Carta de Direitos Digitais: Proteção dos Direitos Digitais dos Cidadãos Espanhóis

12/12/2020

O Governo da Espanha iniciou consulta pública para aprovação daquela que seria a primeira versão de documento do Estado que prevê os direitos dos usuários no ambiente Virtual. O documento chamado Carta dos Direitos Digitais[1] começou a ser elaborado em 15 de junho de 2020, e ficou aberto para consulta pública até o dia 04 de dezembro de 2020, para então, após definida a sua redação final, ser oficialmente publicado.

Sendo a Espanha considerada pioneira na garantia de um conjunto de proteções aos direitos digitais dos usuários[2], o objetivo contido na Carta é o de assegurar os mesmos direitos existentes no mundo físico para o mundo digital, além de estabelecer direitos novos devido às especificidades do ambiente, como, por exemplo, direitos relacionados aos impactos e riscos da Inteligência artificial. O documento posto para consulta pública foi dividido em 5 títulos fundamentais, sendo eles: (i) Liberdade; (ii) Igualdade; (iii) Participação e Formação do Espaço Público; (iv) Ambiente de Trabalho e Negócios; e (v) Direitos Digitais em Ambientes Específicos.

Ainda que a Carta não gere vinculação legal, as questões nela posta, além de pertinentes, dado o contexto global envolto ao crescente desenvolvimento tecnológico, são de tamanha importância por abrangerem debates sobre quais são os direitos digitais que merecem proteção.

Algumas das questões mais interessantes trazidas no documento dizem respeito ao direito do Pseudoanonimato, Direito de não ser localizado e de não ter um “perfil” criado, Patrimônio e Herança Digital, Liberdade de expressão e de informação, Inteligência Artificial e Segurança de Menores na Internet e Neutralidade da Rede.

O direito ao pseudoanonimato, previsto no item IV, itens 1 e 2 da Carta, garante a possibilidade de o usuário, que não queira utilizar seu nome e sobrenome, adotar pseudônimos. Isso deve estar dentro da possiblidade técnica do serviço, e deve, ainda, haver a possiblidade de identificação desses usuários, sempre que a Lei exigir.

Vale a ressalva de que o pseudoanonimato não é o mesmo que anonimato. Esta diz respeito a impossibilidade de associar os dados a um indivíduo (seu conceito podendo ser encontrado, inclusive na LGPR, em seu art. 5º, inciso XI); ao passo que esse, conforme o que pode se auferir do art. 13, §4º da LGPD, trata-se de dados que perdem a possibilidade de serem associados a um indivíduo, direta ou indiretamente, uma vez que os dados necessários para sua identificação são mantidos em locais separados.

A previsão na Carta, garantindo o pseudoanonimato aos usuários que desejarem, é interessante no sentido de que, a pseudonimização é uma forma de assegurar uma maior proteção aos dados dos titulares, e isso porque, dentre outras coisas, pode diminuir os danos causados por eventuais ataques ou vazamento de dados e evitar perseguições políticas.

Quanto ao direito de não ser localizado e de não ser “perfilado”, previsto no item V da Carta, é assegurando ao usuário que este não será rastreado e que não serão feitas análises de personalidade ou de ações na internet que tenha por objetivo a criação de perfis sobre sua pessoa. É muito comum que plataformas se valham do comportamento que as pessoas têm na rede, visando esse perfilamento como uma forma de agrupá-los em nichos específicos e, assim, facilitar o marketing, por exemplo. Já nos dedicamos, inclusive, a abordar esse tipo de ação e algumas das implicações para a criação desses perfis[3].

Como um dos objetivos da Carta é justamente garantir o direito à livre autodeterminação e assegurar às liberdades dos usuários da internet, qualquer tipo de análise que tenha o objetivo de criar um perfil das pessoas, deverão ser precedidos do consentimento, ou somente poderão realizar quando autorizados por Lei.

No tocante às questões atinentes ao direito à Herança Digital, o documento reconhece a existência do direito de se herdar todos os bens e direitos do falecido no ambiente digital. Não existe dúvidas quanto a necessidade de se estabelecer mecanismos para a transferência de, por exemplo, perfis virtuais, uma vez que muitos deles possui um grande valor econômico. Certamente esse é um reflexo que decorre das mudanças sociais trazidas pela revolução digital, no qual as plataformas digitais que hospedam esses perfis passaram a ter espaço central na vida das pessoas.

O tema sobre a sucessão digital não é muito discutido[4]. O motivo disso talvez tenha relação com a associação que se faz com a internet sendo um espaço de leitura, compartilhamento, entretenimento, diversão etc. Há alguns poucos anos, dificilmente conseguiríamos imaginar que o poder que algumas plataformas como Facebook, Youtube e Twitter teriam, e a quantidade de “influenciadores” que nasceriam nesses espaços. E junto a isso, surge toda uma economia de plataforma e de compartilhamento, que ainda que não palpáveis, são bens passíveis de serem herdados.

O tema não se restringe apenas àquele conteúdo existente e valorado nas redes sociais, sendo também passiveis de sucessão documentos na nuvem (Dropbox, OneDrive, Google Drive etc.), correios eletrônicos, bibliotecas e videotecas virtuais e afins. E é nesse sentido que vem a previsão estabelecida pela Carta, em reconhecer a existência do direito que os sucessores têm de herdarem os conteúdos de titularidade do de cujus, que estejam em um ambiente virtual. O assunto vem disposto no item VI, e prevê, ainda, que o acesso aos bens será realizado de acordo com o regramento já existente no Código Civil do país.

Em seu item XIII, a Carte se preocupa em apresentar questões relacionadas ao direito à Liberdade de expressão e de Informação dos usuários da internet, de modo que os atores responsáveis pelas mídias nos ambientes digitais deverão sempre tomar medidas assegurando que o usuário saiba “quando a informação é preparada sem intervenção humana através de processos automatizados” (Item XIII, 1. “a”); “quando a informação foi classificada ou priorizadas pelo provedor por meio de técnicas de criação de perfil ou equivalente” (Item XIII, 1. “b”); e “quando essas informações forem patrocinadas por terceiros” (Item XIII, 1. “b”).

A Carta elenca ainda o direito que o cidadão tem de “Solicitar do provedor a não aplicação de técnicas de análise que permitam oferecer informações que afetem as liberdades ideológicas, religiosas, de pensamento ou de crença” (Item XIII, 1. “c”). Além disso, prevê o direito de retificação do usuário perante os meios de comunicação ou terceiro, sempre que alguma informação que fora divulgada venha a ferir seu “direito à honra, a privacidade pessoal e familiar na Internet e o direito de se comunicar ou receber livremente informações verdadeiras” (Item XIII, 1. “d”).

Essa previsão conversa muito com o já previsto direito à liberdade de expressão encontrado na Carta de Direitos Fundamentais da UE; mas não só isso, permeia toda a discussão global que se tem em torno das tão temidas Fake News, de questões relacionadas à censura e discursos de ódio na internet[5]. E muito dessa discussão também pode ser encontrado no Marco Civil da Internet, em alguns de seus dispositivos, como por exemplo nos arts. 2º, 3º, I e 4º, II.

Abrangendo um dos temas mais desafiadores à ética e ao uso das tecnologias, a Carta traz em seu item XXIII os Direitos frente ao uso de sistemas que se utilizam de Inteligência Artificial. Dispõe no item XXIII, 1. “a” que: “Deve ser garantido o direito à não discriminação algorítmica, seja qual for a sua origem, causa ou natureza do enviesamento, em relação às decisões e processos baseados em algoritmos”, prevendo ainda que, sempre que uma decisão for tomada por um sistema algorítmico, deverá ser assegurado ao usuário as garantias de transparência, auditabilidade, explicabilidade, rastreabilidade, acessibilidade, usabilidade e confiabilidade (item XXIII, 1. “b” e “c”).

Sempre que um sistema de Inteligência Artificial estiver em operação, os usuários deverão ser informados deste fato (item XXIII, 2.), prevendo ainda que,

“As pessoas têm o direito de não serem objeto de decisão unicamente baseada em processos decisórios automatizados, incluindo os que utilizem procedimentos de inteligência artificial, que produzam efeitos jurídicos ou os afetem significativamente de forma semelhante, salvo nos casos previstos na lei. Nesses casos, os direitos de:

  1. a) Solicitar supervisão e intervenção humana;
  2. b) Desafie as decisões automatizadas ou algorítmicas.”

 

Em meio a tantas tecnologias que são baseadas no uso de sistemas de Inteligência Artificial, no qual as decisões são muitas vezes automatizadas, entender do direito que o usuário tem quanto a revisão dessas decisões e a transparência passam a ser requisitos para se garantir o cumprimento de muitos princípios e da ética na qual a sociedade se baseia. Não à toa que muito se discute quanto ao impacto que o uso de tecnologias desse tipo pode ter, negativamente, em determinados grupos, devido à tendencia que esses sistemas têm de discriminar; tema esse, inclusive, já explorado por nós nessa coluna[6] [7].

Outra interessante previsão é quanto ao direito a Neutralidade da Rede. Embora não seja este um direito “novo”, é válido relembrar da importância dessa garantia. O documento expressa que as autoridades públicas deverão assegurar que o uso da internet se dará de modo a respeitar a esse direito que o usuário tem à neutralidade da rede, de modo que, deve haver uma transparência na oferta de produtos, sem nenhum tipo de discriminação, seja por motivos econômicos, seja por motivos técnicos.

O princípio da neutralidade da rede é calcado justamente nessa essência, de não privilégio, ou seja, a existência dessa rede neutra é traduzida na isonomia de tratamentos, não devendo haver nenhum tipo de favorecimento de um pacote de dados em detrimento de outro[8]. No Brasil, esse princípio é consagrado no Marco Civil da Internet, em seu art. 3º, inciso IV e no artigo 9º.

O documento, embora não seja muito extenso, consegue abordar diversos temas de grande relevância, de modo a construir toda uma estrutura de direitos e garantias para os usuários, de modo a assegurar que a experiência deles não seja danosa. Não é por acaso que é tida como pioneira na elaboração do documento, pois conseguiu abarcar em suas previsões áreas que vão desde proteção de dados (assunto, aliás, que permeia todo o documento) e inteligência artificial, à proteção de menores e proteção no ambiente laboral.

A Carta ainda carece de aprovação de sua redação final, tendo a sua consulta pública sido finalizada há poucos dias, mas ainda assim, tem grande relevância e é um documento para servir de inspiração a outros países.

 

Notas e Referências

[1] Disponível em: https://portal.mineco.gob.es/RecursosArticulo/mineco/ministerio/participacion_publica/audiencia/ficheros/SEDIACartaDerechosDigitales.pdf. Acesso em: 23.11.2020.

[2] Disponível em: https://www.prnewswire.com/news-releases/espanha-a-pioneira-mundial-na-protecao-dos-direitos-digitais-dos-cidadaos-885981265.html. Acesso em: 23.11.2020.

[3] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/sobre-liberdade-escolhas-e-sugestoes-as-nossas-decisoes-sao-n-v-ossas. Acesso em: 23.11.2020.

[4] CHIAVASSA, Marcelo de Mello Paula Lima; ANDRADE, Vitor Moraes. Manual de direito digital. São Paulo: Tirant, 2020, p. 268.

[5] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/eua-e-uniao-europeia-intensificam-a-regulacao-das-redes-sociais. Acesso em 27.11.2020.

[6] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/twitter-youtube-seriam-os-algoritmos-discriminatorios. Acesso em 27.11.2020.

[7] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/reconhecimento-facial-racismo-e-privacidade. Acesso em: 27.11.2020.

[8] CHIAVASSA, Marcelo de Mello Paula Lima; ANDRADE, Vitor Moraes. Manual de direito digital. São Paulo: Tirant, 2020, 149.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações

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