Crítica a Clarice

13/12/2015

 Por Marta de Oliveira Torres - 13/12/2015

Conheci Clarice Lispector tardiamente, em um livro com coletânea de contos dado por uma colega de trabalho também de Maceió, também branca, também filha de pais trabalhadores que proporcionaram alguma condição de vida suficiente pra ter uma infância em uma casa tranquila e estudar no mesmo colégio que outras pessoas cujos pais já nasceram ricos e não precisavam se esforçar tanto pra pagar a mensalidade. Ela a apresentou como sendo uma escritora fabulosa, incrível, maravilhosa, encantadora, como o título falava, “de cabeceira”. De fato, ao ler alguns de seus contos, impressionou-me a forma como descrevia os sentimentos e sensações e fazia uma autópsia da alma humana. Identifiquei-me em várias passagens, numa que falava sobre um homem a enterrar um cão achado na rua pra espiar a culpa pelo abandono de seu antigo cão amado, ou outro conto em que refletia sobre um relógio, o tempo, Sveglia. Uma barata ou um cego vistos por uma dona de casa virariam páginas de profunda reflexão sobre a vida e existência daquelas personagens criadas por Clarice. Não imaginava, naquele momento, que eu poderia sentir alguma antipatia por essa escritora que também passou sua infância em Maceió. Até escrevi um conto inspirada em sua personagem Aurélia Nascimento, que nascera ao se despir das maquiagens sobrepostas à sua natureza. “Clarice Nascimento”, assim a homenagiei. Naquela época, eu descobria e amava Clarice Lispector.

No entanto, quando li uma seleção de crônicas de Clarice, surpreendi-me com uma incontrolável aversão a tudo o que via. Talvez seja justamente meu histórico de vida semelhante ao de Clarice que me causava tamanha agonia face a sua percepção da realidade: em uma maestral combinação de palavras, Clarice Lispector traçava o retrato de uma “classe média” mundial entretida em seus relacionamentos, universidades, necessidades mesquinhas, pra quem as empregadas despertam desconforto, os pedintes despertam no máximo caridade, a mulher casada-mãe se revela como uma obrigação tão natural que faz da escritora uma leitura obrigatória na literatura brasileira de destaque universal. Tudo isso, que cresci vivendo e achando único modo de ver o mundo, passaria como louvável não fosse pelo meu trabalho na Defensoria Pública. Não que na Defensoria Pública seja diferente: os selecionados por um concurso público são praticamente todos advindos de criações semelhantes a minha. Mas as histórias que escuto diariamente me fizeram enxergar um mundo além de Clarice, criada em Maceió, formada em Direito, frequentadora de casas com esculturas como as de Bruno Giorgi, com várias empregadas domésticas a servir, andando conduzida por choferes pelos bairros nobres das principais cidades do mundo.

Seria grande hipocrisia minha dizer que não sou constituída de Clarice. Apertou-me a garganta ao ler “As três experiências”, em que ela narra suas três razões de viver: amar os outros, escrever, criar seus filhos. Também sinto um profundo amor à vida, à escrita, e aos filhos do mundo e aos que nem ainda tenho. Não foi só o fato de ter crescido com o cheiro do mar verde de Maceió, uma discreta semelhança na aparência, e agora o vício do cigarro (orgânico) o que me liga à escritora naturalizada brasileira: a escrita como modo de expressar a ânsia de viver e a angústia do vivido também me acompanha desde tenra idade. No entanto, tenho várias ressalvas quanto aos relatos de Clarice, a ponto de ter terminado de ler suas crônicas não mais de forma prazerosa, mas quase que discutindo com a eterna escritora.

A começar por “Por detrás da devoção”, crônica louvada por Diogo Mainardi, ex-correspondente de uma revista tendenciosa que sustenta a filosofia de Leviatã como caminho pra a felicidade. Impressiona-me a maneira discriminatória com que a festejada escritora trata a empregada doméstica Aninha, descrita como incapaz de entender um livro seu, e a irônica surpresa porque teria a “renitente” utilizado a palavra “pueril”. Pior que o asco que me despertou ao ler a crônica, foi quando vi o comentário daquele escritor da Veja ao se referir à miséria dos nordestinos: “Trinta e três anos atrás, quando A hora da estrela foi escrito, ainda vivíamos num apartheid relativamente eficiente. Os miseráveis ficavam longe de nós, atormentando-nos apenas com o seu desamparo. De lá pra cá, eles se tornaram bem mais visíveis. Quebram os vidros dos nossos carros e roubam nossos rádios. E minha sobrinha ouvem a música que eles ouvem”.

Depois vem a absurda “Das vantagens de ser bobo”. E digo absurda porque só quem cresceu em um ambiente cristão como Clarice (e eu!) pode querer extrair alguma vantagem de ser passado pra trás. “Excesso de amor”, insiste a escritora. Perdoe-me, Clarice, mas essa de “perdoar setenta vezes sete” é história da carochinha pra manter os escravos sendo escravos, perdoando seus patrões de todas as humilhações enquanto espera morrer pra ir ao reino dos céus. Até porque a escritora “boba” não se revela nada “boba” quando uma senhora entra num táxi e pede pra que ela ceda a vez e deixe a idosa primeiro em sua casa porque tem um compromisso, episódio descrito em “Mal-estar de um anjo”. Vitoriosamente, Clarice nega a “bondade” exigida ao “anjo” e se despe de suas asas, afirmando que quer ser deixada primeiro e ponto final. A narrativa de Clarice revela, como o comentarista Joaquim Ferreira dos Santos adjetiva, duas “dondocas” que se encontram no banco de trás do carro em Copacabana, disputando o trajeto de um chofer em um dia de chuva. Ser bobo nem é tão bom assim, né, Clarice? Como diz meu professor Harildo Déda, “gentileza gera gente lesa”.

“O caso da caneta de ouro” e a valorização de uma caneta porque é feita desse metal (típica conduta de uma sociedade desprovida de consciência humana e que acumula riquezas fúteis e desnecessárias), combinada ao “As caridades odiosas” revelam o tacanho pensamento da classe média: a caneta deve ser objeto de desejo dos dois filhos (como um dos filhos não quis, despertou o estranhamento da autora e daí sua crônica), enquanto é incomodo que o “menino a que a sujeira e o sangue interno davam um tom quente de pele”, humildemente, “poupe a bondade” de Clarice ao se contentar com só um doce dado de esmola.

Se Clarice não fosse branca e rica, escrever “Cem anos de perdão” seria uma apologia ao crime, pois não via problema algum entrar em casas alheias pra retirar uma simples rosa. Se ela fosse negra e estivesse com fome e entrasse pra pegar um resto de leite em uma lata jogada no lixo da casa de um dos palacetes que Clarice entrava com o coração palpitando, com certeza seria presa. E se não tivesse um Defensor Público, ficaria (fica) uns seis meses com o “coração palpitando” dentro de uma cela, um coração feito do mesmo sangue vermelho da escritora que alegremente conta sua experiência como algo que “foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas”. No Brasil, Clarice, se você fosse negra e pobre entrando em um palacete pra roubar rosas, não teria nem um único dia de perdão. E agora, nem se fosse uma jovem adolescente de 16 anos apaixonada por rosas. Esta seria esmagada como as pitangas que escorriam de suas mãos quando as apertava no afobamento de roubá-las do pomar da igreja.

Não vou nem me delongar na agonia que senti quando vi a crônica “Armando Nogueira, futebol e eu, a coitada”: coitada por que, Clarice? Porque é mulher e não entende de futebol? Coitado é de Armando que passa o tempo escrevendo sobre o entretenimento-de-massas-chamado-futebol e não consegue refletir sobre coisas tão naturais como o sentimento humano! Coitados de nós, homens e mulheres, que vivemos nessa dicotomia de “coisa de homem” x “coisa de mulher”. Coitada de você, Clarice, que como milhares de mulheres de sua geração tinha que tomar calmante pra conter a natureza humana, e precisa que seu filho diferencie “emoção” de “nervosismo”, como informa na crônica “Lição de filho”, de modo a poupar o medicamento quase que obrigatório pra as reprimidas mulheres pseudo-burguesas. Coitada da nossa sociedade que ao invés de refletir sobre as causas dos problemas sociais fica divagando sobre tantas futilidades.

Perdoe-me, Clarice, mas não a lerei mais. A não ser pra aprender a escrever, coisa que espero conseguir um dia. Por enquanto, não sou ninguém pra te criticar. Aliás, justamente pela minha insignificância, você não terá nem que me perdoar. Afinal, morta, já se tornou eterna, e quem sou eu pra diminuir o brilho de uma porta-voz desses valores tão comuns. Eu não sou ninguém. Eu ainda nem nasci.


Comentários aos livros Clarice Lispector – Clarice na cabeceira – crônicas e contos, da editora Rocco.


Marta de Oliveira Torres

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Marta de Oliveira Torres, Defensora Pública do Estado da Bahia, mestra em Relações Sociais e Novos Direitos pela UFBA, graduada em Direito pela UFAL.

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Imagem Ilustrativa do Post: Marta Torres Fotografia


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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