Contos de Fadas Criminais: aqui nem todos vivem felizes para sempre

29/12/2015

Por Alexandre Morais da Rosa e Diego Augusto Bayer - 28/12/2015

Era uma vez uma vítima, do bem, não raro rica, bonita, aristocrata e que não trabalha, violentada por uma pessoa do mal, pobre, feia e comum. A trama se desenrola com a chegada de um herói, sempre galante, que salva a princesa do mal, roubando (sic) seu coração. E todos vivem felizes para sempre. O enredo dos contos de fadas é banal, cativante e canalha. Arregimenta um modo de compreender o mundo que, depois, na vida adulta, continua a fazer vítimas. De todos os lados. Boa parte da população esperando um salvador para viver feliz para sempre. Para tanto, os malfeitores devem ser expulsos, enxovalhados e presos. Para sempre. O viveram felizes para sempre exclui quem não compactua com a felicidade dos detentores da narrativa.

Nesse contexto, além das agências de controle, na sua missão de garantir o status quo e os privilégios, nos últimos tempos um protagonista mais soft exerce a missão do entretenimento com a adesão matreira ao modelo de exclusão: certa parcela da mídia. O programas escorre-sangue, na aparência buscam informar, mas no fundo, legitimam a estrutura e faturam. O crime virou produto a ser vendido e consumido por uma população ávida por entretenimento. E os produtos podem ser desde monstros atrozes como policiais (confira aqui). Todos podem ser tragados pela máquina de produzir medo e pânico. A distinção entre medo e pânico é fundamental. Enquanto no medo ficamos em alerta, no pânico a razão não participa e assumimos a lógica do extermínio, do inimigo. Esquecem que estes meios não estão trabalhando com personagens de filme ou novela, mas sim, produzindo efeitos reais, criando estigmas em pessoas que jamais serão esquecidos. Por isso deixamos de ter a mídia acompanhando os julgamentos, mas fazendo o julgamento preliminar, sem garantias, nem contraditório. Dito diretamente: deixaram de se limitar a informar, e sim, passaram a tomar partido, investigar por conta própria, julgar e condenar, sem respeitar o princípio do contraditório, dando voz a parte contrária.

Através dessa curiosidade do público, os meios de comunicação se aproveitam para bombardear os noticiários com espetáculos circense-criminais tão apenas para alcançar maiores índices de audiência[i]. Este jornalismo espetáculo tem exercido um poder de construção da realidade, criando pessoas incapazes de contestar, garantindo assim sua “verdade absoluta”. Essa ampla divulgação e o superdimensionamento de fatos episódicos e excepcionais sobre os crimes escolhidos pela mídia, conforme expõe Salo de Carvalho[ii] acabam por aumentar a vontade de punir que caracteriza o punitivismo contemporâneo.

Então, para legitimar estas ações, os meios de comunicação criam ideias de que “todo bandido deve morrer”, de que “temos que aumentar as penas dos crimes”, “criar leis mais rígidas”, “instituir a pena de morte”, ou quem sabe, “jogar uma bomba nas favelas”. Este discurso dos meios de comunicação legitima um punitivismo (populista) excessivo e a exclusão social, como se essas atitudes fossem a única forma de devolver a imaginária paz que, ademais, nunca houve.

Neste momento é que entra em cena a atuação do denominado “Sistema Penal Subterrâneo”, pelo qual, conforme Eugenio Raúl Zaffaroni[iii] trata-se do poder punitivo que exerce atividades ilícitas, ou seja, “que institucionaliza a pena de morte (execuções sem processo), desaparecimentos, torturas, sequestros, roubos, saques, tráfico de drogas, exploração de jogo, da prostituição, etc.” que, embora negado, tem sua existência reconhecida em todos os sistemas penais. Aliás, alimenta-se dele. É um círculo vicioso.

Este inimigo, por ser considerado ameaça, faz com que o estereótipo deva ser exterminado e, por via de consequência, tolera como necessária qualquer ação ilícita por estas agências policiais, na modalidade imaginária da legítima defesa, sem importar a magnitude do dano que foi provocado ao “inimigo”[iv] Mas o que me importo? Afinal, eu não sou o inimigo. Até quando veremos o espetáculo do crime da nossa poltrona e ganhando calorias? Um dia a coisa vira e se as garantias democráticas não mais existirem, em nome da necessidade, por uma falsa informação, como de você ser pedófilo – caso de uma dona no litoral paulista – espero que tenhas a sorte de conseguir fugir. A fofoca não poderia ter sido com você? Daí a importância do Processo Penal e da presunção de inocência de todos. Mas nos achamos, ingenuamente, sempre longe do risco.

Certo é que esta seleção deveria seguir padrões éticos e profissionais, mas, no entanto, a mídia tem se interessado apenas nos altos índices de audiência, utilizando-se do uso do sensacionalismo através do sangue, sexo e crime, fatos estes que fascinam. E melhor se forem ‘bárbaros’, por não envolverem disputa, pois ao invés de dividir – todos querem Justiça! – formarão consenso sobre a pena, e interessar à população jogada na inautenticidade do a gente, podendo ocasionar mobilizações em prol do único remédio conhecido – por eles – para conter a ‘chaga do crime’: cadeia neles!, se possível linchamento em praça pública, com hora marcada, fogueira, enxofre, muito sangue e patrocinadores a peso de ouro, retomando-se o suplício do corpo dos condenados[v].

Assim, satisfazendo o desejo do povo por “pão e circo”, fazem crescer o medo e a insegurança em razão da “desinformação” trazida por estes meios de comunicação. Esta avalanche de informações, conforme Merton e Lazarsfeld, chega a criar uma “disfunção narcotizante”[vi], qual tira a energia dos telespectadores e fazem com que a participação ativa que tinham na sociedade se transforme apenas em um mero conhecimento passivo, ou seja, segurando o controle e babando, sem agir, na poltrona de sua casa em frente à televisão. Assim, os meios de comunicação expõem de forma indevida a imagem os acusados, criando um grande espetáculo em torno do fato ocorrido, gerando assim uma reprovação social. Desta forma, os acusados são rotulados e estigmatizados pela sociedade[vii].

Para finalizarmos, nos limites que nos propomos, cabe dizer, com Noam Chomsky, que a propaganda criminal fabrica consenso e produzir o efeito conduzir “massas estúpidas para um mundo em que serão incapazes de compreender nada por si mesmas.”[viii] A sensação de (in)segurança é percebida por diversos fatores, especialmente o ambiente e pelas coordenadas simbólicas, no caso, manipuladas pela mídia escorre-sangue. A sensação é fomentada ou garantida por dois fatores em sincronia: mídia e mercado[ix]. Nenhuma novidade. Mas há uma lógica por detrás de tudo isso, na medida em que tornam a realidade um lugar perigoso para sujeitos sem um herói protetor que, em nome da salvação das vítimas, pode tudo, sem regras, nem limites. O rebanho domesticado e desconcertado, como diz Chomsky, espera avidamente por seu salvador.

O conto de fadas em que tudo termina bem e felizes para sempre é uma alegoria infantil, gregária ao mundo adulto, fomentadora da extrema audiência e sedução que os programas se apresentam atualmente. Com a ilusão necessária e simplificações ingênuas, boa parte sorri com a prisão de qualquer um que ameace a instável paz inventada pelas agências de segurança, até a próxima edição do mesmo programa, no qual novos personagens precisam ser fabricados para o show da manipulação possa continuar. Sorria, vale a pena se distrair com o medo permanente. Ele evita que você pense. Mas você é livre para se entorpecer, embora critique outros usuários de drogas. Como diz Flávio Kothe: “Tudo se faz para que ninguém saia do seu estado de engano. Quem tem ‘juízo” continua mergulhado nas sombras da écran, de boca aberta esperando as promessas de um programa após o outro, dia após dia, noite após noite, feito um zumbi, vegetando ao deus-dará até completar a sua morte.”[x]


Notas e Referências:  [i] ANDRADE, Fabio Martins de. Mídia e Poder Judiciário: a influência dos órgãos da mídia no processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 47. [ii] CARVALHO, Salo de. O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo: O Exemplo Privilegiado da Aplicação da Pena. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.14. [iii] ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 4ª Ed., Rio de Janeiro: Revan, 2011, p.70. [iv] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El enemigo em el derecho penal. 1ª ed., 3ª reimp.. Buenos Aires: Ediar, 2012, p. 82. [v] ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos.2 ed., ver. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. [vi] MERTON, Robert; LAZARSFELD, Paul. Comunicação de massa, gosto popular e a organização da ação social. In: LIMA, Luiz Costa (Org.) Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p. 109-131. [vii] BAYER, Diego Augusto. Mídia e Sistema Penal Uma relação Perigosa In: Reflexiones sobre Derecho Latinoamericano.1 ed. Buenos Aires : Editorial Derecho Latino, 2012, v.8, p. 459-474. [viii] CHOMSKY, Noam; RAMONET, Ignacio. Cómo nos vende la moto. Barcelona: Icaria, 2010, p. 11. [ix] OXLEY DA ROCHA, Álvaro Filipe. Criminologia e Teoria Social: Sistema Penal e Mídia em luta por poder simbólico: “Entretanto, dessa interação também surgem, por exemplo, os aspectos negativos da banalização, pela mídia, de temas penais de extremo relevo, a difusão do medo social, a omissão da maioria dos graves problemas que estão na origem da criminalidade, como a miséria, o analfabetismo, o desemprego, a injustiça social, etc., por demandarem, os mesmos, profundas análises científicas interdisciplinares, e sua solução, ou condução a níveis toleráveis, necessitar da implementação de políticas públicas adequadas, de médio e longo prazo, as quais, entretanto, não produzem os frequentes escândalos de que necessita a mídia, em sua ansiosa busca por “novidades” atrativas ao público, e que permitem valorizar financeiramente os espaços comerciais de seus canais de comunicação, junto aos seus anunciantes/patrocinadores, e disputar o poder simbólico com o Estado, especificamente o sistema penal. Mídia e sistema penal têm, portanto, objetivos muito diferentes, que se aproximam apenas no que se refere à disputa pelo poder que decorre da afirmação da “verdade”. Disponível em: http://www.pucrs.br/edipucrs/Crimin.eSist.Jurid.PenaisContemp.II.pdf [x] KOTHE, Flavio. A narrativa trivial. Brasília: UNB, 1994, p. 83


Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  

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A20130731083909_diego_bayer2Diego Augusto Bayer é doutorando em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires. Professor de Penal e Processo Penal na Católica de Santa Catarina. Organizador e um dos autores da obra Controvérsias Criminais: Estudos de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia. (Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Eugenio Raúl Zaffaroni). Advogado Criminalista.                                                                                                                           


Imagem Ilustrativa do Post: Prison noire de Laayoune // Foto de: Western Sahara // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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