CORONAVÍRUS: PARA ONDE VAI O MUNDO?

29/03/2020

Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta

A pergunta do título é extraída da obra[i] de Edgar Morin e por ele se é guiado.As reflexões que ora se vem a expor decorrem da atual situação vivenciada pela humanidade em razão da pandemia causada pelo novo Coronavírus ou Covid-19.

A Coluna, muito embora tenha sido criada para debater a Advocacia Pública alargou o seu campo de análise para outros temas jurídicos adjacentes, notadamente o Direito Público.

Esse perfil da Coluna impõe que se apresente fatos contemporâneos que refletem, portanto, no Direito Público e, consectariamente, nas relações por ele disciplinadas: relações sociais, institucionais, políticas, econômicas, éticas e culturais.

Traz essa exposição, assim, de modo singelo, mas reflexivo, questões e categorias como a alimentação cultural e seu controle sanitário e higiênico, a atuação dos poderes públicos e suas responsabilidades governamentais, as disputas e cooperações institucionais – nacionais, internacionais, transnacionais, federativas e locais -, a solidariedade e a ética médica.

Sabido é que a atual pandemia tem como cenário inicial o que já ocorreu na epidemia da SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) entre 2002 e 2003, contudo, a transmissibilidade e poder de causar danos – à vida, à saúde, à sociedade, à economia, a tudo... – se mostram maiores. Estudos específicos já alertavam sobre a possibilidade do que ora se vivencia[ii].

Nos termos de Edgar Morin, se pode refletir:

De fato, sempre existe um jogo retroativo entre presente e passado, no qual não somente o passado contribui para o conhecimento do presente, o que é evidente, mas igualmente no qual as experiências do presente contribuem para o conhecimento do passado e, por meio disso, transformam-no. [...]

O passado é construído a partir do presente, que seleciona aquilo que, a seus olhos, é histórico, isto é, precisamente aquilo que, no passado, desenvolveu-se para produzir o presente. [...]

Assim, o passado adquire seu sentido a partir do olhar posterior que lhe dá o sentido da história. [...]

Assim, pois, descobrimos uma brecha no passado, ao qual corresponde uma brecha no presente: o conhecimento do presente requer o conhecimento do passado que, por sua vez, requer o conhecimento do presente. [...]

Ora, o futuro nasce do presente. Isto significa dizer que a primeira dificuldade de pensar o futuro é a dificuldade de pensar o presente. A cegueira sobre o presente nos torna, ipso facto, cegos em relação ao futuro. [...] A perspectiva sobre o presente é, pois, imprescindível para qualquer prospectiva”[iii].

Ora, o passado da SARS não trazia a prospectiva de um novo Coronavírus? Os estudos referenciados assim afirmam.

Tal evidente prospectiva não impunha uma atuação de fiscalização sanitária do poder público mais efetiva sobre a alimentação de animais selvagens de toda e qualquer espécie que anda, rasteja, pula, voa e nada?

O que se visualiza, talvez incipiente e insipientemente, é a ausência de uma atuação mais efetiva e eficaz dos órgãos sanitários no controle da higiene, abatimento, distribuição e alimentação de variadas espécies de animais exóticos que são comercializadas no mercado chinês.

Esse o passado e o presente de obrigatória reflexão pela comunidade internacional.

Em tempos de inteligência artificial, isso os algoritmos não conseguiram detectar. Ou conseguiram?!

É a inteligência humana, natural, que deve, considerando o passado vivenciado e o presente vivido, detectar fraturas no sistema de controle alimentar e sanitário para obstar ou minorar os efeitos tão nefastos como de uma pandemia.

Nesse contexto que se inserem as responsabilidades governamentais, que não se restringem à origem da patologia, mas, também, no seu combate e controle.

Se o direito público, nacional e internacional, é caracterizado para disciplinar as relações entre pessoas e instituições, com vistas a uma convivência harmoniosa de suas relações, públicas e privadas, certamente a atuação frente à pandemia se deve nortear por concretizar tais objetivos. E, assim, vislumbram-se nos noticiários disputas federativas por equipamentos de proteção e médico-hospitalares para a prevenção e tratamento da doença, porquanto cada Estado, Município, Região pretende (ao menos é o que se espera!) a preservação da vida e da saúde de seus habitantes.

Notória a escassez desses insumos. A quem atender? Confiscar, o poder público, os bens e mercadorias produzidos por empresas privadas? E se assim for feito, qual critério de distribuição? Quantitativo? A vida pode ser assim mensurada? O utilitarismo ressurge como fênix?

E, sobre a filosofia política do liberalismo econômico não se pode deixar de mencionar um paradoxo, qual seja, quando o Mercado está vivendo momentos frutíferos se pretende o afastamento do Estado, contudo, quando se está vivenciando momentos de flagelo, o chamamento para participação e intervenção do Estado na economia é a primeira linha de expressão “liberalista”.

Daí que emerge a solidariedade nesses tempos crísicos, como as iniciativas de pessoas, órgãos, instituições e empresas no sentido de disponibilizarem trabalho e materiais de higiene e de tratamento médico-hospitalar. Daí que, subjacentemente, se revela a importância da comunicação – direito constitucional por excelência (CF, art. 220) - sobre o vírus, a doença, os sintomas, os testes, o tratamento, as formas de prevenção, as dificuldades, derrotas, vitórias, perdas e ganhos. Novamente Morin é necessário:

A ideia de comunicação deve ser examinada e questionada em todas as suas dimensões organizacionais e existenciais. A comunicação é a dimensão nova que a vida traz. Ela é uma ideia fundamental tanto para o organismo, quanto para o ecossistema. Ela ilumina de forma esplêndida o problema da improbabilidade biológica, já que a comunicação é a reunião em um conjunto organizado daquilo que, em caso contrário, deveria se dispersar. Existem outras comunicações vivas, inclusive em nosso planeta? Existem comunicações desconhecidas?

Em primeiro lugar, será necessário reconhecer nossas próprias comunicações. Mais uma vez nos encontramos no cerne dos problemas antropossociais. É nesse nível que a comunicação assume sua amplitude e sua intensidade existencial, individual, social, política, ética! É no cerne da problemática da comunicação que se inscreve a sombra da incomunicabilidade. É no plano da organização social que o problema fundamental se coloca: podemos imaginar, conceber, supor uma organização em que a comunicação comanda, ou seja, uma comunidade da comunicação? Saibamos desde já que qualquer esperança é descabida, se ela ignora que, por trás da comunicação social, existe o comando por aparelhos, ou seja, a ligação complexa e desconhecida entre comunicação e dominação.

Saibamos também, a partir de agora, que é no desenvolvimento cada vez mais existencial e subjetivo da comunicação que aparece uma emergência antropossicial denominada amor. Nossa experiência moderna o revela: homens e mulheres que se amam, amigos. O amor comunica e une pessoas que, de outro modo, jamais se encontrariam. Os últimos desenvolvimentos da comunicação formam o rio Amor...[iv]

Sob o ponto de vista econômico se vê posições antagônicas entre manter o isolamento social e coibir tal prática preventiva de disseminação do vírus, considerando a projeção de colapso das instituições, mercados, empregos e renda. A inerência do raciocínio estritamente econômico é justamente a sua miopia em enxergar além da economia. Em outras palavras:

É a relação com o não econômico que falta à ciência econômica. Esta é uma ciência cuja matematização e formalização são cada vez mais rigorosas e sofisticadas; mas essas qualidades contêm o defeito de uma abstração que se separa do contexto (social, cultural, político); ela conquista sua precisão formal esquecendo a complexidade de sua situação real, ou seja, esquecendo que a economia depende daquilo que depende dela. Assim, o saber economista que se encerra no econômico torna-se incapaz de prever suas perturbações e seu devir, e torna-se cego ao próprio econômico[v].

A miopia e cegueira destacadas se evidenciam, por exemplo, em proposta, no mínimo estapafúrdia, de descontar salários de servidores públicos. Ora, se a economia tem uma forte frenagem, o que se diz – e a história das crises econômicas assim apontam -, é que se faz necessário injetar massivo dinheiro no mercado, para possibilitar um arranque através do consumo e da demanda que fará girar a produção de bens e serviços que, por sua vez, em uma relação circular, insere mais produtos no mercado, mais consumo, mais renda, mais empregos.

Indaga-se, quase que obviamente (ou ingenuamente?), a retirada de renda de uma grande parcela da população não impedirá que o círculo econômico se movimente?

A disponibilização de dinheiro e incentivos públicos de créditos para parcela da população mais vulnerável, como também para empresas (micro, pequenas, médias e grandes) e negócios, não tem, de igual modo, essa virtude de, além de socorrer suas necessidades (isso é uma obrigação de ética pública!), amparar o setor produtivo e seus empregadores e empregados, fazendo girar a economia?

Em outra perspectiva de Direito Público, notória será a diminuição exponencial da arrecadação de recursos pelos governos, demandando, igualmente, atuação de expertises e instrumentos de política fiscal que possam minorar a devastação das contas públicas.

A taxa de desemprego e as relações trabalhistas, da mesma forma, deverão sofrer impactos que repercutirão nas relações sociais e familiares. Essa a grande questão que a política deve se esmerar em enxergar e atuar.

É na política, então, nacional e global, que se deve debater as soluções, nacionais e globais. Afinal,

Não é absolutamente certo, apenas provável, que nossa civilização se encaminhe para uma autodestruição, e, se houver autodestruição, o papel da política, da ciência, da tecnologia e da ideologia será capital, ao passo que a política, a ciência, a tecnologia, a ideologia, se houvesse uma tomada de consciência, poderiam nos salvar do desastre e transformar as condições do problema[vi].

Oportuno trazer também a questão da cura, da vacina, da salvação, da panaceia para o atual mal vivido e o entrelaçamento com a ética, médica e social.

Diante de notícias de que determinados medicamentos poderiam ser usados para tratar a doença, uma corrida às farmácias se viu por pessoas que sequer tinham doenças passíveis de indicação de uso dos medicamentos. Viu-se, portanto, o perfil mais aético e cruel, qual seja, a falta de solidariedade, o egoísmo existencial de garantir a própria sobrevivência em detrimento das pessoas que mais precisam.

Em contrapartida, se vê uma ética médica na tomada de posições em relação à cura, às pesquisas, aos tratamentos e acompanhamentos de dezenas de milhares de doentes, muitos fadados a morte inevitável sem sequer direito a um funeral. Aqui, se pode enxergar, num contexto bíblico[vii], o bom pastor cuidando e dando a vida pelo seu rebanho.

Mais uma vez, se escuda no autor referência do presente texto:

Cada qual, em seu aqui e agora, sente-se muito distante da Humanidade, noção abstrata que se dilui no alhures e no vir a ser.

Mas, de fato, a textura da humanidade se constitui não somente a partir da nebulosa espiral planetária em gestação, mas igualmente a partir dos indivíduos, logo que alguém reconhece no totalmente outro que entra no campo de sua comunicação um próximo, isto é, um ego-alter potencialmente alter-ego. A humanidade se tece a partir do alter-ego e do meta-ego. Mas ela não é da ordem do superego, quero dizer, uma entidade superior ao indivíduo. Este não pode ser o último ídolo, a última religião. A humanidade é o novo termo cumprindo e desenvolvendo a natureza própria do homo, transformando-se desde então em tetralógico:

Vemos claramente, pois, a complexidade, a multiplicidade constitutiva da última ética: fazer emergir a humanidade. Ela comporta também, necessariamente, o despertar da humanidade em cada um.

Com isso encerra-se esse texto (talvez um desabafo!), esperando, em um cenário de Direito Público, que o social, a ciência, a política, o jurídico e o econômico absorvam a complexidade contemporânea da pandemia do novo Coronavírus e adotem medidas, éticas, que possam emergir a consciência planetária de responsabilidade governamental e pessoal no tratamento não somente da doença e sua prevenção, mas, igualmente, das relações em todas as suas expressões: pessoais, coletivas, sociais, trabalhistas, mercadológicas, religiosas, institucionais, federativas, globais.

Enfim, para onde vai o mundo?

“Preparemo-nos para tudo.

Preparemo-nos para o Nada”[viii].

 

Notas e Referências

[i] Para onde vai o mundo? Tradução de Francisco Morás, Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2010.

[ii] Yi Fan, Kai Zhao, Zheng-Li Shi, Peng Zhou. Bat Coronaviruses in China, In, Viruses. 2019 Mar; 11(3): 210. Doi:10.3390 / v11030210 Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6466186/. Acesso em 27 mar. 2003. Cui, J., Li, F. & Shi, Z. Origin and evolution of pathogenic coronaviruses. Nat Rev Microbiol 17, 181–192 (2019). https://doi.org/10.1038/s41579-018-0118-9. Disponível em https://www.nature.com/articles/s41579-018-0118-9. Acesso em 27 mar. 2020.

[iii] Para onde vai o mundo? Tradução de Francisco Morás, Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2010, p. 12-13.

[iv] O Método 1: a natureza da natureza. Tradução Ilana Heineberg, Porto Alegre: Editora Sulina, 2016, p. 307-308.

[v] MORIN, Edgar; KERN, Anne Brigitte. Terra pátria. Tradução Paulo Neves Silva, 6ª ed. Porto Alegre: Editora Sulina, 2011, p. 65-66.

[vi] Para onde vai o mundo? Tradução de Francisco Morás, Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2010, p. 32.

[vii] Em diversos livros e trechos se encontra na Bíblia asserções sobre o bom pastor: João, 10:11; João, 10:14; Salmos, 23:1; Salmos, 28:9; Salmos, 100:3; Jeremias, 31:10; Ezequiel, 34:2; Ezequiel, 34:23.

[viii] Para onde vai o mundo? Tradução de Francisco Morás, Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2010, p. 67.

 

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