Por Thiago Freitas - 19/10/2016
1.1 A Microempresa e a Empresa de Pequeno Porte: aspectos que demonstram sua importância social e econômica no contexto brasileiro.
Na semana passada, mais especificamente no dia 05 de outubro, celebrou-se o dia da Micro e Pequena Empresa, mas nem tudo são motivos para comemoração.
Em que pese os grandes avanços garantidos a partir da edição da Lei Complementar nº 123 de 14 de dezembro de 2006— o Estatuto das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte –, que garantiu um sistema de tratamento diferenciado e favorecido nos âmbitos tributário, previdenciário e administrativo, nem todos os benefícios previstos nesta legislação foram efetivamente implementados.
Talvez o melhor exemplo dessa situação seja a Cédula de Crédito Microempresarial, que é regida pelo artigo 46 do referido Estatuto:
Art. 46. A microempresa e a empresa de pequeno porte titular de direitos creditórios decorrentes de empenhos liquidados por órgãos e entidades da União, Estados, Distrito Federal e Município não pagos em até 30 (trinta) dias contados da data de liquidação poderão emitir cédula de crédito microempresarial.
Parágrafo único. A cédula de crédito microempresarial é título de crédito regido, subsidiariamente, pela legislação prevista para as cédulas de crédito comercial, tendo como lastro o empenho do poder público, cabendo ao Poder Executivo sua regulamentação no prazo de 180 (cento e oitenta) dias a contar da publicação desta Lei Complementar. (Revogado pela Lei Complementar nº 147, de 2014)
A despeito do Estatuto das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte ter sido editado há quase uma década, até hoje a cédula de crédito microempresarial ainda não foi regulamentada. Na redação original, que foi revogada em 2014, do parágrafo único do art. 46, o título de crédito deveria ter sido implementado via regulamentação 180 dias após a publicação da Lei.
Até agora segue a cédula de crédito microempresarial como uma promessa não cumprida.
Mas qual é a potencial importância jurídica e econômica deste título de crédito para essas empresas?
Para responder a esta pergunta é necessário fazer uma pequena digressão acerca da importância das micro e pequenas empresas, tanto para a economia brasileira, quanto para nosso mercado laboral e contexto social.
No que tange à importância econômica, segundo dados de 2011, mais de 99% das empresas do Brasil são microempresas e empresas de pequeno porte. Elas empregam em torno da metade dos trabalhadores em atividade econômica, a despeito de faturarem apenas 27% do Produto Interno Bruto do País[1].
Quanto à relação com o mercado laboral e ao contexto social, estudo do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), mais de metade dos empregos com carteira assinada no Brasil são empregados de micro e pequenas empresas[2]. A taxa de sobrevivência das microempresas e empresas de pequeno porte no período de 2 anos, para as empresas constituídas em 2006 foi de 73,1%, ou seja, muitas dessas empresas tem um período de vida muito curto[3].
Com a falência ou a saída das microempresas e das empresas de pequeno porte do mercado os trabalhadores perdem seus empregos e, muitas vezes, batem às portas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e, via de regra, passam a utilizar o seguro desemprego, ou seja, a taxa de mortalidade dessas empresas tem um aspecto social e econômico extremamente acentuado.
Ante o exposto, restou claro que as microempresas e as empresas de pequeno porte são de vital importância para a economia e a sociedade brasileira e devem receber fomento estatal, inclusive em virtude de dispositivo constitucional (art. 179).
1.2 O que é a Cédula de Crédito Microempresarial?
Antes de adentrar especificamente no assunto da cédula de crédito microempresarial é importante entender o contexto das fases da despesa pública, pois o título de crédito esta intimamente vinculado a elas.
O professor Heilio Kohama assim conceitua a despesa pública:
Constituem Despesa Pública os gastos fixados em lei orçamentária ou em leis especiais e destinadas à execução dos serviços públicos e dos aumentos patrimoniais; à satisfação dos compromissos da dívida pública; ou ainda à restituição de importâncias a título de cauções, depósitos, consignações, etc[4].
Em suma, as despesas públicas são os dispêndios estatais que são feitos com o intuito de suprir os gastos que a Administração Pública tem com a sua gestão dos serviços públicos, com outros gastos oriundos de imposição constitucional ou legal (dívida pública, repartição das receitas tributárias, etc.) bem como com o dinheiro de terceiros que por diversos motivos transitaram pelos cofres públicos (restituição de importâncias a título de cauções, depósitos, consignações, etc.).
A despesa pública é regulada pelos artigos 58 a 70 da Lei nº 4.320/64 e caracteriza-se por ter 3 fases distintas, a saber: 1) empenho, 2) liquidação e 3) pagamento.
J. Teixeira Machado Jr. e Heraldo da Costa Reis lembram em sua obra denominada “A Lei nº 4.320/64 comentada” que a Comissão de Reforma que foi instituída em 1969 para propor alterações nessa Lei elaborou excelente definição do conceito de empenho. Para ela: “Empenho de despesa é o ato de autoridade competente que vincula dotação de créditos orçamentários para pagamento de obrigação decorrente de lei, contrato, acordou ou ajuste, obedecidas as condições estabelecidas”[5].
A segunda fase da despesa pública, a liquidação, é regulada pelo art. 63 da referida Lei e consiste na verificação do direito adquirido pelo credor, tendo como base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito, ou seja, é a manifestação da Administração Pública que tem por objetivo apurar a origem e o objeto que deve ser pago, o quantitativo financeiro a pagar bem como a quem deve ser entregue a respectiva quantia para extinguir a obrigação.
Por fim, o último estágio da despesa pública, conforme art. 64 da Lei nº 4.320/64, é o pagamento. Ele é exteriorizado por um despacho exarado por autoridade competente, denominado de ordem de pagamento, que determina que a despesa seja paga[6].
Ante a contextualização feita acima acerca das fases da despesa pública pode-se vislumbrar melhor a situação jurídica concernente à feitura da cédula microempresarial. Para que tal título de crédito seja emitido é necessário que as duas primeiras fases da despesa pública tenham se aperfeiçoado, ou seja, que haja um empenho devidamente liquidado, todavia é necessário que a última fase da despesa, ou seja, o pagamento, não tenha sido feito 30 dias após a devida liquidação do empenho.
Com o advento da Lei nº 12.153/09, que institui os Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios ficou ainda mais fácil para os microempresários ingressarem em juízo caso seu crédito for de até 60 (sessenta) salários mínimos.
Com o intuito de amenizar os efeitos do atraso no pagamento bem como acelerar o processo de execução da dívida, o legislador criou a cédula de crédito microempresarial, um título executivo extrajudicial.
Mas é possível executar título executivo extrajudicial contra a Fazenda Pública? A Súmula nº 279 do Superior Tribunal de Justiça permite, tendo em vista que “é cabível execução por título extrajudicial contra Fazenda Pública”.
Quanto à possibilidade desse tipo de execução, Leonardo José Carneiro Cunha afirma que: “A Súmula nº 279 do STJ não contraria a norma constitucional que exige o prévio trânsito em julgado para a expedição do precatório. Possível, portanto, a execução fundada em título extrajudicial contra a Fazenda Pública”[7].
Ante o exposto, é importante frisar que a cédula de crédito microempresarial foi concebida para ser um meio acessível e descomplicado com o objetivo de facilitar que as microempresas e as empresas de pequeno porte consigam reaver o mais rápido possível os pagamentos que já foram devidamente empenhados e liquidados, mas que, todavia, a União, os Estados ou os Municípios não efetuaram o pagamento no prazo legal.
Há que se lembrar, ainda, que apesar da Lei Complementar nº 123/06 ter sido editada no dia 14 de dezembro de 2006 e o revogado parágrafo único do art. 46 deste diploma legal asseverava que a regulamentação da cédula de crédito microempresarial deveria acontecer num prazo de 180 (cento e oitenta) dias, no entanto, até o presente momento isso ainda não ocorreu.
Importante frisar para arrematar este artigo, que após a regulamentação da cédula de crédito microempresarial seus portadores poderão negociá-las no mercado, já que a Cédula é um título de crédito, e, assim, reaver seus créditos com mais facilidade ainda.
1.3 Conclusões
Este artigo foi escrito em outubro de 2016, um ano marcado por um profunda crise financeira estatal no Brasil.
Diversos Estados da Federação estão com grandes problemas financeiros, inclusive com o atraso de pagamento dos próprios servidores, vide o caso do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul.
Se os salários do funcionalismo têm seu pagamento postergardo, o que os governantes tentam sempre evitar ao máximo ou deixar como última opção, em destino menos glorioso padecem os fornecedores dos entes federativos.
Não raro, Estados e Municípios estão com diversas pendências de pagamentos com seus fornecedores e muitos deles são microempresas e empresas de pequeno porte. Estas empresas, via de regra, não possuem capacidade de se manter no mercado caso não recebam em dia.
A cédula de crédito microempresarial com certeza não teria o condão de resolver de uma vez por todas essa situação, todavia, poderia, caso fosse regulamentada e implementada, ser um instrumento útil para facilitar o recebimento dos pagamento estatais.
Na condição de título executivo extrajudicial, a mencionada Cédula facilitaria sobremaneira a execução judicial e, consequentemente, na efetivação dos pagamentos para a micro e pequenas empresas ou poderia ser negociada no mercado.
Como diversos outras matérias que já deveriam ter sido regulamentadas há muito tempo – o direito à greve talvez seja o mais emblemático deles e já deveria ter sido regulamento desde 1988 — a cédula de crédito microempresarial permanece como uma promessa não cumprida, mais uma.
Notas e Referências:
[1] SERVIÇO BRASILEIRO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS. Participação das Micro e Pequenas Empresas na Economia Brasileira. Disponível em: < http://www.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/Estudos%20e%20Pesquisas/Participacao%20das%20micro%20e%20pequenas%20empresas.pdf >. Acesso em: 05 out. 2016.
[2] SERVIÇO BRASILEIRO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS. Coleções estudos e pesquisas. [S.l.], out. 2011. Disponível em: <http://www.biblioteca.sebrae.com.br/bds/BDS.nsf/45465B1C66A6772D8325 79300051816C/$File/NT00046582.pdf>. Acesso em: 04 nov. 2011.
[3] SERVIÇO BRASILEIRO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS. Coleções estudos e pesquisas. [S.l.], out. 2011. Disponível em: <http://www.biblioteca.sebrae.com.br/bds/BDS.nsf/45465B1C66A6772D8325 79300051816C/$File/NT00046582.pdf>. Acesso em: 04 nov. 2011.
[4] KOHAMA, Heilio. Contabilidade pública: teoria e prática. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 109.
[5] MACHADO JR., José Teixeira; REIS, Heraldo da Costa. A lei n. 4.320/64 comentada. 31. ed. Rio de Janeiro: IBAM, 2002-2003. p. 140.
[6] HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 44.
[7] CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A fazenda pública em juízo. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2010. p. 341.
Thiago Freitas é Advogado. Mestre em Direito pela Universidade de Alicante (2013) e em Ciência Jurídica pela UNIVALI (2013). Possui graduação em Direito pela UNIVALI (2009) e em Administração pela Universidade de Brasília (2003). Pós-graduado em nível de especialização em Filosofia também pela Universidade de Brasília (2004) e em Direito Público pela UNISUL (2009). Ocupa desde 2007 o cargo de Auditor Interno do Poder Executivo do Estado de Santa Catarina. Membro da Comissão de Licitações da OAB/SC desde 2013.
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