desprezo pela fragilidade teórica de argumentos adversos parece fundar-se em um otimismo acerca da futura atuação do Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade, desafia a própria história da constituição de um modelo de processo penal no Brasil marcadamente autoritário, inquisitório.

Enquanto a dogmática supõe, às vezes de maneira arrogante, que está “emparedando” as leituras paleopositivistas das ciências jurídico-penais, a realidade demonstra que é o contrário o que acontece.

É a própria dogmática que se marginaliza, descentrando-se e perdendo espaço na referida disputa.

Considerações finais

As palavras finais são de convite à luta.

À luta, como na proposta de Perfecto Ibañez, destituído o vocábulo de qualquer conotação agressiva, mas como “hiper-esforço construtivo e reconstrutivo, tensão ideal, compromisso com os valores elevados do ordenamento”[27].

A tradição que se pretende perpetuar, no processo penal brasileiro, é autoritária. E isso precisa ficar claro.

As mudanças passam por concessões no exercício do poder que, em verdade, dizem com princípios republicanos elementares.

A busca por posições destacadas, malgrado faça parte do movimento intelectual, é indissociável das articulações políticas que jogam num e noutro sentido, daí porque estas articulações e suas consequências devem ser previstas e não podem ser desprezadas.

O PLS 156 busca instituir uma nova racionalidade no campo do processo penal brasileiro. Certamente encontrará resistências. Já as encontra.

Cabe, pois, refinar e fazer atuar o repertório que existe em prol do Estado de Direito. Esta é a tarefa dos juristas em uma democracia, mas é, principalmente, uma tarefa da cidadania.

E terminar falando em cidadania ampla e democracia é falar em Nilo Batista e Vera Malaguti, casal a quem dedico o artigo.


* Este artigo foi redigido em homenagem aos professores Nilo Batista e Vera Malaguti. Versão do trabalho foi apresentada em Curitiba, em 16 de agosto de 2010, durante as Jornadas comemorativas da fundação do Núcleo de Pesquisa de Direito Processual Penal do Penal do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. Extraído do livro Em torno da Jurisdição, de Geraldo Prado. A obra em questão é uma coletânea de textos, votos e artigos produzidos pelo autor entre 1995 e 2010.

PRADO, Geraldo. Em torno da Jurisdição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 109-121


Notas e Referências:

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[1] http://novo.direitoprocessual.org.br/content/blocos/96/1, consultado em 22 de agosto de 2010.

[2] http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&task=view&id=11428&Itemid=511, consultado em 22 de agosto de 2010.

[3] Luigi Ferrajoli exerceu as funções de magistrado entre os anos de 1967 e 1975, na Itália. Desde 1970 é professor de Filosofi a do Direito e Teoria Geral do Direito na Universidade de Camerino e, desde 2003, na Universidade de Roma III.

[4] 5ª edição, 2006, Trotta, Madrid.

[5] Derechos y garantías, op. cit., p. 19.

[6] Derechos insaciables, in Los fundamentos de los derechos fundamentales, coordenado por Antonio de Cabo e Gerardo Pisarello, Trotta, Madrid, 2001, p. 243-265.

[7] Op. cit., p. 243.

[8] Los fundamentos de los derechos fundamentales, in Los fundamentos de los derechos fundamentales, coordenado por Antonio de Cabo e Gerardo Pisarello, Trotta, Madrid, 2001, p.288 e 323 a 328.

[9] Idem, p. 327.

[10] Como na primitiva redação do artigo 531 do Código de Processo Penal, que autorizava o juiz criminal a iniciar o processo por meio de portaria ou auto de prisão em flagrante, acusando as pessoas da prática das contravenções penais e dos crimes culposos (Lei nº 4.611/65).

[11] Vale a leitura da obra seminal, no Brasil, sobre o tema: Interpretação retrospectiva: sociedade brasileira e processo penal, publicada na Coleção Pensamento Crítico, de autoria de Rubens Casara, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2004.

[12] La procedura penale dal rito inquisitório al giusto processo, in: http://www.associazionedeicos tituzionalisti.it/materiali/convegni/roma20021114/amodio.html, consultado em 22 de agosto de 2010.

[13] Idem, p. 2 e 11.

[14] Neste sentido revela-se elucidativo o testemunho de Giuliano Vassalli. La testimonianza di un protagonista: Giuliano Vassalli, in: L‘inconscio inquisitório: l‘eredità del Codice Rocco nella cultura processual-penalistica italiana, coordenado por Loredana Garlati, Giuff rè, Milano, 2010.

[15] Das inúmeras e variadas manifestações públicas disso o exemplo mais recente e comentado é o da Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135, de 04 de junho de 2010), que vulnera a presunção de inocência, limitando o princípio insculpido no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República.

[16] O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questões raciais no Brasil. Companhia das Letras, Rio de Janeiro, 1993, p. 141-188.

[17] Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1995, p. 99-130.

[18] Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império, Paz e Terra, São Paulo, 2002.

[19] Op. cit., p. 39-40.

[20] Idem, p. 35-38.

[21] Ib idem, p. 38.

[22] Remeto à leitura da obra Teorias de la verdad em el siglo XX, organizada por Juan Antonio Nicolás e María José Frápolli, Tecnos, Madrid, 1997.

[23] Entre outras leituras sugere-se, de Löic Wacquant, As duas faces do gueto, São Paulo, Boitempo, 2008.

[24] Ver pesquisa que divulguei no blog: www.geraldoprado.blogspot.com, marcador Um novo Código de Processo Penal.

[25] O diálogo entre ciência e política no processo de formação das leis penais, in: Revista de Informação Legislativa, ano 47, nº 186, abril-junho de 2010, publicação do Senado Federal, p. 9.

[26] Op. cit., p. 21-26.

[27] Andrés Ibañez, Perfecto. Garantia Judicial dos Direitos Humanos, Separata nº 78 da Revista do Ministério Público, Lisboa, 1999, p. 29.


Sem título-1 , Geraldo Prado é Professor da UFRJ e Consultor Jurídico.    


Imagem Ilustrativa do Post: Two elephants doing a mock battle as Egyptian geese fly overhead // Foto de: Diana Robinson // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/dianasch/16409327635/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode 


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