Contêineres, sistema prisional e a crônica de uma tragédia anunciada

05/05/2020

O uso de contêineres no Estado Brasileiro voltou a ganhar holofotes com a divulgação de ofício do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), solicitando a flexibilização dos parâmetros arquitetônicos prisionais do país, a fim de que possível a utilização de estruturas metálicas temporárias para o aumento de vagas, diante da pandemia da Covid-19[1].

Em sua essência, a preocupação com os reflexos da Covid-19 sobre o sistema carcerário nacional é real, uma vez que a infecção já se mostra presente em unidades de Estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, Pará e Distrito Federal[2]. Todavia, discordamos da proposta.

Em primeiro lugar, vale frisar que o sistema prisional brasileiro tem sofrido um crescimento exponencial ao longo das últimas décadas, o que levou o país a possuir a 3a maior população carcerária do planeta, atrás somente de Estados Unidos e China[3]. Além disso, de acordo com dados do infopen, o país possui um déficit de aproximadamente 312.925 vagas[4]. Há uma grave deficiência estrutural na quantidade de vagas no sistema prisional brasileiro, sendo certo que a infecção por Covid-19 apenas acrescenta um elemento complicador, e com risco de morte, para a gestão e promoção de direitos no sistema.

Ademais, superlotação, maus tratos, tortura, mortes, doenças, tuberculose, dificuldade de acesso à saúde, excesso de remédios psicotrópicos, baixa quantidade de oportunidades de trabalho e dificuldade de acesso à escolarização fazem parte do cotidiano das unidades do país, em manifesta desconformidade com o texto da CF/88 e da lei de execuções penais. Esse contexto levou, inclusive, o Supremo Tribunal Federal (STF) a reconhecer o Estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro no julgamento da ADPF 347.

A necessidade de ampliação do número de vagas nas unidades prisionais do Brasil já gerou a utilização de contêineres e celas metálicas em Estados como Espírito Santo[5], Rio Grande do Sul e Pará, tendo sido verificada em todos esses casos a configuração de tratamento indigno e desumano, com manifesta violação a direitos fundamentais.

Verificou-se nesses Estados deficiências sanitárias ligadas à ausência de sistema de esgoto e até mesmo as altas temperaturas dos contêineres expostos ao sol que se replicaram no sistema socioeducativo[6] e fizeram com que o país fosse acionado internacionalmente no caso do Espírito Santo[7].

Sobre o tema, paradigmático o sempre lembrado habeas corpus 142.513/ES, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, no qual se entendeu pela substituição da prisão em contêineres por prisão domiciliar, com extensão a todos – homens e mulheres – que estivessem em condições semelhantes. No voto, o Ministro Og Fernandes configurou como absurda a situação em julgamento.

Em 2019, no Rio Grande do Sul, o Tribunal de Justiça concedeu habeas corpus de ofício, no julgamento do agravo em execução nº 70080474125, patrocinado pela Defensoria Pública Estadual (DPRS), a presos do Instituto Penal de Novo Hamburgo (IPNH), encarcerados em contêineres, tendo consignado que a situação apresentada configurava violação à Constituição, legislação interna e atos normativos internacionais, inclusive aos parâmetros arquitetônicos fixados pelo CNPCP após o caso do Espírito Santo[8].

No Estado do Pará, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCP), em missões realizadas em 2016 e 2019 se deparou com a utilização de celas metálicas em unidades prisionais, inclusive no estabelecimento que ficou nacionalmente conhecido como palco no “massacre de Altamira”[9], tendo relatado que se tratava de medida que permitia que pessoas morressem incinerada ou asfixiadas com mais facilidade.

Por outro lado, o Conselho Nacional de Justiça expediu a Recomendação nº 62 de 2020, com diversas medidas humanitárias visando à promoção dos direitos humanos à vida e saúde de uma significativa parcela da população brasileira, sujeita às mazelas do sistema prisional, num contexto de avanço da Covid-19 sobre o país[10]. Aliás, tal documento encontra-se afinado à visão constitucional da pessoa como centro das relações jurídicas, tal como alinhado na Carta de 1988 e em recente Resolução da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh)[11].

Ocorre que a Recomendação tem tido aplicação ainda tímida pelo Poder Judiciário brasileiro, bem como ataques por parte da sociedade, desconsiderando-se que no sistema prisional há pessoas presas, mas também trabalhadoras e trabalhadores ligados ao Estado pelos mais variados vínculos. Além disso, todas e todos possuem familiares, que também estarão expostos à Covid-19. O sistema prisional é um espaço de constante fluxo de pessoas. Algumas unidades dependem, inclusive, da contribuição de familiares para itens básicos da vida carcerária como materiais de higiene e vestuário.

De acordo com informações veiculadas na mídia, alguns estados como Amazonas, Rio de Janeiro, Pará e Ceará já se encontram com seus sistemas de saúde saturados ou em via de saturação[12]. Caso a Covid-19 se espalhe pelo sistema prisional, teremos perto de 700 mil pessoas, sem contar os trabalhadores e trabalhadoras e familiares, sujeitos a contrair a infecção e transmiti-la a outrem, não havendo prognósticos de que o sistema de saúde nacional possa abarcá-los.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) expediram a Nota técnica conjunta 01 de 2020 que, ao tratar da temática do uso de contêineres, conforme proposta do Depen, expressamente consigna que “o estado de calamidade decorrente da pandemia Covid-19 não outorga salvo conduto ao Estado brasileiro para desrespeitar direitos das pessoas sob sua custódia, submetendo-as a situação ainda mais vulnerável do que as que já se encontram em um sistema reconhecido como inconstitucional”.

Por último, não se olvide que o tratamento conferido à população carcerária brasileira tem raízes em nosso passado escravocrata, sendo certo que o depósito de corpos humanos em celas de metal infelizmente nos remete ao transporte de pessoas da África ao nosso país nos abomináveis navios negreiros, também conhecidos como “tumbeiros”, dada a quantidade de mortes no trajeto ruma às Américas.

Assim sendo, o país precisa adotar medidas sérias e eficazes para o enfrentamento da Covid-19 no sistema prisional brasileiro, deixando de lado paliativos ou medidas que historicamente se mostraram inadequadas, primando pela diminuição da quantidade de pessoas aglomeradas em espaços superlotados e incapazes de lhes conferir tratamento digno. Deve-se ser vedada a utilização de contêineres ou estruturas similares, garantido-se o respeito à Constituição de 1988 e às normas de execução penal.

É também imprescindível um olhar mais sensível à orientação do Conselho Nacional de Justiça, constante na Recomendação 62, que visa à manutenção da vida e liberdade daqueles que não deveriam estar encarcerados, tudo isso sem prejuízo da necessidade de fortalecimento do acesso à saúde no cárcere no Brasil, por se tratar de direito fundamental de todas e todos, nos termos da Constituição de 1988 e dos tratados internacionais dos quais o país é signatário.

 

Notas e Referências

[1] FOLHA DE SÃO PAULO. Disponível        em:         <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/com-mortes-por-coronavirus-ministerio-da-justica-quer-vagas-para-presos-doentes-e-idosos-em-conteineres.shtml>. Acesso em: 26 abr. 2020.

[2] Disponível          em: <      https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,rio-confirma-primeiro-preso-morto-por-covid-19,70003274570>;              <https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/2020/04/24/segunda-morte-de-preso-por-covid-19-e-confirmada-em-sorocaba.ghtml>;<https://g1.globo.com/es/espirito-santo/noticia/2020/04/24/detento-morre-por-covid-19-em-hospital-do-es-uma-semana-depois-de-deixar-o-presidio.ghtml>;            <https://oglobo.globo.com/sociedade/complexo-penitenciario-da-papuda-tem-100-casos-confirmados-de-covid-19-entre-os-presos-24389933>. Acesso em: 26 abr. 2020.

[3]  Disponível em:                 <https://ponte.org/com-812-mil-pessoas-presas-brasil-mantem-a-terceira-maior-populacao-carceraria-do-mundo/>. Acesso em: 26 abr. 2020.

[4] Disponível em: <https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZTlkZGJjODQtNmJlMi00OTJhLWFlMDktNzRlNmFkNTM0MWI3IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9>. Acesso em: 26 abr. 2020.

[5] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2009-mai-15/conselho-penitenciario-intervencao-federal-espirito-santo>. Acesso em: 26 abr. 2020.

[6] Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2009/06/relatrio%20es%20-%20verso%20final%20cnj%20-%20aberta.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2020.

[7] DPES. Nota Técnica da Defensoria Pública do Espírito Santo. Disponível          em:         <http://www.defensoria.es.def.br/site/wp-content/uploads/2020/04/Nota-T%C3%A9cnica-NDH-n%C2%BA-001-de-2020-Cont%C3%Aaineres-e-Covid-19-Proposta-do-Depen-DPES-final.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2020.

[8] Disponível em:  <https://www.conjur.com.br/dl/relatorio-presidio-e2.pdf>.        Acesso em: 26 abr. 2020.

[9] Disponível em: <https://mnpctbrasil.files.wordpress.com/2019/11/relatorio_mnpct_para_2019.pdf>.         Acesso em: 26 abr. 2020.

[10] FOLHA DE SÃO PAULO. Mais de 70 entidades da sociedade civil e órgãos públicos expressaram          apoio ao ato do CNJ.                 <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/04/defensores-lancam-manifesto-em-contraponto-a-moro-por-presos-na-crise-da-covid-19.shtml>. Acesso em: 26 abr. 2020.

[11] Disponível        em:         <http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2020.

[12] Disponível em:                <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/13/Por-que-o-Amazonas-%C3%A9-o-1%C2%BA-estado-a-ter-um-colapso-na-sa%C3%Bade>,                <https://oglobo.globo.com/rio/witzel-afirma-que-sistema-de-saude-do-rio-entra-em-colapso-em-15-dias-24319451>,    <http://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/noticias-pa/belem-pa-tem-sinais-de-colapso-na-saude-e-mpf-requisita-informacoes-sobre-leitos-para-atendimento-da-covid-19>            e                 <https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus-apos-colapso-no-ceara-veja-situacao-do-sistema-de-saude-nos-estados-mais-criticos-24375780>. Acesso em: 26 abr. 2020.

 

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