Cooperação e argumentação: irmãs siamesas, ou primas distantes?

20/10/2015

Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 20/10/2015

Olá a todos!!!

O novo Código de Processo Civil aprovado neste ano de 2015, Lei n°. 13.105, de 16 de março de 2015, encontra-se fincado em dois pilares fundamentais: i) o princípio cooperativo/colaborativo [1]; e ii) a estrutura principiológica. Estas novas facetas de análise do processo civil em momento posterior ao NCPC não se revelam inéditas; ao contrário, já foram sugeridas em ambiente acadêmico e testadas em várias partes do globo, tanto em sistemas processuais de natureza romano-germânica, como anglo-saxônica. A diferença, no caso do Brasil, fica por conta da superação do modelo adversarial de processo, no tocante à cooperação; e, no que é pertinente à estrutura principiológica, à abertura, franca e inquestionável, do direito positivo ao aspecto axiológico que até então ou estava alocado em estruturas normativas de envergadura mais elevada, como a Constituição, ou à sorrelfa escondida em cláusulas abertas inseridas no direito vigente.

Quanto ao modelo colaborativo/cooperativo de processo, presentes em iterativos dispositivos inseridos no NCPC [2], não há como deixar de compreender que ao exigir participação ativa de todos os sujeitos processuais, presentes ou não no processo [3], também deverá ser exigido um provimento judicial decisório de natureza cooperativa. Não se entenda com isso que a decisão haverá de ser construída a várias mãos, o que seria impensável, além de representar um desvirtuamento da função judicante, mas que, em realidade, a argumentação exposta na decisão deverá estar lastreada por influxos racionais, capazes de, com os argumentos utilizados para dar cabo à litigiosidade existente na espécie sob análise, permitir uma maior controlabilidade da função exercida pela unidade jurisdicional decisória.

Ao ser exigido pelo NCPC no artigo 485, §1°, inciso II, por exemplo, que ao empregar conceitos jurídicos indeterminados o juiz os correlacione ao caso concreto, o dispositivo, de fora parte as imprecisões terminológicas passíveis de críticas, repele, de um lado, a argumentação padrão e desapegada ao caso, ao tempo em que, de outro flanco, exige que se evidencie o sinal característico que ensejou a decisão ao final assumida [4], inquinando a decisão de pecha de invalidade acaso assim não se proceda.

Este e outros exemplos que se podem haurir do – imperfeito e incompleto – artigo 489 do NCPC demonstram que também a decisão judicial se situa no ambiente da cooperação, já que ao expor de maneira clara, indefectível e evidente a argumentação utilizada para fins de solução da refrega, permite aos atores processuais uma mais ativa participação no sentido do aperfeiçoamento do decisum e, como consequência, do sistema judiciário como um todo.

Esta forma de compreender a decisão judicial, bem para além do formalismo traduzido pelo vetusto e cada vez mais ranhento, porém esquálido, modus ponens – também ostenta em seu âmago uma motivação que não se encerra na forma rasa e superficial exposta pela Carta Maior no artigo 93, inciso IX que, entre outras situações que revelam sua incompletude, não veda a fundamentação por remissão, ou admite violações ao princípio da imparcialidade argumentativa, como no caso em que o mesmo juiz decide de maneira diversa casos iguais, proferindo duas decisões contraditórias, porém fundamentadas.

Hodiernamente, fundamentar não é suficiente; há que se fundamentar e argumentar. O princípio da motivação cedeu passo ao princípio da plenitude da motivação, segundo o qual traços argumentativos são inevitáveis, exigidos e estimulados, de sorte a que o Poder Judiciário tome atento não apenas ao contexto endoprocessual do conflito que, no varejo, decide; senão, que também tenha seu foco de atenção voltado aos aspectos extraprocessuais, fincados nas demandas sociais e necessidades externadas pelos indivíduos por intermédio dos atores processuais. A racionalização da motivação representa valor político fundamental [5] que deve ser objetivado e perquirido com cada vez maior intensidade no ambiente jurisdicional, a fim de que a sociedade possa se envolver e, de fato, restar imbricada nas discussões que lhe afetam inseridas na agenda do Poder Judiciário.

 Há críticas possíveis, claro. O artigo 489 aprisiona o juiz; A cada 10 decisões, será apenas proferida uma, acaso observado o que determina o artigo 489; o artigo engessa a Justiça etc. Observemos com cuidado, entretanto.

Em primeiro momento, não há qualquer prisão na fundamentação ao ser exigido mais racionalidade e menos argumentos defeituosos. Trata-se, em verdade, de uma correção de rota de algumas decisões até então proferidas com base em ideários subjetivos, falaciosos, retóricos, ou eminentemente intuicionistas ou emotivistas. Não que inexista espaço para subjetivismos, mas, em verdade, tais estarão adstritos a espaços argumentativos delineados para tanto, podendo ser expostos sem prejuízo da argumentação racional utilizada. Como bem explicita Carlos Santiago Nino, tratando-se a competência jurídica de um juízo adesão normativa, não há como deixar de considerar princípios morais, mas tais deverão estar devidamente alocados em momentos argumentativos próprios, incapazes de, uma vez enunciados, prejudicarem a exposição racional da argumentação utilizada.

Em outro cariz, tampouco a exiguidade do tempo do magistrado, ou a incrível quantidade de processos ativos no cenário pátrio permitem obstar a evolução da prestação jurisdicional enquanto serviço que, não apenas voltado ao varejo dos litígios individuais, ostenta cada vez mais amplitude coletiva e envergadura complexa. Nivelar por baixo corresponde a admitir o mais-ou-menos como qualidade do serviço.

Enfim, se de um lado temos um modelo que exige mais da participação dos atores processuais, de outro lado temos também a demanda por aperfeiçoamento do serviço como um todo, inclusive no tocante às decisões.

E estrutura principiológica exigida? Auxilia, ou prejudica? Veremos na sequência.

Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!


Notas e Referências:

[1] Há uma divergência quanto à similitude de significados entre “cooperativo”, ou “colaborativo”, mas esta controvérsia não vem ao caso agora. Para maior digressão sobre o assunto, sugiro a leitura de: MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. A bem da verdade, a fim de que a não se caia na discussão a respeito da característica do “céu dos conceitos jurídicos” – em alusão ao livro “Jurisprudencia en broma y en serio, de Rudolf Von Ihering, especificamente em capítulo intitulado “En el cielo de los conceptos jurídicos – fantasia”: IHERING, Rudolf Von. Jurisprudencia en broma y en serio. Tradução de Román Riaza. Madrid: Editora Reus S.A., 2015. –, também apresento a sugestão de que deixemos de discutir assuntos de rasa verticalidade e centremo-nos no que de fato é problemático.

[2] A exemplo dos artigos 6°, 9°, 10°, 68, 138, 190, 191, 338, 357, §3°, 373 §3°, 455, 464, §§2° a 4°, 471, 478, 526, 565, 933.

[3] A cooperação deve se dar entre: i) advogados-advogados; ii) advogados-juiz; iii) juiz-juiz; iv) juiz-auxiliares da Justiça; v) juiz-sociedade civil organizada, ao revés do que inicialmente se poderia imaginar, envolvendo apenas advogados-advogados, ou advogados-juiz. Os dispositivos mencionados na nota anterior exemplificam cada uma dessas situações.

[4] GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Tradução de Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004.

[5] TARUFFO, Michele. La motivación de la sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Traducción de Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Editorial Trotta, 2005. TARUFFO, Michele. Uma simples verdade. O Juiz e a construção dos fatos. Tradução de Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2012.


thiago galiano

Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Integrante do grupo Justiça, Democracia e Direitos Humanos, sob a coordenação da Professora Doutora Claudia Maria Barbosa. Integrante do Núcleo de Fundamentos do Direito sob a coordenação do Professor Doutor Cesar Antônio Serbena, UFPR. Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.


Imagem Ilustrativa do Post: Peace // Foto de: Janice Marie Foote // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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