“Cidadão de bem” e a etiqueta penal: duas faces do mesmo engano

15/03/2017

Por Savio Rangel Santiago - 15/03/2017

É verdade que o “cidadão bem” lincha para fazer justiça? É verdade que o “cidadão de bem” também furta e tenta se “beneficiar” do “Código Penal desatualizado” quando é filmado em plena luz do dia ou “compartilhado” nas redes sociais? É verdade que existem seguranças de lojas e supermercados que ao invés de levar casos de pequenos furtos às autoridades preferem “liberar” determinados “ladrões” após uma tormenta de socos e pontapés? É bem verdade, infelizmente. Hoje a frenética onda de violência é copycat que contagia uma sociedade do macro e do micro espetáculo. Precisamos cotidianamente de “alguém no limbo”, expiação diária para purificar nossas mentes de “pessoas de bem”.

O “cidadão de bem” que faz isso não o faz em um simples “caso isolado”. Para entender esse cenário é necessário um olhar mais apurado e que considere o estado de potência da violência bruta, a violência latente aprendida e modelada em doses progressivas de ruptura, descrença e “anomia”. E é nesse ponto que precisamos ainda mais dos rótulos. Diria um psicanalista que se trata de uma racionalização de nossos fracassos em admitir certas obscuridades dantescas em nosso inferno pessoal.

Ao longo da história humana sempre existiu a questão dos rótulos ou etiquetas, as quais serviam para discriminar aqueles indivíduos com o sinal do desprezo, da barbaridade, da torpeza, da repulsa e do ostracismo.

Historicamente, o rótulo possuiu uma dupla função social: critério afirmativo e critério negativo na composição dos valores de uma determinada sociedade ou cultura. Serviria para identificar os indivíduos pertencentes a um determinado grupo, por exclusão, ao mesmo tempo, subjugar o não pertencimento de um indivíduo ou grupo social ao grupo dominante.

É muito comum observar, seja nos discursos informais do dia a dia, seja no ambiente de feira livre, ou nos holofotes midiáticos, nas redes sociais, a autoafirmação do ‘homem médio’: “ sou cidadão de bem”, “sou pessoa de bem”, representando socialmente a matriz de um pensamento bem primitivamente molecular: a de que existe o bem e o mal e o Mundo é consequência disso tudo.

Chega a ser curioso que pontuando tal representação social, ou seja, a de que existe o “nós”, cidadãos exemplares que pagamos impostos e “visitamos a igreja” e o “eles”, pessoas más, que representam perigo para a paz social, é possível nos perguntar: mas onde estão os “bárbaros”? Sim, eles mesmos, os bárbaros dos antigos gregos. E muito provavelmente ainda estão aqui!

A pergunta não é meramente retórica e nem pretende criticar quem se auto intitula “pessoa de bem”, penso que todos devam realmente se expressar como bem entendem, mas cabe a reflexão de que se somos apenas uma decorrência do bem e do mal, no que nos diferíamos dos gregos quando discriminavam os bárbaros? Das bruxas quando perseguidas pelo “opus dei”? Dos infiéis quando na Cruzada pelos templários? Nossa sociedade, no advento da copiosa “pós-verdade compartilhada”, evoluiu mesmo? Questiona-se.

É bem verdade que alguns usam os rótulos para se sentirem “mais limpos” que os outros e assim justificam toda a segregação sistêmica que, antes de tudo, começa em nossa base internalista, em nosso preconceito. É bem assim que o “cidadão de bem” é um perene estado de dissonância cognitiva, pois ao afastar a quimera hostilizada pela sua moral, potencializa qualquer investimento macabro para realizar o extermínio dos seus “bárbaros” diários e estereotipados. Exemplo disso? Que tal a cena de uma mulher negra sendo torturada por seguranças de uma rede de supermercados? Então, a mulher, em tese cometendo o crime de furto (famélico), é hostilizada, humilhada na frente de câmeras e agredida sistematicamente com tapas no rosto e na cabeça como postura exemplificativa do “cidadão de bem” e recado para os futuros objetos de sua tormenta. A violência é estratosfericamente pornográfica!

Em uma ligeira análise jurídica, poderíamos enquadrar a conduta da mulher agredida como furto famélico, o que nem crime é considerado, posto haver em tese estado de necessidade, portanto exclusão de ilicitude, mas e a conduta dos seus agressores¿ Poderia ser subsumida inclusive ao que prescreve a lei de tortura e ambos poderiam pegar até oito anos de cadeia, consoante o disposto no art. 1º, II, a daquele diploma penal.

Agora, suponhamos que a mesma mulher tenha subtraído, sem violência, qualquer outro produto, inclusive para obter vantagem econômica, seria o furto simples com as penas previstas no 155 do CP, que poderiam chegar a no máximo quatro anos. Mesmo assim, a de seus espetaculares algozes, “cidadãos de bem”, ainda seria muito mais grave e do ponto de vista do Direito e até mesmo da moral, pois pegariam a já mencionada pena e a agressão ainda repercutiria no âmbito civil como dano moral e material pelas lesões sofridas. Ou seja, a violência do “homem de bem” também é um estado de potência, muitas vezes muito mais perigoso do que as do estereotipado que servem de fonte de purificação  e expiação do “homem médio”. Muitas vezes, esse mediano homem não busca uma sociedade melhor, pelo contrário, busca apenas justificar suas atrocidades.

É nesse sentido que quando falamos sobre a violência e criminalidade em uma visão bem rasteira, sem complexidade, e apenas reproduzindo a aceitação em escala industrial dos famigerados órgãos da “opinião publicada”, precisamos de um discurso que ao menos legitime a reprodução desse “estado de coisas”. Sobre isso Zaffaronni (2012) nos alerta que a representação social de que estamos em um “estado de guerra”, “guerra contra as drogas”, “guerra contra o crime”, “guerra contra os homens maus” é o artificio ideológico que antagoniza e legitima a dualidade do “nós” e “eles”, racionalizando o maniqueísmo da prática discursiva. Entretanto, em tempos de direito penal máximo, a linha entre o respeitável “cidadão de bem” e o “delinquente contumaz” está cada vez mais tênue e, muito ao contrário do que pensa a vã consciência do homem médio, está cada vez mais difícil desacelerar a etiqueta secundária dos processos de criminalização seja para os “bons” ou para os “maus”.

Dentre todas as espécies de rótulos sociais ou de origem cultural, a etiqueta formal da criminalização de condutas possui consequências das mais devastadores para uma pessoa. O rótulo estatal traz uma carga simbólica que se depreende das abstrações comportamentais vedadas. Há aqui um gravame à dignidade da pessoa que envolve o imaginário social e as reproduções quase que autopoiética acerca de seu potencial risco à vida, honra ou patrimônio dos outros indivíduos. Em outras palavras, o indivíduo criminalmente rotulado, possui dois rótulos: o legalmente previsto (criminalização primária) e o socialmente estigmatizado (criminalização secundária), tornando-o potencial objeto da  demanda de criminalização - seletividade.

Como se observa, uma das consequências inexoráveis desse processo de estigmatização é a seletividade do sistema persecutório que se instalará como um craca no indivíduo, muitas vezes atingindo inclusive seus familiares.  Dizia mais uma vez o mestre Zaffaroni, o processo de criminalização secundária também buscará nos “semelhantes” o objeto de sua estigmatização e extermínio.

Foram muitas adjetivações no sentido de estigmatizar aqueles que de alguma forma violavam regras de conduta, as leis ou a moral, sendo que a história das etiquetas se confunde com a história do Poder no exercício arbitrário de rotular os inimigos, os indivíduos que deveriam guardar para sempre a marca indelével do mal. Dessa forma, fabricaram-se os bárbaros, os ímpios, os hereges, os pagãos, os comunistas, os terroristas e os hediondos.

De acordo com Pessotti (1994) e Gomes e Almeida (2013), o próprio Malleus Maleficarum, o famoso livro das bruxas, foi um reflexo cabal das investidas tirânicas do Poder no estabelecimento de estigmas e rótulos que mudam e se adequam às formas de dominação em cada contexto histórico.

Na base dos rótulos, há indiscutivelmente uma representação imagética da conduta e do próprio indivíduo. Essa assertiva pode ser comprovada pela produção daquilo que os autores chamam de direito penal do autor, revelando que não é o crime enquanto fato que deve ser combatido e prevenido, mas sim os indivíduos potencialmente criminosos, os “lombroseanos” natos, os “homens maus” por natureza, que podem a qualquer tempo fabricar novas vítimas.

A teoria do etiquetamento (Labelling approach), serve à explicação de como os estigmas sociais e institucionais fortalecem processo de exclusão que fazem parte da seletividade do sistema repressor em qualquer nível de abordagem (criminalização primária, secundária, execução da pena, ressocialização etc.). Há autores inclusive que defendem não existirem crimes, mas sim processos de criminalização em virtude da vulnerabilidade de certos grupos sociais estigmatizados, os quais são alvos das demandas de criminalização secundária.

Há uma dupla atuação que confirma a teoria do etiquetamento: no que concerne às agências oficiais de controle (Polícias, MP, Judiciário,), e às agências de controle informal (a escola, a opinião pública, a religião e principalmente a mídia). No primeiro grupo, a Lei, ou melhor a ruptura dela, é a parte visível da rotulação do indivíduo desviante e a função simbólica da persecução, seja ele legal ou arbitrária, pouco importa para as consequências mais nefastas na vida de qualquer indivíduo, sobretudo os mais miseráveis e vulneráveis.

No segundo, é a atuação das agências de controle social informal em processos de criminalização secundária, que imprimem no sujeito desviante uma carga valorativa, que possibilita “desencadear a reação social, o comportamento deve ser capaz de perturbar a percepção habitual da routine, da ‘realidade tomada-por-dada’ (taked-for granted reality), ou seja, que suscita, entre as pessoas implicadas, indignação moral, embaraço, irritação, sentimento de culpa e outros sentimentos análogos.” (BARATTA, 2002, p. 87). Aqui a condição de miserabilidade e vulnerabilidade é concorrente para a atuação estatal criminalizante.

Penteado Filho (2012) defende a ideia de que o criminoso apenas se diferencia do homem comum em razão do estigma que sofre e do rótulo que recebe. A incidência de um estigma tem o condão de potencializar construções imagéticas sobre o indivíduo, que ultrapassam a compreensão material dos fatos, repercutindo assim na elaboração de uma internalização da consciência coletiva e na produção de ideias e representações potencialmente ideológicas. Ainda que inocentado, aquele indivíduo que foi tocado pelo rótulo da persecução criminal, dificilmente consegue renovar-se como pessoa.

Por fim, chega-se à conclusão de que a autoafirmação do “cidadão de bem” tem o condão de reforçar sistemas simbólicos de criminalização secundária, imprimindo nos indivíduos não apenas rótulos criminais indeléveis e demais consequências de semelhança que visam legitimar os processos de criminalização de contingente miserável e vulnerável ao estereotipo, mas, principalmente, por também envolver um pacto social da dissonância da ideia de justiça, sobretudo a que ocorre sem as mediações institucionais, portanto, diretamente, sem processo, na velocidade da superinformação.

Há quem chame isso de elemento de identificação, auto pertencimento, solidariedade e pacificação social (só se for do teratológico).


Notas e Referências: 

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. 

GOMES, Luiz Flávio; ALMEIDA, Débora de Souza de. Populismo Penal Midiático: Caso Mensalão, Mídia Disruptiva e Direito Penal Crítico. São Paulo: Saraiva, 2013. 

PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual esquemático de criminologia. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 

PESSOTI, Isaias. A Loucura e as Épocas. Rio de Janeiro: Editora 34, 2 eds. 1997. 

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Palavra dos Mortos: Conferências de Criminologia Cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012.


Savio Rangel Santiago. . Savio Rangel Santiago é Psicólogo e Advogado criminalista, pós-graduando em Direito Público e Direito Penal pela Estácio-Cers 2016-2017. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Desdobramento // Foto de: Daniel Zanini H. // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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