Por Fernanda Martins - 06/08/2015
Ao reconhecer o direito como representação das demandas pessoais e coletivas, e reconhecê-lo com potencial transformador que a ele cabe como conceito possível, é conveniente questionar o que significa discutir a relação direito e existência concreta. Discutir tal relação é sair da (i)lógica dogmática e compreender o real a partir do que nós somos, ou seja, reconhecer que para o direito somos sujeitos que preenchem as hipóteses abstratas das leis. Sentir-se concreto é formular hipótese numa fundação de dor, existência, incoerência, amor, incompletude, saudade (...), e não pautada na noção de homem-médio, de igualdade plena e de um (im)possível livre-arbítrio. E a partir dessa incoerência contínua do que é existir no mundo que se parte a presente escrita.
Bartira Macedo de Miranda Santos em “Como escolher amantes – escrito proibido para pessoas feias, chatas e sérias” formula uma crítica a Benjamin Franklin e à sua forma reconhecidamente capitalista de encarar o mundo, quando analisa os fundamentos estabelecidos pelo autor para corroborar seu conselho de que ao escolher uma amante adequada, o homem deverá escolher as mais velhas, não as mais novas
Claro, a autora alerta que esse conselho e suas “razões” devem ser lidos no contexto da vida do autor e de seu tempo (1745). Contudo, minha primeira impressão sobre tais fundamentos é de que eles poderiam facilmente ter sido escritos hoje, que o discurso é claro nas linhas da opressão de gênero, da manutenção do patriarcado e da - eterna - objetificação feminina. Uma escolha. Escolher a amante. O objeto da estante.
Os fundamentos para preferir a mulher mais velha às mais novas são os seguintes: 1. Porque, por possuírem mais conhecimento do mundo, sua conversação é mais edificante e mais duradouramente agradável; 2. Porque, quando as mulheres deixam de ser formosas, procuram ser boas e compensam a diminuição da beleza com o aumento da utilidade. Aprendem a desempenhar mil tarefas, pequenas e grandes, e, caso adoeças, são mais gentis e amáveis. Portanto, difícil é existir uma mulher velha que não seja também uma boa mulher; 3. Porque não há o contratempo dos filhos que, irregularmente concebidos, podem acarretar grandes inconvenientes; 4. Porque, por serem mais experientes, são mais prudentes e discretas ao promover um caso amoroso, de modo a evitar suspeitas. O comércio com elas é mais seguro. Caso o affaire venha a ser conhecido, pessoas ponderadas tendem a desculpar uma mulher velha que, com gentileza, cuida de um homem jovem e evita que ele arruíne a sua saúde e a fortuna com prostitutas mercenárias; 5. Porque, em se cobrindo toda a parte de cima com uma cesta e considerando-se apenas aquilo que vem de baixo da cintura, é impossível que se distinga, entre duas mulheres, a velha da jovem. Além disso, como no escuro todos os gatos são pardos, o prazer ou deleite corpóreo com uma mulher velha é ao menos igual, e frequentemente superior, posto que a prática é capaz de aperfeiçoar toda destreza. 6. Porque o pecado é mais venial. A violação de uma virgem pode significar sua ruína e tornar-lhe a vida miserável; 7. Porque a compunção é menor. Tornar miserável uma jovem pode evocar-te amargas reflexões, nenhuma das quais seria associada ao ato de tornar feliz uma mulher madura; 8. Oitava e última: elas ficam tão gratas!
Todos argumentos são absolutamente repelíveis caso se faça a leitura, mesmo rasa, no contexto atual de libertação de gênero e conquistas feministas. No entanto, três deles serão objeto de reflexão, haja vista atingirem as mulheres de forma bastante cotidiana nos dias de hoje.
O primeiro deles é o de que as mulheres mais velhas são mais “recomendáveis” porque quando “deixam de ser formosas, procuram ser boas e compensam a diminuição da beleza com o aumento da utilidade. [...] Portanto, difícil é existir uma mulher velha que não seja também uma boa mulher.” O conceito de boa mulher nos persegue. É o conceito que nos condena. Condena a hipótese da escolha. É o termo que nos reprime ao âmbito privado e que nos permite somente ser escolhida, jamais escolher. A boa mulher é aquela que respeita a ordem instituída, é doce, benevolente, complacente com as dificuldades do bom esposo – evidentemente representante da categoria homem-médio cidadão de bem -, que foi escolhida para ser sua. Chama-nos a atenção, portanto, pensar que inclusive quando se aborda a condição de amante se pensa naquela que deve preencher os requisitos dos papeis representados pelos gêneros. Inclusive a amante deve ser a boa amante, deve ser a mulher honesta – por mais paradoxal que essa expressão possa parecer[1].
A amante como boa mulher e mero objeto de preencher “abstrações da lei” nos remete ao segundo ponto de reconhecimento do discurso machista contemporâneo, quando Benjamin Franklin diz que “em se cobrindo toda a parte de cima com uma cesta e considerando-se apenas aquilo que vem de baixo da cintura, é impossível que se distinga, entre duas mulheres, a velha da jovem. Além disso, como no escuro todos os gatos são pardos, o prazer ou deleite corpóreo com uma mulher velha é ao menos igual, e frequentemente superior, posto que a prática é capaz de aperfeiçoar toda destreza”. Pois, descobre-se voltando aos clássicos que “cobrir a parte de cima com uma cesta” pode ser então compreendido como a “old school” da reconhecida “Pequena Raimunda”, que cantavam os Raimundos nos anos 90. Isso consiste em dizer que se os “atributos estão em dia”, se “a noite todo gato é pardo” e o “buraco é mais embaixo”, o que importa?! O papel funcional da mulher fica devidamente cumprido, portanto, além de boa mulher, ela tem utilidade e – pasmem – é sexual.
E, por fim, além da mulher ser boa e útil, ela é grata! Ela será eternamente agradecida por ter tido um homem que a escolhesse como amante – na velhice -, porque senão ela seria infeliz, sozinha e mal amada. A gratidão é no discurso subterrâneo um aprisionamento contínuo das mulheres. É violência simbólica. É gratidão que aprisiona a mulher que denuncia o esposo pela violência recorrente e acoberta a cobrança desse esposo pela ingratidão de todas as “coisas que ele proporcionou a ela”. É a ingratidão da mulher que estigmatiza aquela que escolhe se autodeterminar, sair de casa e ser feliz sozinha – tão ingrata! “Como ela pode fazer isso? Ele foi o responsável pela felicidade dela até hoje.” A mulher que é grata ao seu homem[2] é a mulher que sabe o seu papel, é aquela que sabe se reconhecer como coadjuvante nas escolhas do outro e compreender que todas as suas conquistas são fruto da bondade de seu marido/companheiro/pai.
A mulher enquanto aquela a ser escolhida é aquela que não reconhece ser amante a partir de si, é aquela que não compreende que o ato de vontade parte da emancipação individual e do direito de decidir por e para si.
A mulher ideal, seja velha ou nova, moderna ou contemporânea, nos termos do patriarcado é a mulher boa, útil e grata, é enquadrar-se na noção da “mulher honesta” que possui honra a ser defendida pelo direito. É a oposição a La Donna Delinquente de Cesare Lombroso, oposição à prostituta e à criminosa. É aquela que mesmo quando amante respeita o determinado socialmente.
O controle sobre as consequências advindas do sexo (honra, gravidez, pornografia de vingança etc) “poderia ser, assim, parte da construção de uma vida sexual mais prazerosa e menos atada a convenções definidas pelas posições de poder e pelos interesses masculinos” [3]. Assim, conforme Mariana Goulart evidencia, a liberdade sexual é um tema que também atravessa o debate e que não deve ser abandonado por total, mas o que aqui se pretende estabelecer, sustenta-se, principalmente, em perceber os significantes do que é “escolher ser amante”.
Escolher ser amante é escolher se amar, é empoderar a si mesma, reconhecendo-se como aquela que possui a potência transformadora da decisão. É conquistar um espaço no qual a noção do que é uma boa amante, boa companheira, boa esposa, boa filha, supere o maniqueísmo do bem e do mal. E que supere, ainda, os conceitos pré-determinados e impostos como os propagados pelo direito machista, resguardados em códigos seculares conservados em formol.
É realizar que decidir ser amante significa discutir igualdade de gênero, pois a emancipação feminina e o direito de decidir sobre si mesma é uma relação tão conexa que atravessa a própria compreensão da liberdade como direito fundamental garantido pela Constituição. É, portanto, superar os papeis, é deixar de ser mera representante que preenche a abstração da norma, é viver o concreto e se permitir a inconstância da existência humana. É entregar-se a si mesma.
Notas e Referências:
[1] PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres falados: uma questão de classe. Florianópolis: Ed UFSC, 1998.
[2] No contexto machista da expressão elucidado por Benjamin Franklin e analisado a partir dos discursos de dominação.
[3]BIROLI, Flávia. O Debate sobre o aborto. In: BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e Política. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 123.
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Mestre em Teoria, Filosofia e História do Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Professora substituta na Universidade Federal de Santa Catarina e professora na Universidade do Vale do Itajaí. Professora e pesquisadora com ênfase na História do Direito, na Criminologia, no Direito Penal e Processual Penal.
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