Código Penal: uma Teoria Geral da Parte Especial? - Artigo em homenagem ao professor José Francisco de Faria Costa

16/10/2015

Por França Júnior - 16/10/2015

José Francisco de Faria Costa, é professor catedrático do curso de Direito da Universidade de Coimbra, autor de obras de relevo em Direito Penal, com especial predileção pelas discussões de teses dogmáticas, com forte influência no Brasil, onde possui diversos títulos de doutoramento honoris causa. Nossa apertada análise, por razões óbvias, não há de percorrer todos os caminhos pelos quais passou o prestigiado autor, mas apenas delinear uma de suas reflexões que, na nossa perspectiva, aponta uma espécie de “negligenciamento” de grande parte da doutrina penal clássica sobre a parte especial dos códigos.

Tal percurso terá por base, prioritariamente, o livro “Direito Penal Especial – contributo a uma sistematização dos problemas ‘especiais’ da Parte Especial”, lançado em 2004 pela Coimbra editora, que Faria Costa dedicou aos seus alunos e alunas, compartilhando agradecimentos com Dr. Alberto Medina de Seiça e as Doutoras Cristina Líbano Monteiro, Cláudia Santos e Susana Aires de Sousa. A intenção, portanto, a priori, é demonstrar a importância da parte especial do código penal na vida de todos nós. Afinal, é nela que estão as disposições que definem as infrações. É ela que, num primeiro momento, preocupa o “cidadão comum”, como dirá Faria Costa:

As determinantes que preocupam o comum dos cidadãos das nossas actuais sociedades prendem-se, quase exclusivamente, com a consciência do ilícito que cada um deles tem perante os diferentes tipos legais de crime definidos na PE [Parte Especial] e por certo que não com um qualquer problema doutrinal atinente, por exemplo, às teorias do erro, da comparticipação, da desistência da tentativa ou mesmo da medida da pena. (pág. 13)

Eis, como já se pode perceber, a importância de nos debruçarmos mais detidamente sobre os problemas que podem advir da parte especial. Nessa esteira, é ela, “muito mais do que uma sequência sem sentido ou anómala de tipos legais de crimes”, mas um “repositório dos valores e representações coletivas”, cuja estrutura e a organização são “profundamente sintomáticas até da hierarquia, enquanto expressão da densidade e importância relativa, dos valores penalmente relevantes” (pág. 14). Não à toa, nos países ditos democráticos, os crimes contra a vida inauguram a parte especial, como nos casos dos códigos brasileiro e português.

Antes de prosseguirmos, é preciso ressaltar que o germe do movimento de codificação foi semeado com afinco a partir do século XVIII, quando começou a se discutir mecanismos para dar uniformidade às ordenações. Era preciso reunir, organizar e sistematizar uma série de dispositivos que se destinavam a reger a vida das pessoas. Com Napoleão Bonaparte esse movimento parece ter atingido o seu auge, sem nos esquecermos, obviamente, de Savigny. No Brasil, em especial, é de se destacar nosso primeiro código criminal, datado de 1830, ainda sob o governo de D. Pedro I.

Como consequência de toda essa mobilização por codificação, a divisão entre parte geral e parte especial é colocada quase que como uma necessidade lógica. Como bem destacado por Faria Costa, de um lado, temos um arcabouço de normas gerais de imputação e validade, com conceitos que geralmente não pertencem ao legislador, mas à doutrina; do outro, temos normas que disciplinam comportamentos que se destinam a proteção de bens jurídicos (pág. 19). Há, tal como já anunciamos no início, certa preferência da doutrina clássica por elaboração de teses sobre a parte geral, desaguando naquilo que denominamos de “negligenciamento” da parte especial. Como lidar com isso? Seria com a elaboração de uma teoria geral da parte especial? Dirá o catedrático português:

Ora, se a PG [Parte Geral] não é totalmente una e harmónica, também a PE [Parte Especial] (por não ser absolutamente fragmentária) pode constituir objecto de uma reflexão que nela busque unidades de sentido e de conteúdo. Na verdade, nela se encontram áreas normativas com unidade suficiente para sobre elas se poder operar, não uma pretensiosa e descabida “teoria geral da parte especial”, mas mais modestamente, o estudo de um conjunto unitário de proposições e princípios relativos a áreas específicas da incriminação.

Assim, não há necessidade de uma “teoria geral”, mas uma análise conjuntural das mais variadas normas albergadas na parte especial. Apesar de se constituir de bens e valores diversos, há sempre uma lógica que mantém o sistema dentro das regras da coerência. Ademais, ambas as partes do código se tensionam, fecundam-se, complementam-se, devendo, portanto, continuamente dialogarem. Daí que, nessa perspectiva, também é preciso voltar o olhar para as questões complexas que dizem respeito ao manuseio do sistema criminal através da parte especial.

Uma dessas questões, segundo aponta nosso autor, está justamente vinculada à principal função do Direito Penal, ou seja, à tarefa de proteger bens jurídicos. É necessário questionar, por exemplo, “Que bens jurídicos são esses que através do direito penal pretendemos proteger? [...] quais são, tendo em conta a função do direito penal, os bens jurídicos que podem legitimamente ser tutelados” (pág. 28). Afinal, na esteira do respeito aos valores democráticos, quais são os critérios (político-jurídico-criminal-social) definidores de tais bens?

Essa, frise-se, é uma outra discussão. Tão importante quanto, mas, ainda mais complexa e demorada do que aquela que travamos há pouco. Por ora, não nos convém tratá-la, sobretudo por ultrapassar o objetivo lançado inicialmente, ou seja, se seria necessário criarmos uma “teoria geral da parte especial”. Já vimos que não, muito embora haja necessidade de para ela olhar com mais cuidado e dedicação.

Parece-nos óbvio, por fim, que uma homenagem ao professor José Francisco de Faria Costa merecesse muito mais do que um artigo com “linhas gerais” sobre um determinado tema. Mas, de toda forma, lancei-me ao atrevimento por uma simples razão: a inspiração buscada no também português, de igual modo com raízes em Coimbra, Luís de Camões. O poeta nos dirá, em um de seus célebres sonetos (CXXXII): “[...] Atrever-se é valor e não loucura; Perderá por covarde o venturoso / Que vos vê, se os temores não remove”. Removi-os, portanto, não me acovardei... Eis a singela homenagem.


França Junior

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França Júnior é Advogado criminalista, professor de Direito Penal, mestrando em Direito pela Universidade de Coimbra, especialista em Psicologia Jurídica e em Ciências Criminais, pesquisador vinculado ao CNPQ, coordenador adjunto do laboratório do IBCCRIM em Alagoas. Contato: francajuniordireito@gmail.com

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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