Corte Europeia decide que pai com deficiência auditiva têm direito a visita e contato com o filho em regime diferenciado

16/01/2017

Por Fernando César Costa Xavier - 16/01/2017

Em fins de novembro de 2016, o Superior Tribunal de Justiça e a Corte Europeia de Direitos Humanos, em decorrência de crescente diálogo entre as duas instituições, celebraram acordo de cooperação que prevê, entre outros, trocas “de modo sistemático, [de] informações e documentos sobre as suas respectivas jurisprudências”[1]. Bem por isso, considera-se importante registrar as linhas gerais da recente decisão da Corte Europeia, divulgada em 10 de janeiro de 2017, no caso Kacper Nowakowski v. Polônia[2], que pode iluminar futuros julgamentos que o STJ venha a enfrentar.

São resumidos a seguir os fatos relativos ao caso. Em maio de 2013, o cidadão polonês Kacper Nowakowski encaminhou petição à Corte Europeia de Direitos Humanos alegando que decisões do Poder Judiciário da Polônia que restringiram o contato dele com o seu filho menor constituiriam violações ao direito ao respeito pela vida familiar e à proibição da discriminação (previstos nos arts. 8° e 14 da Convenção Europeia de Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais). Nowakowski é surdo e mudo e se casou em 2005 com uma mulher com deficiência auditiva, identificada na Sentença pelas iniciais como A.N. Em dezembro de 2006, nasceu o filho do casal, identificado pelas iniciais S.N, que também sofre de deficiência auditiva. Ainda em fevereiro de 2007, o casal se separou, e em junho de 2007 A.N. formalizou o pedido de divórcio.

A partir de então, durante o trâmite do divórcio, o Tribunal Regional de Białystok decidiu provisoriamente sobre as possibilidades de visita de Nowakowski ao filho, que então se encontrava na guarda de A.N., nos seguintes termos: o pai poderia visitar a criança todas as terças e quintas-feiras entre 16h e 18h, e nos sábados, entre 14h e 17h, no local onde estava morando a criança (casa da mãe) e sem a presença de terceiros. Em seguida, o Tribunal designou peritos do Centro de Consulta Familiar de Białystok (Rodzinny Ośrodek Diagnostyczno-Konsultacyjny – RODK) para que elaborassem um parecer sobre a forma e a frequência do contato de Nowakowski com o seu filho. Embora o pai houvesse sido entrevistado pelos peritos (por intermédio da linguagem de sinais), o parecer por eles feito não lhe foi favorável: relataram que ele não visitou o seu filho com a frequência com que lhe foi permitida pela decisão provisória, deixando de visitá-lo a partir de agosto de 2007, e então concluíram que os laços afetivos entre o pai e a criança eram fracos e superficiais. Na opinião dos peritos, deveriam ser privilegiados os laços afetivos do pequeno S.N. com sua mãe, os quais eram fortes e naturais, de forma que as visitas do pai deveriam ser reduzidas a apenas quatro vezes por mês, devendo durar duas horas cada encontro.

Em novembro de 2007, o Tribunal Regional de Białystok homologou o divórcio do casal e decidiu em definitivo sobre a situação da criança. O poder familiar seria exercido por ambos os pais, mas a guarda da criança ficaria com a mãe, restando ao pai o direito de visitá-la nas três primeiras sextas-feiras de cada mês, das 16h às 18h, e todos os quatro domingos de cada mês, das 11h às 13h. O contato entre pai e filho deveria acontecer na casa da mãe, na discreta presença dela, mas sem a presença de qualquer outra pessoa. E o pai teria que pagar pensão alimentícia. Não houve recurso de nenhuma das partes em relação a essa decisão.

Passados alguns anos, em agosto de 2011, Nowakowski requereu ao Tribunal Distrital de Białystok uma alteração nos termos do acordo sobre o seu direito de visitação. Queria ter permissão para ver o filho no segundo e quarto fins de semana de cada mês, das 15h da sexta-feira até 18h no domingo, longe da casa da mãe. Pediu também para ser autorizado a ver a criança por algum tempo durante os períodos de Natal e Páscoa, e passar com ela metade das férias de inverno e metade das férias escolares de verão. A alegação do pai era de que a criança já estava com cinco anos de idade e precisava de um maior contato com ele, servindo essa oportunidade para o reforço dos laços afetivos.

Na ocasião, Nowakowski admitiu que durante o divórcio não exerceu o seu direito de visita como lhe fora permitido provisoriamente, mas justificou dizendo que à época havia sofrido problemas de saúde (incluindo depressão) que o deixaram impossibilitado. Declarou, contudo, que agora poderia prestar todos os cuidados adequados ao seu filho, acreditando que a criança ficava feliz em vê-lo e em brincar com ele. E não poupou críticas à ex-esposa A.N., afirmando que ela por vezes obstruiu o seu contato com a criança e criou uma atmosfera hostil, recusando-se a transmitir mensagens do filho ao pai e não o informando sobre decisões importantes relativas à criança.

Com base nesse pedido e em outro específico que o pai formulou para uma visita que pretendia durante a Páscoa de 2012, o Tribunal Distrital designou uma perícia ao Centro de Consulta Familiar de Białystok. Um psicólogo, um pedagogo e um psiquiatra, assistidos por intérpretes de sinais, entrevistaram os pais e a criança, e então concluíram em seu parecer que (conforme relatado pela Corte Europeia) “A criança reconhecia o peticionário como seu pai, mas não o considerava uma parte de sua família. Os laços do pai com a criança eram positivos, mas baseados em experiências limitadas e altas expectativas [...] Os peritos notaram ainda que o conflito entre os pais impediu a uma cooperação em relação à criança” (par. 19 da sentença). Ao final, o parecer dos peritos, levando em conta o melhor interesse da criança, foi que um maior tempo de visitas, como requerido pelo pai, era algo desaconselhável.

Nowakowski então contestou as conclusões dos peritos, e aduziu que o parecer deveria ter sido preparado com a ajuda de um especialista em educação de surdos e de um psicólogo especializado nas necessidades dos surdos. Sustentou ainda que a conclusão de que os encontros entre pai e filho não podiam ocorrer sem a presença da mãe devido à alegada incapacidade do pai de se comunicar efetivamente com a criança (devendo a mãe atuar como interlocutora) constituía tratamento discriminatório.

Rejeitando o pedido de um novo parecer, o Tribunal Distrital considerou que a alteração do regime de visitação do pai não seria do interesse superior da criança, a qual, embora não fosse mais bebê, ainda guardava grande dependência em relação à mãe por conta de sua deficiência auditiva. Assim como sua mãe, o menor S.N. era capaz de se comunicar oralmente, de forma limitada, com ajuda de um aparelho auditivo. As dificuldades de comunicação entre Nowakowski e a criança foram assim descritas: “O tribunal considerou também que não podia ignorar os problemas de comunicação entre o peticionário e o seu filho [...] O peticionário, independentemente da incapacidade do seu filho e da sua própria, tinha o direito incontestável ao contato com o seu filho. No entanto, o problema de comunicação devia ser levado em conta na regulação das disposições de contato para que este seguisse sendo o mais favorável possível para a criança. O tribunal observou que o peticionário usava principalmente a linguagem de sinais [...] enquanto a criança se comunicava apenas por via oral, de modo que as dificuldades de comunicação surgiam naturalmente. Por essa razão, ainda era justificável que a mãe, capaz de usar linguagem gestual e de se comunicar verbalmente, devesse estar presente durante as visitas do peticionário” (par. 29).

Assim, ponderando que o contato do pai com o seu filho deveria antes de qualquer coisa garantir a segurança e a estabilidade emocional da criança, o tribunal negou o pedido de alteração do regime de visitas. Nowakowski ainda recorreu da decisão da corte distrital ao Tribunal Regional de Białystok, todavia, em novembro de 2012, essa segunda instância negou provimento ao recurso, concordando que, naquele momento, não era recomendável qualquer alteração no acordo de visitação. E após conflitos entre os pais sobre a educação da criança, ao longo de 2011, oportunidade em que a perícia afirmou que o exercício em conjunto da autoridade parental era praticamente impossível, o tribunal também decidiu restringir a autoridade parental do pai sobre di filho, deixando a cargo da mãe a tomada independente de decisões importantes e urgentes relativas ao bem-estar da criança.

No ano seguinte, em 2013, o caso foi encaminhado ao sistema europeu de direitos humanos. Após exaustiva análise das circunstâncias do caso, a Quarta Seção da CorteEDH considerou que “não obstante a margem de apreciação do Estado, as autoridades [judiciais poloneses] não garantiram adequadamente o direito do peticionário ao respeito da sua vida familiar no que se refere ao seu direito a um contacto efetivo com o seu filho”, não tendo sido tomadas “todas as medidas adequadas que possam ser razoavelmente exigidas para facilitar o contato do peticionário com o seu filho” (pars. 96-97). Consequentemente, havia ocorrido violação à Convenção Europeia dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais. A violação era especificamente no que tange ao art. 8° da Convenção (“Direito ao respeito pela vida privada e familiar”). Não foi aceita pela Corte Europeia a tese de que a proibição de encontros mais regulares entre pai e filho pudesse constituir um tratamento discriminatório (vedado pelo art. 14 da Convenção), uma vez que não era a condição de deficiente auditivo, em si, que motivava as decisões judiciais polonesas desfavoráveis ao pai.

Citando precedentes seus (Elsholz v. Alemanha e GB v. Lituânia), a Corte Europeia afirmou que o proveito mútuo da relação entre pais e filhos constituiria elemento fundamental da vida familiar (conforme o art. 8ª da Convenção), e que deveria ser mantida mesmo que a relação conjugal entre os pais fosse desfeita. As obrigações derivadas do art. 8º e impostas às autoridades estatais exigiriam que se levasse em conta a situação de todos os membros da família igualmente.

A Corte Europeia reconheceu que, embora Nowakowski não tenha usufruído plenamente dos seus direitos de visita nos primeiros meses de vida da criança, em razão de problemas de saúde, demonstrou posteriormente o desejo de desenvolver uma relação mais estreita com o seu filho. Isso somente não teria sido possível porque a criança já havia se tornado muito dependente da mãe, e esta não colaborava para que o pai acompanhasse mais ativamente o desenvolvimento do filho. Ressaltou a Corte na sentença: “Ademais, os tribunais nacionais deviam ter em conta os problemas de comunicação entre o peticionário e o seu filho, uma vez que o aquele utilizava exclusivamente a língua gestual enquanto o seu filho só comunicava verbalmente” (par. 79).

A questão decisiva no presente processo, como restou claro, residia em saber se as autoridades nacionais poloneses haviam tomado todas as medidas adequadas e razoáveis para facilitar o contato entre pai e filho, sendo certo que o direito daquele de visitar a criança nunca foi contestado pelos órgãos jurisdicionais e todos concordaram que ele devia poder se beneficiar desse direito.

A despeito disso, dois aspectos específicos do presente processo teriam sido negligenciados em desfavor de Nowakowski, a saber: i) o grave conflito entre os pais e ii) a deficiência auditiva do pai e do seu filho como barreira na comunicação entre ambos.

É certo que a tarefa dos tribunais internos foi dificultada pela relação tensa entre os pais, porém, isso não os isentaria da obrigação de tomar medidas capazes de conciliar os interesses conflitantes das partes, com vistas aos interesses supremos da criança em uma relação familiar plena.

E a postulação de Nowakowski de que uma perícia sobre os laços entre pai e filho deveria ser feita por especialistas familiarizados com os problemas enfrentados por pessoas com deficiência auditiva, tanto mais que os próprios peritos que atuaram no caso admitiram sua competência limitada. Daí que o relatório em que se embasaram os juízes poloneses não abordava possíveis meios de ultrapassar os obstáculos resultantes da deficiência das partes. “Os especialistas concentraram-se na existência de barreiras em vez de refletir sobre os possíveis meios de superá-las”, destacou a Corte Europeia, ao tempo em que disse constituir dever dos tribunais nacionais “saber que medidas podem ser tomadas para eliminar os obstáculos existentes e facilitar o contato entre a criança e o pai que não tem a custódia” (pars. 94-95), o que não teria sido feito.

Após considerar violado o direito humano ao respeito pela vida familiar de Kacper Nowakowski, os Juízes da Quarta Seção da Corte condenaram o Estado polonês ao pagamento, em favor do peticionário, de € 16.250,00 (dezesseis mil, duzentos e cinquenta euros) a título de danos morais, e mais € 698 (seiscentos e noventa e oito euros) para compensação de custas e despesas, devidamente corrigidos.

Embora o acórdão da Corte Europeia tenha sido unânime, os Juízes András Sajó (Hungria) e Iulia Antoanella Motoc (Romênia) juntaram votos em separado. O Juiz Sajó apenas registrou que lamentava que a Corte tivesse considerado desnecessário examinar a acusação de tratamento discriminatório (proibido pelo art. 14), de vez que o pai é pessoa com deficiência e a deficiência era crucial no caso, pois as autoridades nacionais teriam tratado uma pessoa com deficiência do mesmo modo que pessoas sem deficiência. E os direitos das pessoas com deficiência não poderiam ser efetivamente protegidos sem o reconhecimento da obrigação positiva do Estado em prover um tratamento diferenciado.

Em seu voto concorrente, a Juíza Motoc, concordando com o colega húngaro, também lamentou que a Corte não houvesse tomado em conta discriminação contra o peticionário, baseada na sua deficiência: “Em minha opinião, a barreira da comunicação era um aspecto fundamental que poderia ter conduzido a uma constatação de discriminação se tivesse sido devidamente tratada pelas autoridades nacionais e pela nossa Corte” (par. 11 do voto concorrente), além de não ter sido dada a devida aplicação à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU.

Esse julgamento no sistema europeu é importante por realçar que deve ser ofertado aos pais e/ou filhos que estejam vivendo separadamente e que possuam deficiência auditiva ou de outro tipo, um regime diferenciado, sensível às suas limitações comunicativas, pois que, para eles, um regime padrão de visitação, do tipo oferecido a pessoas sem deficiência, seria insatisfatório e não possibilitaria o desejável desenvolvimento de laços afetivos.

Mas também, de outra parte, o caso permite que se conclua que alegações de que eventual omissão ou desleixo no exercício do direito de visitação pelo progenitor que não está com a guarda da criança, se devidamente justificável, não pode servir como argumento para se restringir ou suprimir aquele direito. E também permite que se alegue que eventuais pareceres e relatórios periciais que não atestem qualquer vínculo afetivo paterno-filial mais profundo não seja tomado como argumento determinante, inclusive porque pode esconder uma relação descompensada entre os pais, em que um deles não teve suficiente oportunidade ou condições de aprofundar laços, embora desejasse fazê-lo.


Notas e Referências:

[1] COOPERAÇÃO entre STJ e Corte Europeia facilita intercâmbio de jurisprudência. Notícias. Disponível em: http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/ pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Coopera%C3%A7%C3%A3o-entre-STJ-e-Corte-Europeia-facilita-interc%C3%A2mbio-de-jurisprud%C3%AAncia. Acesso em: 10 jan. 2017.

[2] CEDH. Quarta Secção. Kacper Nowakowski v. Polônia. Petição nº 32407/13. Julgamento. Estrasburgo, 10 de janeiro de 2017.


Fernando César Costa Xavier. Fernando César Costa Xavier é doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasilia (UnB) e professor do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Roraima (UFRR). E-mail: fxavier010@hotmail.com . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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