Neste último texto sobre democracia – ver os anteriores aqui, aqui e aqui – falaremos sobre as costuras possíveis entre esta forma de organização social e política, originada na Grécia Clássica com contornos muito diferentes dos atuais, e a Constituição que, neste outubro, completou 35 anos. Para essas reflexões, saldo das discussões do Grupo de Pesquisa Teoria Crítica do Constitucionalismo (FDV-CNPq), partimos de duas premissas angulares. A primeira: pensar o Direito significa pensá-lo “no tempo”, porque, como conceito interpretativo que é, seus limites, instituições e sentidos são sempre e inevitavelmente construções históricas. A segunda: a democracia, mais que o regime que conta cabeças ao invés de cortá-las, institui uma espécie de forma de vida compartilhada.
Comecemos, então pelas imagens feitas de nossa democracia, muito antes do advento da Constituição, em 1988. Bem vão recordar esse momento, Lilia Schwarcz e Heloisa Starling – no já clássico Brasil, uma biografia – que a revogação dos poderes de exceção começa, na verdade, em 1975. O entendimento, sobretudo dos generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, mas não apenas, era de que chegara a hora de os militares abrirem mão do controle da presidência da República. Esse teria sido o pontapé inicial para que, entre fevereiro de 1987 e outubro de 1988 – período que marca a instalação da Assembleia Constituinte e a promulgação da Constituição Cidadã, como ficou conhecida nossa Carta Político-jurídica – o Congresso tenha se transformado no centro da vida pública de milhões de cidadãos. Veja-se, nesse sentido, que para a apresentação de mais de uma centena de emendas populares, foram coletadas mais de 12 milhões de assinaturas.
Essas reflexões e lembranças são significativas. Mostram não apenas como a instituição dessa “forma de vida” ocorreu com os brasileiros (e não somente para os brasileiros), mas, mais que isso, como sua arquitetura instituiu uma espécie de pacto social entre diversos setores, espelhado no seu conteúdo e nos objetivos da República: diminuir as desigualdades e erradicar a pobreza. Há mais de três décadas, esse foi o plano assinado por todos os partidos, transformando as “simples” intenções políticas do constitucionalismo como até então se conhecia em direitos efetivamente assegurados.
O avanço foi tremendo, e disso não temos dúvidas. Ocorre, entretanto, que a idealidade dos planos esbarra, muitas vezes, no chão duro em que essas mesmas proposições deveriam ser realizadas. Um exemplo? O limite bem visível imposto pelas cada vez mais sistemáticas crises do capitalismo e a concretização de direitos sociais para todos os cidadãos, num país continental e carente como o Brasil.
Por fim, mais que pessimismo, talvez exemplos como esse reforcem o pacto de 1988, tornando evidentes os desafios do constitucionalismo brasileiro no século XXI, bem vistos nos três textos anteriores a esse, resumidos em dois pontos: 1) frear a onda autocrática global, com reflexos por aqui; e 2) descomprimir o ambiente de polarização política, cujo saldo bate à nossa porta tanto com a marca indelével desse tempo, as fake news, quanto com a minimização do sistema de pesos e contrapesos entre Poderes. Intuímos – muito por isso – que a boa saúde de nossa democracia constitucional depende disso. Que venha o futuro.
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