Concurso Públicos e os cadastros restritivos de crédito

12/08/2016

Por Vitor Vilela Guglinski - 12/08/2016

Nos dias atuais, em que os concursos públicos notoriamente vêm se tornando cada vez mais o objeto de aspiração de considerável parcela dos cidadãos brasileiros, é com certa frequência que se presencia um grande número de pessoas discutindo sobre a legitimidade de se eliminar dos certames aqueles candidatos que se encontrem inscritos em bancos de dados negativos de consumo e similares.

Pesquisando sobre a questão, surpreendentemente é possível verificar que alguns entendem que é possível a utilização de tal critério na fase do concurso destinada ao exame psicotécnico, a fim de se aferir a capacidade psicológica do candidato para o desempenho da função, sendo que outros o admitem como critério a ser utilizado na investigação de vida pregressa.

Após estudo acurado do assunto, a fim de analisar as implicações jurídicas envolvendo o tema, é possível extrair alguns fundamentos jurídicos que permitem concluir que tal ato por parte do Poder Público, se praticado, encontrar-se-á totalmente divorciado das diretrizes do Estado Democrático de Direito.

Analisando-se as bases constitucionais pertinentes ao tema, dispõe o art. 37, incisos I e II, da Constituição Federal:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

Da leitura do dispositivo e seus incisos, verifica-se que a Carta Magna conferiu à lei regular o acesso aos cargos e empregos públicos. Como parâmetro a afiançar a ideia defendida neste trabalho, veja-se, por exemplo, que Lei nº. 8112/90 disciplina o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, sendo que os requisitos básicos para a investidura em cargo público estão dispostos no art. 5º, e incisos, do diploma supra citado, o qual passo a transcrever:

Art. 5º São requisitos básicos para investidura em cargo público:

I - a nacionalidade brasileira; II - o gozo dos direitos políticos; III - a quitação com as obrigações militares e eleitorais; IV - o nível de escolaridade exigido para o exercício do cargo; V - a idade mínima de dezoito anos; VI - aptidão física e mental.

Analisando-se as exigências legais acima, percebe-se que o legislador estabeleceu critérios objetivos para o ingresso no funcionalismo público, inclusive em relação a outros requisitos, porventura exigidos em razão do cargo pretendido, o que ficou reservado ao disciplinado pelo § 1º do aludido artigo, o qual prevê que “As atribuições do cargo podem justificar a exigência de outros requisitos estabelecidos em lei”.

Um dos traços marcantes dos concursos públicos é a garantia de igualdade entre os participantes do certame, sendo que somente a lei pode estabelecer restrições de acesso a determinados cargos, e mesmo assim somente nos casos em que determinadas características inerentes ao candidato forem incompatíveis com a natureza da função a ser desempenhada. Tal decorre do princípio da isonomia, o qual está implícito no art. 3º, IV, da Constituição Federal, valendo registrar que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, vedando quaisquer formas de discriminação (grifei).

Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello ensina:

“Os concursos públicos devem dispensar tratamento impessoal e igualitário aos interessados. Sem isto ficariam fraudadas suas finalidades. Logo, são inválidas disposições capazes de desvirtuar a objetividade ou o controle destes certames. É o que, injuridicamente, tem ocorrido com a introdução de exames psicotécnicos destinados a excluir liminarmente candidatos que não se enquadrem em um pretenso ‘perfil psicológico’, decidido pelos promotores do certame como sendo o ‘adequado’ para os futuros ocupantes do cargo ou emprego.

Exames psicológicos só podem ser feitos como meros exames de saúde, na qual se inclui a higidez mental dos candidatos ou, no máximo – e ainda assim, apenas no caso de certos cargos ou empregos, para identificar e inabilitar pessoas cujas características psicológicas revelem traços de personalidade incompatíveis com o desempenho de determinadas funções” (In Curso de Direito Administrativo, 11ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999, págs. 194 – 195).

Assim sendo, encontramos um dos fundamentos jurídicos a coibir tal prática por parte do Poder Público, na medida em que perquirir a idoneidade financeira de outrem, ao argumento de que um indivíduo que se encontra na situação de devedor não é psicologicamente apto a desempenhar suas funções em cargo ou emprego público, extrapola a órbita do interesse público e foge aos critérios objetivos de avaliação do candidato. Da mesma forma, entendemos que não é cabível a utilização de informações ligadas à vida financeira do indivíduo na investigação de sua vida pregressa, uma vez que o que interessa (ou deveria interessar) ao Poder Público são as quitações do indivíduo perante o Estado, ou seja, sua conduta pública.

Da leitura da quase totalidade dos editais de concursos públicos é possível perceber, nesse particular, que as exigências neles contidas visam colher informações relativas ao comportamento do candidato perante a sociedade, isto é, investigar se o indivíduo se conduz consoante o mínimo ético exigido pelo Direito, necessário ao convívio social sadio, valendo lembrar que um dos princípios reitores do concurso público é o princípio da vinculação ao edital. Entretanto, pensamos que, mesmo que o instrumento convocatório estabeleça tal critério, certamente poderá ser impugnado, inclusive judicialmente, eis que estará eivado de inconstitucionalidade. E mais, a autoridade responsável pelo certame, indubitavelmente, poderá ser paciente em mandado de segurança, uma vez que, preenchidos os requisitos legais para a investidura em cargo ou emprego público, em caso de início das nomeações, nasce para o candidato o direito líquido e certo a ser nomeado, uma vez que estamos diante de ato vinculado da Administração Pública.

Diante de tais considerações, passemos agora a analisar a natureza jurídica dos interesses envolvidos no presente debate.

No que diz respeito aos cadastros restritivos de crédito, é imperioso registrar que estes são destinados a regular o fornecimento de crédito ao consumidor no mercado de consumo. Esse foi o meio encontrado pelos fornecedores de se protegerem dos consumidores inadimplentes, a fim de evitarem possíveis prejuízos à sua atividade empresarial. As relações de consumo, consoante disposições do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, são aquelas travadas entre consumidor e fornecedor, sendo de suma importância frisar, para fins de intelecção do proposto neste texto, que são relações estabelecidas entre particulares (destaquei). Portanto, são relações de direito privado, em que a intervenção estatal somente é admitida naqueles casos excepcionais em que a vulnerabilidade do consumidor perante o fornecedor que age abusivamente reclama a tutela do Estado.

Posto isto, conclui-se que as informações contidas nos cadastros de proteção ao crédito servem apenas como meio de consulta por parte das sociedades empresárias associadas, objetivando unicamente resguardar seus interesses empresariais. Salvo melhor juízo, não vislumbramos interesse público a ser tutelado com a utilização dessa espécie de cadastro para fins de se eliminar dos concursos públicos candidatos porventura negativados, sob pena de invasão da vida privada do indivíduo. A esse respeito, José Afonso da Silva discorre sobre a vida privada como sendo integrante da esfera íntima da pessoa, seu modo de ser e viver, partindo da constatação de que a vida das pessoas compreende dois aspectos: um voltado para o exterior e outro para o interior, sendo que, “a vida exterior, que envolve a pessoa nas relações sociais e nas atividades públicas, pode ser objeto das pesquisas e das divulgações de terceiros, porque é pública. A vida interior, que se debruça sobre a mesma pessoa, sobre os membros de sua família, sobre seus amigos, é a que integra o conceito de vida privada, inviolável nos termos da Constituição” (In Curso de Direito Constitucional Positivo, 14ª ed., São Paulo: Malheiros, pág. 204).

Outro aspecto importante sobre o qual se deve ponderar diz respeito à abusividade praticada na utilização dos cadastros de proteção ao crédito. O cotidiano forense nos permite constatar diariamente o ajuizamento de demandas envolvendo casos em que o consumidor se encontra negativado indevidamente, sendo bastante comuns (infelizmente) os casos em que o nome do consumidor é lançado em cadastros negativos de consumo, em decorrência da ação de estelionatários que, de alguma forma, se apoderam dos dados pessoais do consumidor, e com isso conseguem abrir contas bancárias, realizar compras pela internet, telefone, contratar o fornecimento de cartões de crédito, linhas telefônicas etc. Ou seja, os falsários atuam se aproveitando das facilidades de contratação proporcionada por fornecedores de produtos e serviços no mercado de consumo. Portanto, nem sempre as informações constantes dos bancos de dados dessa natureza são seguras e confiáveis, o que pode levar o Poder Público a cometer injustiças ao eliminar dos concursos públicos os candidatos cujos nomes constam em cadastros de inadimplentes.

Por fim, diante dos fundamentos alinhados, conclui-se que, do ponto de vista objetivo, a investigação da vida financeira dos candidatos a cargos e empregos públicos é irrelevante e ilegítima por parte do Poder Público porquanto as respectivas informações dizem respeito à vida privada do indivíduo, afigurando-se, portanto, critério subjetivo de avaliação, enquanto a ordem pública reclama um comportamento objetivo por parte de cada membro da sociedade, isto é, sua conduta conforme as exigências inerentes à coletividade.

Ninguém é pior que outrem por estar na situação de devedor, ressaltando-se, ainda, que grande parcela da nossa população enfrenta dificuldades financeiras, até mesmo em razão do abuso do poder econômico das grandes corporações, sendo fato notório que o próprio Estado assegura proteção aos grandes empresários, em detrimento dos direitos e garantias individuais elencados na Carta Republicana.

Perquirir a vida privada quando somente é admissível a investigação da vida pública é nada menos do que garantir a desigualdade perante a lei.


Vitor Vilela Guglinski. Vitor Vilela Guglinski é Advogado. Pós-graduado com especialização em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Ex-assessor jurídico da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora (MG). Autor colaborador dos principais periódicos jurídicos especializados do país. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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