Cinemas e teatros não podem impedir consumo de produtos comprados em outros locais?

01/07/2016

Por Débora Costa Ferreira – 01/07/2016

Mary Ann Glendon[1], já em 1991, denunciou o esquizofrênico processo em que as sociedades ocidentais pós-modernas adentravam, no qual o discurso dos direitos interpenetrava todos os setores da sociedade, promovendo a irrealista sensação de que todos os direitos fundamentais dos cidadãos, sobretudo dos mais vulneráveis, estavam sendo levados a sério, como trunfos frente aos discursos políticos utilitaristas da maioria[2]. Todos os grupos sociais organizados se mobilizavam para pleitear no Poder Judiciário o reconhecimento dos seus direitos fundamentais, trazendo à tona aquela velha esperança de se estar construindo uma sociedade melhor e mais justa, por meio do bom funcionamento do papel contramajoritário das cortes, que indubitavelmente garantiria o tratamento com igual consideração e respeito a todos.

Ocorre que em uma sociedade em que os direitos são distribuídos banalmente com o ímpeto de promover a sua máxima fruição, sem a respectiva consideração dos deveres, dos custos e das consequências dessas decisões, a proteção inicialmente buscada resta fragilizada pela facticidade das relações sociais[3]. Desse modo, a lógica maniqueísta do “winner takes all” na disputa judicial entre “desprivilegiados” e “privilegiados” acaba por interromper de forma abrupta o diálogo e a comunicação discursiva racional, adequados às contingências e complexidades de uma república pluralista[4]. Ela carrega a eterna ilusão do paternalismo estatal que impede a maturação da convivência democrática, o processo de erro e aprendizagem na interrelação entre indivíduos, instituições e grupos sociais[5], instalando, pelo contrário, um conflito social decorrente dessas clivagens e dos prejuízos não antecipados pelas cortes para ambos os envolvidos.

O caso da regulação do mercado é paradigmático para explicitar essa situação. O art. 170 da Constituição Federal de 1988 dispõe que “a intervenção do Estado na ordem econômica, fundada na livre iniciativa, deve observar os princípios do direito do consumidor, objeto de tutela constitucional fundamental especial (CF, arts. 170 e 5o, XXXII). Assim, a livre iniciativa pode atuar até o ponto em que não incida em abusos aos direitos do consumidor, regulados pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90).

Sobre o tema, em 2007, foi colocado ao crivo do Superior Tribunal de Justiça, por meio do REsp nº 744.602/RJ, o questionamento quanto à possibilidade de cinemas e teatros proibirem o consumo de produtos alimentícios adquiridos em outros estabelecimentos. Nessa oportunidade, a corte decidiu pela vedação desse tipo de proibição, fundamentando-se na ofensa ao princípio da liberdade de escolha do consumidor (art. 6o, II, CDC), uma vez que a situação configuraria a prática abusiva denominada de venda casada, constante do art. 39, I, do CDC.

Analisando-se mais a fundo o caso, observa-se que ele não se enquadra na definição de venda casada, porquanto essa requer que para o consumo do primeiro bem ou serviço (no caso, a transmissão do filme ou da peça) seja condicionado ao consumo do segundo (os produtos alimentícios do estabelecimento)[6]. Ora, só é possível assistir ao filme no cinema se comprar a pipoca e o refrigerante? Se essa proibição desagrada ao consumidor, não seria razoável que ele deixasse de frequentar esse estabelecimento para assistir filmes em outros? Onde está a ofensa à livre escolha do consumidor nessa situação?  A superioridade econômica ou técnica do fornecedor realmente estabeleceu por via oblíqua uma prática abusiva a ponto de retirar do consumidor sua capacidade de escolha?

A lógica do mercado –  aceita e incorporada à ordem constitucional econômica, cujo fundamento é o princípio da livre iniciativa (arts. 1º, IV; 5º, XIII; 170, caput, da CF/88) – requer que os fornecedores e os consumidores possam dar e receber sinalizações quanto à satisfação do bem ou serviço que está sendo oferecido, para que as reações do mercado sejam eficientes e precisas. A suposta defesa à vulnerabilidade do consumidor não pode impedir que ele tenha a possibilidade de demonstrar seu descontentamento pelas regras estabelecidas pelo estabelecimento, o que é indispensável para o bom funcionamento da livre concorrência. Isso porque é por meio das oscilações da demanda que as empresas estruturam seu modelo de negócios e formam seus preços, respondendo geralmente com inovações e melhorias às quedas na demanda pela insatisfação com os produtos, com vistas a estabelecer a melhor tática para maximizar seus lucros e para sobreviver no mercado.

O que não pode ser admitido em uma economia de mercado é a regulação heterônoma – sobretudo proveniente do Poder Judiciário, que não possui conhecimento técnico sobre tais questões – que desestrutura o sistema de formação de preços das empresas repentinamente e desmobiliza o poder de reação do consumidor, por situações que não ferem seu direito de livre escolha[7]. Regulações excessivamente protecionistas, de um lado, desincentivam o desenvolvimento de consumidores conscientes e convictos de seu papel nessa interrelação e, por outro, induzem os estabelecimentos a realocarem suas fontes de receita para o preço final dos bens, para conseguirem cobrir seus custos, sob pena de sair do mercado. Isso prejudica, no final das contas, todos os consumidores.

No caso dos cinemas, esse prejuízo possui proporções ainda maiores, uma vez que as receitas que seriam obtidas com o consumo voluntário dos itens externos de bomboniere passam a ter que derivar das receitas das vendas dos ingressos, existindo somente duas formas de reequilibrar as contas: pelo aumento do preço dos ingressos ou pelo cancelamento de transmissão de filmes e realização de peças de menor popularidade e audiência (menos comerciais). Desse modo, a oferta de bens e serviços culturais resta reduzida para sociedade como um todo, com consequente perda de bem-estar social.

Quantos estabelecimentos culturais, como casas de show, não adotam essa estratégia de mercado de proibição de consumo de produtos externos? Isso ocorre porque em se tratando de bens e serviços de cultura incide a falha de mercado denominada “externalidade positiva”, em que o benefício social é maior que o benefício individual do ofertante, o que impede que a oferta se dê na proporção da demanda, porque o fornecedor não consegue internalizar todo a utilidade social. Tais distorções são amenizadas, na maior parte das vezes, por meio de subsídios ou, se não houver acesso a essa opção, pela busca de receitas complementares com a tática da “tarifa em duas partes”, na qual os custos do produto principal são diluídos nos demais bens e serviços comercializados[8]. Ressalte-se ainda que a alta elasticidade dos bens culturais faz com que eles sejam menos demandados em tempos de restrições orçamentárias dos consumidores, como no atual momento de crise que se atravessa[9].

Diante de todos esses fatores, a possibilidade de proibição de entrada de produtos externos em cinemas e teatros pode ser uma estratégia de sobrevivência de tais empresas no mercado, a depender das especificidades do negócio, diante da possibilidade da captura, na maior medida possível, do excedente do consumidor – diferença entre o preço que o consumidor está disposto a pagar e o preço de venda –, o que contribui para o alcance de de maior eficiência possível[10]. Restringir essa possibilidade, portanto, não se trata de regulação razoável.

Desse modo, conclui-se que a retórica da proteção máxima dos direitos dos consumidores, infiltrada de ideologias paternalistas, terminou, nesse caso, por prejudicar o status quo anterior desses consumidores e da sociedade como um todo, por não terem sido vislumbrados, no momento da decisão, os deveres, custos e consequências envolvidas na intervenção judicial; e pela obstrução dos mecanismos de livre acomodação do mercado e de inovações e melhorias.

Enquanto as decisões judiciais, sobretudo os precedentes das instâncias superiores, não compreenderem que a regulação heterônoma das relações privadas necessita de um olhar cuidadoso e responsável com relação às consequências que essas intervenções possam gerar, com o mero afã de efetivar direitos fundamentais dos vulneráveis, as suas distorções continuarão afinal prejudicando os próprios destinatários da proteção e a sociedade como um todo. Assim, a efetivação dos direitos fundamentais só pode ser compreendida dentro do seu contexto jurídico, econômico e social.


Notas e Referências:

[1] GLENDON, Mary Ann. Rights Talk – The impoverishment of political discourse. New York: free Press, 1991, p. 1-17.

[2] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 127-203 (Casos Difíceis).

[3] KENNEDY, Duncan. Rights in American Legal Consciousness. In: KENNEDY, Duncan. A critique of Adjudication (Fin de Siècle). Harvard: Harvard University Press, 1998, pp. 299-314. GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos do Direito: Direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,2005.

[4] GLENDON, 1991.

[5] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e validade I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: 1997, pp. 113-168.

[6] GARCIA. Leonardo de Medeiros Garcia. Direito do Consumidor: Código comentado e jurisprudência. Salvador: juspodivum, 2015, p. 317.

[7] VARIAN, Hal R. Microeconomia: princípios básicos. 10ª ed.Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.

[8] BAUMOL, Willian; BOWEN, Willian. Performing Arts, Economic Dillema, 1966.

[9] BECKER, Gary. Human Capital, 1964.

[10] A eficiência do Mercado é alcançada quando a alocação dos recursos maximiza o excedente total. VARIAN, Hal R. Microeconomia: princípios básicos. 10ª ed.Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.


Débora Costa Ferreira. Débora Costa Ferreira possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2014) e graduação em Ciências Econômicas pela Universidade de Brasília (2014). Tem especialização na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional (2015). Mestrado em Direito Constitucional em andamento. .


Imagem Ilustrativa do Post: 4 - January 28, 2014 - Movie Night // Foto de: Dustin O'Donnell // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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