Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto
Avançamos no nosso estudo sobre o Código de Processo Penal, dando sequência às nossas colunas anteriores.
Art. 3º-C. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código.
§1º Recebida a denúncia ou queixa, as questões pendentes serão decididas pelo juiz da instrução e julgamento.
§2º As decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz da instrução e julgamento, que, após o recebimento da denúncia ou queixa, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias.
§3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado.
§4º Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias.
O art. 3º-C, caput, do CPP, fixa a competência do juiz das garantias abrangendo todas as infrações penais, ressalvadas aquelas de menor potencial ofensivo. Portanto, em regra, todas as infrações devem ensejar a atuação do juiz das garantias. Isso é importante porque, além das infrações de menor potencial ofensivo, que provocam a incidência do chamado procedimento comum sumariíssimo, não há qualquer ressalva quanto aos procedimentos comuns sumário e ordinário, assim como não há qualquer ressalva quanto aos procedimentos especiais.
Convém lembrar que a lei processual não exclui o juiz das garantias nos casos de réu com prerrogativa da função, ou seja, mesmo que a denúncia ou a queixa-crime seja oferecida diretamente nos tribunais, deve ser observado o juiz das garantias. Ainda no período de vacatio legis da Lei 13964/19 – Pacote Anticrime, o Ministro Dias Toffoli, em 15 de janeiro de 2020, examinando três ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 6298, ADI 6299 e ADI 6300), proferiu interessante decisão liminar, na qual consignou o seu entendimento no sentido de afastar o juiz das garantias nos processos de competência originária dos tribunais, nos processos de competência do tribunal do júri, nos casos de violência doméstica e familiar e nos processos de competência da justiça eleitoral. A referida decisão foi revogada por decisão proferida pelo Ministro Luiz Fux, no dia 22 de janeiro de 2020, quando foram examinadas quatro ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 6298, ADI 6299, ADI 6300 e ADI 6305). Tivemos oportunidade de escrever um texto que abordou as duas decisões mencionadas[1].
Em verdade, a única ressalva expressa afastando o juiz das garantis refere-se às infrações de menor potencial ofensivo. O art. 98, I, da Constituição Federal, ao prever a criação dos Juizados Especiais Criminais, afirmou que a sua competência ficaria limitada às infrações de menor potencial ofensivo, mas não as definiu. A referida definição adveio com o art. 61, caput, da Lei 9099/95, que posteriormente teve a sua redação alterada pela Lei 11313/06, sendo certo que o mencionado dispositivo, atualmente, considera como infrações de menor potencial ofensivo as contravenções penais e os crimes com pena máxima não superior a 2 anos, sendo esse o parâmetro a ser adotado na Justiça Estadual. De outro lado, tratando da Justiça Federal, o art. 2º, parágrafo único, da Lei 10259/01, igualmente definia as infrações de menor potencial ofensivo como sendo os crimes com pena máxima até 2 anos. Tal dispositivo teve a sua redação alterada pela Lei 11313/06. Mas prevalece o parâmetro da pena máxima de 2 anos para a fixação da competência do Juizado Especial Criminal, seja na Justiça Estadual, seja na Justiça Federal. Não custa lembrar que a Justiça Estadual, que tem competência residual, também abrange as contravenções penais, o que não ocorre com a Justiça Federal, já que o art. 109 da Constituição Federal, que indica a sua competência, afasta expressamente as contravenções. Para ver a matéria ser tratada com maior profundidade, sugerimos a leitura do nosso livro que aborda o tema[2].
O art. 3º-C, caput, do CPP, na sua parte final, afirma que a competência do juiz das garantias cessa com o recebimento da denúncia ou da queixa-crime na forma do art. 399 deste Código. O fato de o legislador tratar o art. 399 do CPP como sendo o momento do recebimento da denúncia ou da queixa já foi objeto de nossas reflexões quando elaboramos os comentários a respeito do art. 3º-B, XIV, do CPP.
O ponto interessante a ser ressaltado com relação ao mencionado dispositivo diz respeito ao fato de cessar a competência do juiz das garantias. É conveniente lembrar que não se trata apenas de um registro do último ato processual que contou com a atuação do juiz das garantias. De fato, o art. 399 do CPP marca a divisão existente entre as atuações do juiz das garantais e do juiz da instrução e do julgamento.
Mas não se pode esquecer que o referido dispositivo prevê verdadeira causa de impedimento do juiz das garantias. Teria sido conveniente o legislador incluir um inciso no art. 252 do CPP, o qual estabelece as causas de impedimento registrando casos em que o juiz não poderá exercer a jurisdição. Também no momento agora em análise, o juiz não poderá mais atuar nos autos. No mundo ideal, um único juiz atuará como juiz das garantias, mas não se pode esquecer que existem investigações que duram anos e que os juízes se afastam de suas atividades por vários motivos, como férias e licenças. Isso permite que mais de um juiz atue em determinado caso como juiz das garantias. Mas o raciocínio será o mesmo. Se vários juízes atuarem como juiz das garantias, desde o início da investigação até a fase do art. 399 do CPP, todos eles estarão impedidos para atuar como juiz da instrução e julgamento. Pouco importa a qualidade de sua atuação, ou seja, ainda que o juiz sequer profira alguma decisão, limitando-se apenas a impulsionar os autos, determinando o seu envio ao Ministério Público, por exemplo, ainda assim, ele estará impedido para atuar como juiz da instrução e do julgamento, já que se presume que, com maior ou com menor profundidade, ele teve acesso às informações colhidas na fase investigatória.
O art. 3º-C, § 1º, do CPP, esclarece que, após o recebimento da denúncia ou da queixa-crime, a competência para todas as questões passa a ser do juiz da instrução e do julgamento. Cabe salientar que o ato jurisdicional que recebe a denúncia, com base no art. 396, caput, do CPP, e o ato jurisdicional que afasta as hipóteses de absolvição sumária, com base no art. 399, caput, do CPP, têm natureza de decisão interlocutória e, por consequência, se submetem ao princípio da motivação das decisões judiciais previsto no art. 93, IX, da Constituição Federal.
Todavia, prevalece o entendimento[3] segundo o qual as referidas decisões não impõem a exposição de motivação aprofundada, justamente para não antecipar o exame de mérito propriamente dito. Basta, portanto, que o juiz utilize fundamentação razoável, ainda que sucinta, para afastar as hipóteses de rejeição da denúncia e de absolvição sumária.
Além disso, o dispositivo em destaque, em sua parte final, ressalta que as questões pendentes são transferidas para a competência do juiz da instrução e do julgamento. A solução apresentada pelo legislador é a única possível. Não faria qualquer sentido ser mantida a competência do juiz das garantias para examinar algum pedido formulado antes do momento em que passa a atuar o juiz da instrução e do julgamento. Se, por exemplo, o Ministério Público requereu a realização de determinada diligência na fase investigatória que não chega a ser examinada pelo juiz das garantias, até mesmo por esquecimento, após a fase do art. 399, caput, do CPP, o pedido deverá ser examinado pelo juiz da instrução e do julgamento.
O art. 3º-C, § 2º, do CPP, dispõe que as decisões do juiz das garantias não vinculam o juiz da instrução e do julgamento. É preciso lembrar que não há qualquer relação de hierarquia entre os referidos juízes. Existe apenas uma separação das suas atuações porque, enquanto um juiz atua antes da fase do art. 399, caput, do CPP, o outro atua após a mencionada fase. Portanto, não faria sentido obrigar o juiz da instrução e do julgamento a manter os mesmos entendimentos do juiz das garantias. Aliás, há muito a doutrina[4] tem ensinado que a independência funcional é fundamental para atuação dos juízes.
O dispositivo sob análise, curiosamente, fixa o prazo de dez dias para o juiz da instrução e do julgamento reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso. O prazo referido serve para ordenar os trabalhos, mas a inércia do juiz da instrução e do julgamento neste sentido, na nossa avaliação, não provoca qualquer efeito prático, como a revogação tácita das medidas cautelares, por exemplo. Também não se pode sustentar que tais medidas se tornem ilegais diante da referida inércia. Nesse caso, deverá ser observada normalmente as decisões proferidas pelo juiz das garantias cujos efeitos extrapolarão a fase do art. 399, caput, do CPP. Trata-se de prazo impróprio, cujo desrespeito pode ter consequências de natureza disciplinar, mas não consequências de natureza processual.
O art. 3º-C, § 3º, do CPP, estabelece que, como regra, os autos nos quais atuou o juiz das garantias devem ficar acautelados em cartório, não devendo ser enviados ao juiz da instrução e do julgamento. A ideia é que o juiz da instrução e do julgamento não fique influenciado pelas informações obtidas na fase investigatória. Todavia, os autos ficam à disposição do Ministério Público e da defesa. Nada mais estranho. Isso porque o art. 231, caput, do CPP, permanece em vigor, ensinando que, salvo os casos expressos em lei, as partes poderão apresentar documentos em qualquer fase do processo. Portanto, a lei não veda que as partes levem aos autos sob a responsabilidade do juiz da instrução e do julgamento as cópias dos autos que ficaram acautelados na secretaria do juízo das garantias. Tivemos a oportunidade de examinar este dispositivo em texto específico[5].
Registre-se que os documentos relativos às provas irrepetíveis, as medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas devem ser enviados ao juiz da instrução e do julgamento para apensamento em apartado. O auto de exame cadavérico, por exemplo, é uma prova irrepetível em juízo, já que ninguém imagina que o corpo da vítima de homicídio consumado deva ser novamente examinado. A decisão que determinou a interceptação telefônica, por exemplo, deve ser mantida, já que destinada à obtenção de provas. Da mesma forma, devem ser mantidas as declarações de uma testemunha tomadas antecipadamente, desde que se confirme a necessidade da antecipação, ou seja, desde que seja inviável a sua nova oitiva. O apensamento em apartado determinado pelo legislador não se justifica. Estando tais provas nos autos principais ou em autos apartados, o juiz da instrução e do julgamento terá acesso às mesmas, de modo que não haveria problema maior se tais informações fossem encartadas nos autos principais.
Por fim, o art. 3º-C, § 4º, do CPP, apenas ratifica o seu parágrafo antecedente, na medida em que, em regra, os autos devem ficar acautelados no juízo das garantias à disposição do Ministério Público e da defesa, aos quais deve ser assegurado o amplo acesso na secretaria do juízo das garantias. Veja-se que uma interpretação literal sequer impediria que as partes retirassem tais autos da secretaria, mas não parece ser esta a ideia do legislador. Na nossa ótica, nada obsta que o Ministério Público retire os autos para consulta em seu gabinete, assim como nada impede que o defensor público os retire para consulta em seu gabinete ou que o advogado os retire para consulta em seu escritório. Nos juízos das garantias que trabalham com autos virtuais, esta consulta fica muito mais facilitada.
Notas e Referências
[1] COUTO, Ana Paula; COUTO, Marco. O pacote anticrime: as liminares dos Ministros Toffoli e Fux. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-pacote-anticrime-as-liminares-dos-ministros-toffoli-e-fux. Acesso em: 30 mar. 2020.
[2] COUTO, Ana Paula; COUTO, Marco; CHINI, Alexandre; FLEXA, Alexandre; ROCHA, Felippe Borring. Juizados especiais cíveis e criminais: Lei 9099/1995 comentada. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 318-328.https://emporiododireito.com.br/leitura/o-pacote-anticrime-as-liminares-dos-ministros-toffoli-e-fux
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 144.268/RJ, da 1ª Turma, Brasília, DF, 12 nov. 2019. Disponível em: 22 nov 2019. Acesso em: 29 mar. 2020.
[4] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Gral do Processo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 139.
[5] COUTO, Ana Paula; COUTO, Marco. O pacote anticrime: os “misteriosos” autos do juízo das garantias. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-pacote-anticrime-os-misteriosos-autos-do-juizo-das-garantias. Acesso em: 30 mar. 2020
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