Constituição na Escola e o direito humano às artes: ensinando Direito Constitucional a crianças por meio de vivências artísticas

29/08/2016

Por Cândice Lisbôa Alves - 29/08/2016

No fim do semestre passado eu era professora de Organização do Estado e dos Poderes de uma turma no terceiro período, noturno, do curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia.

Quem é professor dessa disciplina sabe quão maçante é replicar as normativas constitucionais, e, ao mesmo tempo, como é indispensável para que o estudante conheça a configuração do Estado. E a metodologia não consegue ser muito diferente. É necessário ler incessantemente a Constituição para decifrar o Estado. Está ali o mapa da mina!

Em uma das aulas comentei a importância do conhecimento por parte da população carente acerca da formatação do Estado para que possam lutar pelos seus direitos. A ideia era audaciosa, porém singela: levar o desenho da Organização do Estado (os benefícios implícitos na normativa constitucional) para outras pessoas por meio de uma cartilha simplificada. O público alvo seria pessoas que vivessem em situação de vulnerabilidade social, objetivando-se que o conhecimento aplicado pudesse transformar a realidade, e, assim, quem sabe, promover emancipação social.

Como muitos dizem: há ouvidos e ouvidos. Algumas pessoas passaram a sonhar junto comigo e assim parte dos alunos decidiu iniciar o projeto Constituição na Escola por meio de uma primeira versão da cartilha.

Achei interessante o fato de que os alunos que abraçaram o projeto são, em grande parte, beneficiados pelas cotas e trazem como marca o desejo de retribuição à sociedade, e, também, a ânsia por mudança social que conduza à emancipação.

Algumas pessoas se opõem frontalmente às cotas (com o argumento de que elas invalidam o critério da meritocracia por relativizá-lo, colocando alunos “piores” nas Universidades e retirando o direito dos “bons” alunos de entrarem). Aconselho a esses opositores que procurem conhecer as pessoas que entram pelas cotas, na vida real, com seus respectivos rostos e histórias de vida (na esteira de Levinas). Aconselho que olhem nos olhos, tenham notícias das notas e coeficientes acadêmicos, dos projetos sociais nos quais os cotistas se integram espontaneamente, reconheçam o empenho, e, com tudo isso, percebam a responsabilidades que esses jovens trazem como reflexo de sua história de vida, geralmente bem sofrida. Permitam-se invadir pela representação da transformação que acontece com os alunos e suas respectivas famílias. Penso que quem não vive o contexto, e reproduz o discurso de “tomada de vaga de bons alunos” não conheça a realidade social de onde eles vem, nem imaginem o significado da oportunidade.

Lecionando para essa turma me deparei com pessoas politizadas, com grandes alunos, bons em várias dimensões, não só como estudantes, mas como pessoas, generosas e preocupadas com o próximo! Não são “piores”que ninguém, não há razão para tal afirmação, em especial quando a análise é por um critério meritocrático que estabelece clara vantagem aos alunos de escolas privadas... os cotistas merecem, como qualquer outro aluno, estar ali. São bem diferentes em um critério: são repletos de um sentimento de retribuição social que não é comum em Faculdades ou Universidades Privadas (e já lecionei em mais de dez universidades privadas ao longo de doze anos de docência no ensino superior).

Dentro desse contexto de envolvimento social fica fácil entender porque o projeto deixou de ser uma promessa e se transforma a cada dia em realidade.

No início, o projeto era uma possibilidade de acréscimo na nota final do semestre (e sim, eu permiti isso, porque entendo que um reforço positivo pode causar transformação, e estimular algo que a técnica comum não provoca). Mas, após as férias, alguns não estavam satisfeitos em o projeto ser aquele esboço de cartilha que foi apresentado. Passaram a ter sede de outras coisas. Sabiam que o projeto poderia ser maior e melhor, então, queriam ir adiante com um objetivo claro: aplicar a ideologia prol transformação social por meio do Direito Constitucional, como havia comentado,alicerçados no Boaventura Souza Santos. Minha resposta foi sim!

O projeto Constituição na Escola hoje está registrado como projeto de extensão na Universidade Federal de Uberlândia e tem uma página na internet que a cada dia ganha corpo (www.contituicaonaescola.com). Não temos patrocinadores ou conseguimos financiamento para levar adiante a promessa. Por enquanto temos apenas muita raça e vontade de dar certo.

O público alvo são crianças que concluem o primeiro ciclo do ensino fundamental na rede pública municipal da cidade de Uberlândia, na faixa etária entre 7 e 9 anos. O desenho do projeto, entretanto, pode ser replicado em qualquer local, e como essa é a meta, vamos disponibilizar um “diário de bordo” na página do projeto, com instruções, metodologia e resultados (os pretendidos e os alcançados).

O objetivo é levar às escolas institutos de Direito Constitucional por meio de métodos lúdicos e literários. Gosto de pensar que por meio desse projeto todos voltamos à escola: os alunos da graduação, os estudantes do ensino fundamental, os professores envolvidos, e também a Constituição, porque o Direito precisa se sentar em cadeiras públicas e entender a realidade do contexto para que possa ser bem aplicado, ou, na linguagem constitucionalista, para que possa ser “conformado”. Concretude de direitos não se faz distanciado da verdade da vida do seu público alvo... então, precisamos de vivências para que adequação seja perfeita.

Escolhi Rubem Alves como inspiração, e, conjuntamente, entendemos que as visitas à rede pública de ensino não serão uma doação, mas uma troca de saberes, já que nenhuma dogmática se compara às lições que a realidade nos apresenta. Vamos aprender mais que ensinar.

Antes de visitar, porém, estamos estudando o que é ser criança, o que é educação infantil, e como as artes podem ser pensadas como técnica de acesso ao outro com maior eficácia que o ensino tradicional. As artes são percebidas como instrumento de humanização da prática educativa que propomos nas escolas, assumindo o que Antonio Candido[1] afirmou com sabedoria: as artes humanizam as pessoas. Nas palavras do autor: “Entendo aqui por humanização (que já tenho falado tanto nela) o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor”(2011, p. 182).

Sim, é preciso humanizar pessoas inseridas em uma realidade áspera para que transformações sociais aconteçam. É preciso olhar com amor, ter empatia pelo outro. É preciso gostar do outro e conversar com ele, escutar, tocar, pegar na mão para ensinar a escrever, ou contar estórias para transmitir uma mensagem. É preciso saber ouvir. É preciso sorrir juntos e resgatar a autoconfiança e a esperança de dias melhores.

Meus alunos farão isso: contarão estórias, desenharão juntos, ouvirão músicas e estórias dos alunos, dançarão nas cantigas de rodas antigas, tudo isso para transmitir às crianças em situação de vulnerabilidade a mensagem de que existe um Estado, um Direito, e pessoas que acreditam que a realidade delas – e do entorno – pode ser diferente. Pessoas que acreditam em emancipação social.

O que Rubem Alves diria disso tudo? Só quem não tem medo do amor pode se propor a educar.


Notas e Referências:

[1] CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 5ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Ouro Sobre o Azul, 2011, p. 171-193


. Cândice Lisbôa Alves é Bacharel em Direito pela UFV(2004). Mestre pela UFV (2006). Doutora em Direito Público pela Puc Minas(2013). Professora Adjunta I da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (2016). Professora de Organização do Estado e dos Poderes e Jurisdição Constitucional na graduação. Professora de Jurisdição Constitucional no Mestrado em Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Advogada. Coordenadora do grupo de estudos Hoplita, que analisa as atividades contramajoritárias do direito em prol dos direitos fundamentais. Uma das professoras coordenadoras do projeto Ouvidoria Acolhidas (ouvidoria especializada para atender casos de discriminação de gênero e assedio sexual na Universidade Federal de Uberlândia). Coordenadora do projeto Constituição na Escola (projeto de extensão e pesquisa que busca ensinar à crianças e adolescentes o conteúdo da Constituição, elegendo pontos relevantes para o incentivo à cidadania).


Imagem Ilustrativa do Post: Dibujo con chicle // Foto de: Gloria Marvic // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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