Se a crítica à primeira alteração legislativa comentada se situa no campo da desnecessidade, a seguinte é mais severa e aponta um equívoco na criação do tipo.
O art. 155 do Código Penal, que descreve o crime de furto, foi criado para punir a subtração. Assim, seja na modalidade do caput, ou em qualquer dos parágrafos que tragam majorantes ou qualificadoras, o que se pretende é sancionar a conduta de quem subtrai (fisicamente retira, remove, pega, transporta, carrega, leva) uma coisa alheia móvel (objeto físico, apreensível, transportável). Há, em todos os casos, matéria, ou seja, um agregado de partículas que possuem massa – isso se aplica, inclusive, na subtração de energia elétrica (composta por prótons, nêutrons e elétrons, todos possuidores de massa). Na modalidade qualificada do “furto mediante fraude digital” (se é que o apelido jurídico será esse), essa regra é arbitrariamente quebrada.
Eis a nova redação:
§4º-B. A pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se o furto mediante fraude é cometido por meio de dispositivo eletrônico ou informático, conectado ou não à rede de computadores, com ou sem a violação de mecanismo de segurança ou a utilização de programa malicioso, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo.
Note-se que, ao fazer alusão ao “furto mediante fraude”, a redação típica está se aproveitando da base presente no art. 155, § 4º, II, CP, que, por sua vez, parte do mesmo verbo nuclear “subtrair”, presente no caput (até porque, em todo o dispositivo, não há qualquer outro). Pelas explicações tradicionais em nossa cultura jurídico-penal, o furto qualificado pela fraude se caracteriza pela subtração de coisa alheia móvel realizada por um agente que se serve de expediente enganoso para distrair a vítima, eliminando ou reduzindo sua vigilância sobre o objeto. Mas, veja-se: ainda assim, há uma subtração (o agente pega fisicamente a coisa, retira-a da posse do titular). Não há uma entrega física ou uma transferência documental por parte de vítima enganada pelos ardis e fraudes do agente (hipóteses que, bem sabemos, caracterizariam o estelionato – art. 171, CP).
Há furto mediante fraude, assim, na conduta do agente que, usando uniformes falsos de uma operadora de telefonia ou internet, consegue acesso à residência da vítima sob o pretexto de realizar reparos ou fazer upgrades, e se aproveita da distração ou da confiança equivocadamente depositada para subtrair (pegar, retirar, levar) coisas (objetos físicos) de valor patrimonial. De outro lado, não configuram furto mediante fraude as seguintes condutas: a) usar ou alterar dados (login e senha) de um correntista para, acessando eletronicamente sua conta, realizar transferência de valores nela creditados para alguma outra; b) invadir diretamente o sistema informático ou a rede da agência bancária para transferir valores de uma conta para outra; c) fazer compras ou pagamentos via internet por meio de dados de outra pessoa (número do cartão de crédito, chave PIX etc.). Há, em todos esses casos, estelionato, e logo diremos por quê.
O estelionato, em seu tipo básico (art. 171, caput, CP) se configura pela obtenção de vantagem econômica ilícita em prejuízo alheio, como resultado do emprego de fraude (enganação) ou algum ardil (dissimulação, falsificação etc.). É exatamente o que acontece: o agente “A”, passando-se pelo correntista “B”, engana a agência bancária “C” para que credite na conta “X” valores presentes na conta do segundo. A agência, seja por meio de um funcionário responsável, seja por seu sistema informatizado, reconhece a operação fraudulenta como válida e passa para a conta “X” os valores a que “A” nunca teve direito, em prejuízo e “B”, que sofre diminuição em seu saldo. O mesmo ocorre com as compras fraudulentas com cartões de crédito alheios: a loja, enganada, crê que o titular do cartão esteja a realizar a operação e debita em sua fatura o valor do objeto adquirido, que será entregue ao defraudador, constituindo seu proveito econômico indevido.
Há alguma subtração (retirada, apreensão, remoção) de coisa alheia móvel em quaisquer desses casos? Não. Primeiro, porque não foi o agente quem “pegou” a vantagem, aproveitando-se da distração causada pela fraude; foi a pessoa (física ou jurídica) iludida quem a transferiu ou a entregou. Segundo, e mais importante, porque nenhum objeto físico, composto por matéria, existente no mundo empírico, foi sequer apreendido, tocado, movido, retirado. É evidente: o valor existente em uma conta corrente ou conta poupança qualquer representa, apenas, um crédito. Não se trata de um dinheiro (cédulas e moedas) real, existente no mundo empírico. Ou será que a pessoa que vê em seu extrato bancário o saldo de R$ 10.000,00 encontrará, de fato, uma gavetinha repleta de notas com seu nome em um cofre de uma agência bancária qualquer? Os valores informados em extratos e demais consultas bancárias não se referem a dinheiro físico – que poderia, esse sim, ser apreendido, subtraído; referem-se a créditos, expressos em meio eletrônicos por combinações digitais binárias de “0” (zero) e “1” (um). Nem nós, nem os leitores, nem a personalidade mais rica do país possui em notas e moedas algo próximo do valor informado em seu extrato. Essa já é uma realidade creditícia virtual. Não há matéria. Há, apenas, dados.
Ilustrativamente falando, os valores em uma conta bancária não são mais do que combinações binárias como “001001001011010101” (R$ 10.435,78) ou “10010100101” (R$ 6.789,02). Quando o agente altera essa sequência, trocando “zeros” e “uns”, faz a agência bancária “acreditar” que os valores das contas a que se referem são outros. Em outras palavras, trocando um “0” ou um “1”, altero o crédito de uma conta de R$ 4,65 para R$ 4.650.000,00. Absolutamente nenhuma subtração (apreensão, transferência, transporte, retirada de substância composta por partículas que detêm massa).
Como os dados do mundo digital não constituem matéria, não possuem massa, tecnicamente falando, não podem ser subtraídos, mas apenas copiados, alterados ou apagados de um mundo virtual, composto de ideias, informações e conceitos. Por isso, a imensa maioria das situações em que alguém se servir de fraudes eletrônicas para obter vantagem econômica indevida em prejuízo alheio constituirá estelionato (atualmente, sob a modalidade da novel “fraude eletrônica” – art. 171, § 2º-A, CP). Um dispositivo já existente em nossa legislação cobre muito bem essa área, mas exclusivamente nos casos de condutas realizadas por funcionários públicos especificamente autorizados: trata-se do art. 313-A do Código Penal.[1] O servidor público que, mediante alteração de dados (novamente, troca de “0’s” e “1’s”), transfere valores de uma conta pública para contas “fantasmas” ou de terceiros (“laranjas”), realiza com justeza os elementos do tipo. Na inexistência de um equivalente que se situe fora do campo dos delitos funcionais (arts. 312 a 327, CP), o estelionato é o tipo penal adequado à punição de tais condutas.
Há, após tais considerações, pouquíssimas hipóteses de aplicação do dispositivo em comento (art. 155, § 4º-B, do CP). Elas se dão nos casos em que o agente usa fraude eletrônica não para transferir valores ou adquirir a titularidade de bens, mas para distrair a vítima ou desativar ou romper mecanismos de segurança para, aí sim, subtrair uma coisa alheia móvel (pegar carregar, levar, transportar um objeto composto por matéria e existente no mundo empírico). Por exemplo: invadir determinado sistema informático para abrir um cofre, ou para desativar um alarme, ou para interromper um videomonitoramento e, na sequência, apreender fisicamente o objeto alheio até então protegido. E, feita essa observação, não se trataria, na melhor dicção, de uma forma qualificada de furto mediante fraude, mas de uma forma qualificada de furto mediante rompimento de obstáculo.
O tipo expressamente dispensa a “violação de mecanismo de segurança”, e aí está o erro anteriormente apontado. Sem essa violação, consistente na ruptura do obstáculo para que o próprio agente pegue a coisa, a fraude acabará, pelo menos como regra, conduzindo ao estelionato, pois levará a vítima a entregar ou transferir um objeto de valor, ou a ceder crédito indevidamente em favor de alguém. O cabimento do tipo, fora os casos de violação de mecanismo de segurança, será exclusivamente em relação aos casos em que a fraude eletrônica consista em um elemento facilitador para a subtração. Por exemplo: se alguém consegue desligar a energia elétrica de um prédio ou uma casa remotamente, fazendo uso da escuridão para realizar a subtração, será punido nos termos da qualificadora, mesmo sem ter violado mecanismo de segurança (a energia elétrica não se encaixa no conceito, diferentemente de sistemas de detecção de movimento, alarmes, câmeras de vigilância, portas com travamento eletrônico etc.).
Inseriram-se novas majorantes, especificamente referentes ao § 4º-B, aqui comentado.
§4º-C. A pena prevista no § 4º-B deste artigo, considerada a relevância do resultado gravoso: I – aumenta-se de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se o crime é praticado mediante a utilização de servidor mantido fora do território nacional; II – aumenta-se de 1/3 (um terço) ao dobro, se o crime é praticado contra idoso ou vulnerável.
Como se vê, são duas novas causas de aumento de pena. Se ambas se fizerem presentes, o juiz pode determinar a dupla majoração. Mas pode (faculdade), nos termos do art. 68, § único, do CP, proceder à aplicação de uma única causa de aumento, desde que se valha daquela que promove a maior exasperação da pena.
Em ambos os casos, a ratio puniendi não é difícil de ser identificada. Na letra “a”, o fundamento da majoração está na constatação de um maior “poder de fogo” do agente, que dispõe de conhecimentos e/ou recursos para fazer uso dessa estratégia mais sofisticada de valer-se de servidores localizados em países estrangeiros. Outro ponto a se considerar é a especial dificuldade de investigação e responsabilização que pode decorrer dessa transnacionalidade. Na alínea “b”, o fundamento da majoração repousa na exploração da maior fragilidade das vítimas por parte do agente, o que torna a infração consideravelmente mais reprovável.
Fica, por fim, a crítica quanto à expressão “considerada a relevância do resultado gravoso”. À primeira vista, ela é redundante e desnecessária. Se não há relevância no resultado, a lesão deve ser considerada insignificante e o fato será materialmente atípico. A relevância do prejuízo causado é, portanto, um requisito até mesmo para o tipo básico. Para além dessa questão, a expressão é altamente enigmática e abre indisfarçável espaço para a característica seletividade penal presente em nosso sistema. Diante da total falta de parâmetros legais, a “relevância do resultado gravoso” será estabelecida por meio da mera opinião de cada juiz. A única maneira de aproveitar a expressão é interpretando-a de modo qualificado e benéfico para o acusado: somente se aplica a majoração se restar constatada a “especial relevância” do resultado, exigindo-se do julgador robusta fundamentação no sentido de caracterizar a maior gravidade do prejuízo causado.
Notas e Referências
[1] Art. 313-A. Inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção de dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas informatizados ou bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem ou para causar dano. Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.
Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações
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