Contemplação lasciva com pena de homicídio: a necessidade de limitar o conteúdo da elementar normativa ato libidinoso

23/08/2016

Por João Marcos Braga - 23/08/2016

Recentemente alguns veículos midiáticos especializados noticiaram precedente da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em que se entendeu pela desnecessidade do contato físico para a configuração dos delitos previstos nos arts. 213 e 217-A do Código Penal. Constou no voto condutor que “a maior parte da doutrina penalista pátria oriente no sentido de que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos artigos 213 e 217-A do Código Penal, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido”.

Indubitavelmente, a discussão acerca do entendimento firmado no mencionado caso provoca interessante discussão jurídica sobre os limites interpretativos dos delitos de estupro e de estupro de vulnerável. De fato, os Tribunais pátrios têm oscilado bastante ao definir a elementar normativa ato libidinoso, constante nos dois mencionados delitos.

Deve se lembrar que na reforma operada pela Lei nº 12.015/2009, o legislador equiparou o ato ou permita que se pratique libidinoso à conjunção carnal, formando um só delito, o estupro, previsto no art. 213 do CP. Também, a pessoa que, mesmo sem violência real ou grave ameaça, mantenha conjunção carnal, pratique ato libidinoso contra criança ou adolescente – menor de 14 anos – responde, atualmente, pelo crime de estupro de vulnerável. Essa circunstância não implica, contudo, que todo e qualquer ato libidinoso possa ser punido com pena de reclusão mínima de 8 (oito) anos.

Ainda na década de 80 do século passado, há mais de 35 anos, Nelson Hungria interpretava ato libidinoso como “todo aquele que se apresenta como desafogo (completo ou incompleto) à concupiscência. Como elemento constitutivo do atentado violento ao pudor”, o mesmo autor também admitia que “há uma gradação de obscenidade”. O saudoso Ministro do Supremo Tribunal Federal enfatizava, àquela época, que, por exemplo, o beijo simples e a contemplação da nudez[1] da vítima não tinham o condão de configurar o crime de atentado violento ao pudor, punido, até então, com pena mínima de 2 (dois) anos.

A atual conjuntura da criminalização dos delitos sexuais é bastante diferente daquela vivenciada por Hungria. A prática de ato libidinoso pode hoje acarretar em pena privativa de liberdade mínima de até 8 (oito) anos. Daí porque é fundamental que sejam estabelecidos parâmetros objetivos de lesividade da liberdade e da dignidade sexual, para a definição do que significa a elementar ato libidinoso.

O que se propõe, no presente artigo, é um parâmetro segundo o qual apenas aquelas condutas que ofendam o bem jurídico com lesividade assemelhada à conjunção carnal possam configurar o crime de estupro. Esse critério encontra amparo no princípio da proporcionalidade, que em matéria penal impõe que a pena deve guardar relação com o grau de lesão do bem jurídico dignidade sexual

Um critério mínimo para diferenciar o grau de lesividade das condutas é obedecido em boa parte do mundo, pois na maioria dos Códigos Penais há a distinção entre as formas de agressão da dignidade sexual.

Na Alemanha[2], existe, no Código Penal, o crime de abuso sexual de criança, previsto no § 176, que pune com pena de seis meses até dez anos “[q]uem pratique ações sexuais contra uma pessoa menor de 14 anos (criança), ou permita que com ele se pratique pela criança”. O mesmo dispositivo prevê que “em casos de menor gravidade, pune-se com pena privativa de liberdade de até 5 anos ou com multa”. Há naquele país, ainda, o crime de abuso grave de criança, previsto no § 176a e punido com pena mínima não inferior a um ano, quando, entre outras condutas, “uma pessoa maior de 18 anos consume ato carnal com criança, ou execute ações sexuais parecidas, ou deixe com ela deixe praticar ações parecidas com o ato carnal, que estejam associadas com uma penetração no corpo”.

Na Itália[3], o abuso contra criança é punido, no art. 609 bis do Código Penal, com a pena de cinco a dez anos de reclusão, contudo, há a redução em dois terços da pena, caso a lesão à vítima não seja grave.

Em Portugal[4], o art. 172º do Código Penal estabelece que “[q]uem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos”, ao passo que “[s]e o agente tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor de 14 anos é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos”.

Na Espanha[5], o art. 181 do Código Penal estabelece que “[a]quele que sem violência ou intimidação realize atos que atentem contra a liberdade sexual de outra pessoa, será castigado com pena de doze a vinte quatro meses”. De outro lado, o art. 182 do CP espanhol prevê que “[q]uando o abuso sexual consista em conjunção carnal, introdução de objetos ou penetração bucal, ou anal, a pena será de prisão de quatro a dez anos”.

A diferenciação entre as penas para os graus de ofensa ao bem jurídico dignidade sexual em cada conduta não é uma situação vivenciada apenas na Europa. Na Argentina[6], o art. 119 do Código Penal estabelece que “[s]erá punido com reclusão de seis meses a quatro anos aquele que abusar sexualmente de pessoa de um ou outro sexo, quando esta for menor de treze anos, ou quando mediante violência, ameaça, coação, ou intimidação, por relação de dependência, de autoridade, de poder, ou se aproveitando de que a vítima, por qualquer razão não poça consentir livremente a ação”. De outro lado, o mesmo artigo prevê que “[a] pena será de seis a quinze anos de reclusão quando mediante as circunstâncias do parágrafo primeiro, houver penetração por qualquer via”.

A falta de previsão legal, no Brasil, de um delito intermediário entre a figura prevista no art. 65 da Lei de Contravenções Penais e o art. 217-A do CP não pode ser interpretada em desfavor do réu. Inevitavelmente, no atual contexto, por ato libidinoso apenas pode se entender a conduta que ofenda o bem jurídico dignidade sexual em proporção semelhante à conjunção carnal.

De fato, pode se dizer que falta no ordenamento jurídico brasileiro uma norma específica para acobertar a situação do toque pudendo por fora da roupa, ou de outras condutas que ofendam os bens jurídicos dignidade ou liberdade sexual com gravidade bem menor do que a conjunção carnal. Não à toa, tramita, perante a Câmara dos Deputados, emenda aditiva ao PL n. 5.452/2016, de Relatoria do Deputado Federal Fábio Ramalho, em que se propõe a instituição de “causa especial de diminuição de pena nos casos de ato libidinoso diverso de conjunção carnal de menor gravidade”. A emenda aditiva se justifica, segundo a exposição de motivos, “em face da necessidade de se punir de forma justa e proporcional condutas especificas”. De acordo com a proposta, haveria a inclusão da seguinte causa de diminuição de pena, in verbis:

§ 5º - Nos delitos descritos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços) se, cumulativamente:

I - o agente for primário e não ostentar antecedentes por crimes da mesma natureza;

II - o ato libidinoso diverso da conjunção carnal não for praticado com violência física ou psicológica, nem consistir em introdução de membro, órgão ou objeto nas cavidades vaginal, oral ou anal da vítima;

III - o ato não importar em grave invasão da intimidade da vítima ou em sua humilhação.

A proposta legislativa do Deputado mineiro vem em boa hora. Caso ela venha a calhar, poder-se-á graduar a lesividade da conduta do agente, possibilitando, inclusive, a substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direito.

Mas, como dito antes, mesmo sem a prévia edição da citada causa de diminuição de pena, não é qualquer ato que pode configurar estupro, ou estupro de vulnerável. A teoria do bem jurídico exerce, basicamente, duas funções dentro da dogmática do Direito Penal. A primeira delas é a de limitar o poder do Estado em punir determinadas condutas que não atinjam elementos da condição do sujeito e de sua projeção social[7]. A segunda função da teoria do bem jurídico é teleológica. É que o bem jurídico constitui-se “em importante instrumento metodológico na interpretação das normas jurídico-penais[8]. Em um Direito Penal secularizado, não é válida a aplicação da norma incriminadora a partir de pressupostos morais e não jurídicos.

A norma não pode ser interpretada unicamente por seu aspecto literal. A interpretação da lei penal, especialmente, deve estar subordinada principalmente ao seu sentido em face da lesão do bem jurídico. O Direito Penal moderno lida com conflitos e não com o sujeito. É necessária, para a criminalização de uma conduta, que ela tenha uma exteriorização no mundo empírico e que ela coloque em risco, ou lesione um bem jurídico. Nesse contexto, a interpretação da norma incriminadora não pode se afastar também do princípio de proporcionalidade, da razoabilidade e da lesividade.

No caso do estupro, não existe nenhuma dúvida acerca da legitimidade de a norma ter por referência o bem jurídico liberdade e dignidade sexual. De outro lado, o princípio da proporcionalidade impossibilita a equiparação, num só tipo penal, entre condutas de lesividade completamente distintas aos mencionados bens jurídico. Como lembra Hassemer, deve existir “um juízo de ponderação entre a carga “coativa” da pena e o fim perseguido pela cominação penal[9]. Essa análise de proporcionalidade entre crime e pena deve existir tanto abstratamente pelo legislador, quanto de forma concreta, pelo juiz.

Assim o conceito de ato libidinoso deve ficar limitado materialmente à prática de atos nitidamente atentatórios à dignidade sexual da vítima. Embora sejam repugnantes toques pudendos por fora da roupa e beijos lascivos, é absolutamente desproporcional punir essas condutas com pena mínima de 6 anos, no caso de estupro e de 8 anos na hipótese de estupro de vulnerável.

Deve se ter em mente que é de 6 anos a pena mínima do crime de homicídio. Há, em tal contexto, flagrante violação ao princípio da razoabilidade. Como lembram Cláudio Souza Neto e Daniel Sarmento, o princípio da razoabilidade tem por uma de suas vertentes a concernente à racionalidade, “que diz respeito não apenas à contradição entre elementos presentes em uma mesma norma, como também à sua desarmonia com o sistema jurídico[10]. Não é razoável que se puna com pena mínima igual a morte de um menor de 14 anos e a contemplação lasciva da mesma criança. Essa interpretação seria inegavelmente violadora da coerência necessária ao ordenamento jurídico.

No caso do precedente recente do STJ é de fato reprovável a conduta do agente de contemplar menor de 14 anos. Contudo não se pode dizer que essa ação tem a lesividade necessária para configurar o crime previsto no art. 217-A do CP. Na legislação penal de nenhum outro país por nós pesquisado essa conduta seria punida com a pena mínima de 8 anos. Com todo respeito, a conclusão firmada pela 5ª Turma daquela Corte viola o princípio da lesividade, da proporcionalidade e da razoabilidade, inerentes a um sistema de justiça criminal democrático.


Notas e Referências:

[1] Lecionava Nelson Hungria: “Se se abandona o critério subjetivo-objetivo, ter-se-ia de qualificar como ato libidinoso, sob o prisma jurídico-penal, até mesmo o coito psíquico de um erotômano, em face de uma mulher sugestiva, que ele obrigue a se deixar contemplar, sem mesmo procurar despi-la. Seria isso um evidente despropósito, por isso mesmo que apreciado ab externo, o fato não é obsceno ou impudico”. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol VII. p. 124.

[2] Código Penal Alemão traduzido para o espanhol em http://www.juareztavares.com/textos/leis/cp_de_es.pdf.

[3] Código Penal Italiano disponível em http://www.juareztavares.com/textos/codigoitaliano.pdf.

[4] Código Penal Português disponível em http://www.juareztavares.com/textos/codigoportugues.pdf.

[5] Código Penal Espanhol disponível em: http://www.juareztavares.com/textos/codigoespanhol.pdf

[6] Código Penal Argentino disponível em http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/15000-19999/16546/texact.htm#17

[7] TAVARES. Juarez. Teoria do injusto penal. 2003. p. 198.

[8] BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. p. 96.

[9] HASSEMER, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal, trad. Francisco Muñoz Conde e Luis Arroyo Sapatero, Barcelona, Bosch, 1984, p. 279. 

[10] SOUZA NETO. Cláudio Pereira de & SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Editora Fórum, 2016.


João Marcos Braga. João Marcos Braga de Melo é Bacharel em Direito pela UnB. Pós-Graduando em Direito e Processo Penal pelo IDP e em Direito Penal pelo IBCCRIM-Coimbra. Membro da Comissão de Assuntos Criminais da OAB/DF. Advogado Criminalista em Brasília, associado ao Escritório TTB Advogados Associados. .


Imagem Ilustrativa do Post: Shadows // Foto de: Laurie Avocado // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/auntylaurie/1849245012

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura