Caos no jogo processual

29/12/2015

Coluna Espaço do Estudante

O professor Alexandre Morais da Rosa (2014) trabalha com a aplicação da Teoria dos Jogos ao Processo Penal. O autor conceitua o processo penal como “o dispositivo democrático pelo qual a interação da normatividade opera a partir de sujeitos que ocupam lugares e funções próprias, regulamentada por lei, capazes de promover a resposta estatal diante de uma possível violação de conduta proibida” (2015, s/p). Daí depreende-se que essa perspectiva propõe a delimitação estritas das competências dos jogadores do jogo processual.

Nessa visão alguns elementos são fundamentais para se entender o processo penal, como tempo, espaço e um sistema de regras e princípios compartilhada pelos jogadores. O que pretendo nesse artigo é mostrar a relação entre a proposta do ilustre Alexandre Morais da Rosa com a perspectiva da Teoria do Caos aplicada ao Direito, estudada pelo professor Ricardo Aronne (2006; 2010). Rosa (2014, p. 16, grifos acrescidos) já mostra essa conexão quando afirma que

No jogo processual as regras são impostas pelo Estado e sustentadas pelo magistrado. Limita o tempo, desde a denúncia até o trânsito em julgado, bem assim o espaço (Tribunal) em que será jogado. É dinâmico e com a possibilidade de mudança, alternância, vitória, empate ou derrota. E pode se renovar (jogos repetitivos ou noutras instâncias recursais). De alguma maneira o jogo processual penal dá ordem parcial ao caos, estipulando o local do jogo, seus limites, regras, jogadores e julgadores. Daí seu efeito cativante. Para ser um bom jogador não basta somente conhecer as regras processuais. É preciso ter habilidade, inteligência, ritmo, harmonia, capacidade de improviso. Ao se assumir a função de jogador ou julgador, no jogo processual penal, acontece a criação de ambiente apartado das preferências pessoais. Utilizam-se máscaras e lugares diferenciados, para os quais a estética, a performance, roubam a cena. O espetáculo do jogo processual lança luzes narcisísticas, promove o aparecimento de traços não existentes e/ou obliterados na vida privada. Pulsa. Agita. Explode. É o rito coletivo pelo qual a punição se legitima 

A ideia do caos é, contudo, inerente à própria sistemática do Direito e particularmente ao jogo processual penal. O Caos aparece no centro do palco da ciência na metade do século XX por um acidente. Incompreendido a princípio, revolucionário em seus efeitos. Em poucas décadas a pesquisa científica em todas as áreas haviam sido infectadas por essa revolução. Gleick (1989, p. 4-5) diz que

Hoje, uma década depois, o caos se tornou uma abreviatura para um movimento que cresce rapidamente e que está reformulando a estrutura do sistema científico. Conferências e publicações sobre o caos são numerosas. (…) Agora que a ciência está atenta, o caos parece estar por toda parte. (…) O caos rompe as fronteiras que separam as disciplinas científicas. Por ser uma ciência da natureza global dos sistemas, reuniu pensadores de campos que estavam muito separados. (…) O caos suscita problemas que desafiam os modos de trabalhos aceitos na ciência. Vale-se, e com muita ênfase, do comportamento universal da complexidade.

O caos é estudado primeiramente por Edward Lorenz, um matemático por vocação que acabou trabalhando com meteorologia por um acidente do destino. Acaso. Sorte. Caos? A sorte também vai ter papel no encontro de Lorenz com o caos que mudará para sempre os fundamentos da ciência. Também é fundamental para a descoberta a utilização de computadores, a primeiro momento um sonho para a concretização do universo newtoniano, mas que no final escancarou suas chagas.

Ao deparar-se com o computador, Lorenz percebeu que ele era perfeito para simular um universo regido pelas Leis de Newton. Era possível pela primeira vez ao homem programar uma máquina para seguir leis específicas e determinadas, expressas a partir de equações, e, atribuindo valores às variáveis, a máquina simularia as transições de estado do universo sem intervenções humanas subsequentes. Esse era um dos paradigmas que sustentava a física newtoniana[1]. O computador, que essencialmente é uma máquina determinista de transição de estados, era o meio ideal para se testar essa concepção da natureza.

Um computador seria a materialização da “inteligência suprema” (GLEICK: 1989, p. 12), ou do “demônio” (PRIGOGINE: 2011, p. 41), imaginada pelo matemático do século XVIII, Laplace. “Essa inteligência abarcaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do menor átomo; para ela, nada seria incerto, e o futuro, como o passado, estaria presente aos seus olhos” (LAPLACE Apud GLEICK: 1989, p. 12). Essa era a ideia presente na mente dos primeiros que desenvolveram pesquisas com um computador e, de certo modo, permanecem até hoje na fantasia de uma Inteligência Artificial.

Havia, contudo, uma pequena ruptura do que seria, do contrário, uma perfeição da matemática determinista. Era uma rachadura tão pequena na textura perfeita do universo newtoniano, que os físicos empiristas chegavam a desconsiderá-la. De tão óbvio, ficou inquestionável, afinal, para que questionar o óbvio? Mas a verdade é, as medições das variáveis das equações das leis de Newton nunca seriam absolutamente precisas. Como diz Gleick (1989, p. 12, grifos no original), podemos traduzir o entendimento determinista como: “Dado um conhecimento aproximado das condições iniciais de um sistema e um entendimento da lei natural, pode-se calcular o comportamento aproximado desse sistema”. Essa intuição era central para a física de Newton, porque continha a ideia de que pequenas imprecisões na atribuição de valores das variáveis das equações, produziriam pequenas variações nos seus resultados. Os experimentos de Lorenz, contudo, mostraram como essa intuição era falsa (GLEICK: 1989, p. 13).

Decidido a descobrir formas precisas de previsão do tempo, o matemático dedicou-se à criação dos seus modelos de condições meteorológicas no computador da universidade em que trabalhava. Ficou admirado com os resultados que obtinha, linhas de um gráfico impressas em uma folha mostrando as alterações do seu simulador. Depois de repetir várias vezes o experimento, determinado dia Lorenz resolveu alterar as condições iniciais, começando por um estado intermediário de uma sequência. Por acidente, no entanto, inseriu valores ligeiramente inferiores ao da sequência anterior. Pela intuição presente entre os físicos e matemáticos da época, a pequena alteração provocaria pequenas mudanças, insignificantes, no resultado das equações da simulação. O que Lorenz descobriu, no entanto, foi que essa pequena diferença nos valores produziu um resultado completamente diverso da sequência anterior. Estava identificado o caos (GLEICK: 1989, p. 13-14).

O fenômeno identificado por Lorenz foi relacionado ao que ficou conhecido como Efeito Borboleta, que traduz a ideia da dependência sensível às condições iniciais dos sistemas caóticos. A intuição determinista de que as pequenas imprecisões produziam pequenas perturbações no resultado das equações mostrou-se falsa. Isso é precisamente o conceito de caos. “Sabe-se muito bem, tanto na ciência como na vida, que uma cadeia de acontecimentos pode ter um ponto de crise que aumente pequenas mudanças. Mas o caos significa que tais pontos estavam por toda parte. Eram generalizados” (GLEICK: 1989, p. 20).

Uma das primeiras consequências da inserção do elemento do caos é mudar a forma de análise dos fenômenos, de um estudo de trajetórias individuais para uma análise probabilística. Como afirma Prigogine (2011, p. 79-80), “quando estamos diante de sistemas instáveis, devemos formular as leis da dinâmica no nível estatístico. Isso, por certo, muda de maneira radical a nossa descrição da natureza, uma vez que os objetos fundamentais da física não são mais trajetórias ou funções de onda, mas sim probabilidades”. E, tal mudança de abordagem exigem novas ferramentas matemáticas, que foram desenvolvidas por Mandelbrot, os fractais (PRIGOGINE: 2011, p. 41).

O mais importante é o efeito que tal descoberta produz no demônio de Laplace. Partindo da ideia de que a indeterminação (o caos) está por toda parte, “ele só poderia predizer o futuro se conhecesse o estado do mundo com uma precisão infinita” (PRIGOGINE: 2011, p. 41). Infinitos são sempre sinais de que uma dada teoria já não é mais aplicável a um fenômeno. Tal inteligência suprema seria impossível de existir. Não tente entortar a colher. Isto é impossível. Ao invés disso, tente apenas perceber a verdade. Não há colher. Então você perceberá que não é a colher que entorta. É você mesmo.

O caos está também no sistema jurídico. Deve-se ao professor Ricardo Aronne (2010, p. 138) a relação entre a ideia dos sistemas irreversíveis com a Teoria do Direito. “O Direito é, sem dúvida, melhor apreensível em termos de sistema e da Teoria dos Sistemas. É um sistema axiológico não linear, sensível, dinâmico, aberto e teleologicamente orientado de regras, princípios e valores, potencialmente entrópicos que se hierarquizam topicamente, para preservação de sua unidade axiológica fractal”.

No tocante aos sistemas, a temática é muito ampla. Inclui o tempo e alcança a questão fundamental relativa à integração e estabilidade do sistema. Existem sistemas integráveis e não-integráveis, em convívio na natureza e no Direito. Neste sentido, são fundamentais os atuais estudos acerca da dinâmica, para que se possa melhor determinar o comportamento dos princípios e regras no sistema e o modo como se dão os conflitos e antinomias. Novamente aqui, a relação do tempo no Direito com o tempo fora dele, merece um capítulo próprio em um inventário de pesquisa como nos moldes propostos. A questão da abertura do sistema se amplia, bem como sua comunicação com a Teoria do Discurso e um inúmero rol de saberes do qual se isolava (ARONNE: 2006, p. 28).

O importante a considerar é que o ser humano se expressa por meio da linguagem[2]. O homem é um animal cego que necessita de uma interface para enxergar a realidade subjacente. Nesse sentido, o Direito precisa ser lido, interpretado, constantemente (re)construído seu sentido. Nessa tarefa destaca-se o papel do intérprete (ARONNE: 2010, p. 138). “A linguagem é o fundamento de compreensão, pois é a linha e a agulha na tessitura do sistema e do discurso que o move, nessa totalidade sem costuras, que insistimos em coser. O sistema da natureza é traduzido pelas 'leis' da Física, mal traduzidas outrora. A linguagem é, pois, a matemática do Direito. E é atingida por males similares” (ARONNE: 2010, p. 140).

O sentido do texto está sempre além das pretensões do seu autor, assim como o sentido da Lei está para além da mente do idealizado Legislador. A procura pela codificação é a busca pelo congelamento do tempo e com isso da história (ARONNE: 2010, p. 140-142). “A pretensão de estatuir o Direito vem ao encontro da vontade de verdade iluminista que é a pedra de escândalo da concepção proprietária monádica do indivíduo moderno” (Ibidem, p. 142).

O Código iluminista/positivista é repleto de descontinuidade, que na linguagem jurídica denominam de lacunas. Isso principalmente pelo homem idealizado por esse Código, o homem burguês, capaz de consumir (e ser consumido), capaz de ter. Um homem ideal que não representava a totalidade da realidade social. Os outros que não se encaixavam nesse modelo idealizado de ser humano não possuíam linguagem, portanto, não possuíam forma de expressarem-se[3].

Esse paradigma está em crise, uma crise de racionalidade, uma crise de sentido. Pode-se continuar olhando o mundo através das instituições falidas, cheias de pontos cegos, ou pode-se reposicionar o olhar do observador. Perceber que vivemos dentro das instituições, mas também as criamos e podemos reconstruí-las constantemente, se necessário. Preencher os vazios de sentido que nos constituem é, portanto, o árduo desafio de qualquer teoria que pretenda hoje superar os paradigmas iluministas[4].

A busca por uma reconstrução da linguagem no Direito não perpassa meramente pelo campo do ordenamento jurídico. Está entrelaçada por ele. Para quem pensa que o Direito é um mero jogo de regras, tendo apenas os juristas como personagens protagonistas, esta visão se torna ainda mais embaçada. O direito está na vida. Fato é vida. Norma é vida. Não se dissociam como muitos gênios ingênuos há tempos tentam prescrever (ARONNE: 2010, p. 144).

O jogo processual se concretiza de forma caótica. Trata-se de um sistema dinâmico, instável, caótico, indeterminado e probabilístico. Rosa (2014, p. 17-21) tange a questão do caos no processo penal brasileiro, mas parece entender a questão como um elemento externo a ser superado. Uma consequência do arbítrio e da falta de um conjunto de normas compartilhado pelos diversos jogadores do processo penal. Entendemos, de forma diversa, que o caos não aparece apenas agora, ele sempre esteve escondido por detrás da estabilidade do sistema que antecedeu. É possível que da própria estabilidade produza-se instabilidade[5]. Mesmo na física, como demonstrou os experimentos de Poincaré, os sistemas integráveis são uma exceção dentre os sistemas dinâmicos[6]. Por sistema dinâmico integrável quer-se dizer aquele “cujas variáveis podem ser definidas de tal maneira que a energia potencial seja eliminada, ou seja, de tal maneira que seu comportamento se torne isomorfo ao de um sistema de partículas livres, sem interação. Poincaré mostrou que, em geral, tais variáveis não podem ser obtidas. Com isso, em geral, os sistemas dinâmicos são não integráveis” (PRIGOGINE: 2011, p. 42).

No Direito percebe-se o mesmo fenômeno, como observa Aronne (2006, p. 30):

O sistema codificado original é um sistema aprioristicamente estável, ainda que sensível às condições iniciais; aos elementos axiológicos que constroem a respectiva lide a ser solvida e o discurso que a revela. Mesmo nestes casos, podem-se observar desvios, derivados da riqueza tópica. Da estabilidade também pode surgir o caos. Vários cientistas tiveram a ousadia de reconhecer isto. Muitos outros calaram diante de desvios em sistemas instáveis. A quase integralidade. Simplificaram. Tergiversaram. Agora já não podem se negar a ver. A luz atravessa as suas pálpebras. Isso ocorre com os juristas apenas agora. Ao menos formalmente. Já vinha sendo constatado e estudado. Só não era sabido o nome. Nem se tinham as pontes para fundar a travessia. As pontes estão aqui. O nome: Caos.

O caos é inerente à própria norma, tanto na regra, mas principalmente nos princípios, que não tinham relevância normativa nos paradigmas anteriores. Enquanto as regras têm maior concretude, os princípios são abstratos e irradiam seus sentidos para as demais normas do ordenamento jurídico[7]. O Direito deve ser constantemente reconstruído a partir do princípio do Estado Democrático de Direito e dos Direitos Fundamentais, que atuam como atratores tornando os sistemas caóticos dotados de previsibilidade, mas não aquela determinística pretendida por Laplace (ARONNE: 2010, p. 97; ALVES: 2013, p. 29).

Reconheça-se que mesmo diante da mais estável jurisprudência, existem desvios causais. Reconheça-se, ainda, que estes desvios, em macroperspectiva, são probabilísticos. Possuem configurações. Perceba-se que nada é imprevisível, neste movimento da jurisprudência; também nada é determinável. Perceba-se que na aproximação de microperspectiva dos desvios, em crescente, apuram-se as razões pelas quais a solução da respectiva lide tomou determinado rumo (trajetória), o qual, na lógica interna do processo, pode ser encadeado às condições iniciais, colimadas no caso concreto (tópica). Note-se também, que o Direito imprime uma noção artificial e variável de tempo e reversibilidade, que vem sendo revisitada pela jurisprudência na pós-modernidade; reconstruindo a temática do dano e da tutela de urgência, para ficarmos apenas em exemplos iniciais (ARONNE: 2006, p. 23).

O tempo é elemento crucial para o Direito, para a Física e para o Processo Penal, como ressaltamos da fala do professor Alexandre acima. Prigogine (2011, p. 58, grifos acrescidos) coloca que “a condição necessária para nossa comunicação com o mundo físico, bem como para nossas comunicações com os outros humanos, é uma flecha comum do tempo, uma definição comum da distinção entre passado e futuro”. O tempo é o construtor da indeterminação, do caos. Não é uma ilusão criada pela limitação humana, mas é o elemento que cria a própria realidade do mundo humano.

É a ideia compartilhada de tempo que permite ao homem decidir, escolher, viver, conviver. A Codificação do Direito tinha a pretensão de congelar a passagem do tempo. Não é mais possível entender o universo como estático e determinista, assim como também não é possível entender o Direito desta forma. É preciso adotar uma perspectiva evolutiva[8].

Decidir e comunicar é fundamental na dinâmica processual. Os jogadores se comunicam em um espaço compartilhado, através de estratégias usadas diante das possibilidades fornecidas pelas normas processuais. As jogadas envolvem uma tomada de decisão, que levanta a discussão sobre se as pessoas tomam decisões unicamente de forma racional. Rosa (2014, p. 27-30) ressalta a influência das emoções nas decisões humanas. O homem não é aquele utilitarista que matematicamente calcula as vantagens e desvantagens de cada situação. Este é o homem forjado no fogo revolucionário do século XVIII, eternalizado nos Códigos, mas nunca concretizados. Uma miragem no deserto de nossa existência, que neuroticamente orienta nossa construção jurídica dia após dia[9]. O sistema jurídico, tal qual um computador, cria símbolos, uma linguagem, para representar esse homem. Cria-se um personagem, uma máscara, para atuar no palco jurídico da relação jurídica. É também um recorte, uma exclusão, de todos aqueles que não vestem a fantasia dessa peça. O sistema não pode enxergá-los, dá-los sentido (Ibidem).

A passagem do tempo é o que nos constitui como seres mortais e conscientes de nossa mortalidade. Constrói e destrói. Reconstrói. Condena-nos a sermos livres e compele-nos de encontro ao outro e a um futuro indeterminado. Obriga-nos a escolher, a decidir. Petrificar-nos não é uma opção. A Razão não pode ser alcançada através de um exercício isolado, não é resultado de um imperativo categórico universal e absoluto. É dialógico, discursivo. Esse é o sentido de escolha livre e racional. Fractal, porque recursivamente construído, por meio do discurso público. Caótico, porque indeterminado pela própria condição de vazio de sentido humano, que já não é mais o Homo Economicus utilitarista que preenchia seu vazio pela fria matemática. E apenas determinável pela ação dos princípios da justiça como atratores.

E chegamos ao fim do jogo. Depois das jogadas, das estratégias, das perdas e ganhos intermediários é chegado o momento de decidir. Superada a ideia de determinismo a decisão não é conhecida no começo.

A decisão no processo penal não é ato de conhecimento, mas de compreensão, em que os jogadores da partida, no evento semântico denominado sentença, realizam uma suão de horizontes. Nesse contexto, diante da apresentação de uma hipótese fático-descritiva pelo jogador-acusador, procede-se a debate em contraditório. O que existe é a produção de significantes – informações – e uma decisão no tempo e espaço (ROSA: 2014, p. 203).

A produção de significantes apresenta-se inexoravelmente determinada pela linguagem. O processo é sempre uma reconstrução aproximada de um evento que aconteceu no passado. Um texto no futuro, que fala sobre o passado, construído a partir das memórias das testemunhas e dos testes dos peritos, ambos sujeitos a erros (ROSA: 2014, p. 203-207). As imprecisões não são um erro de aproximação, mas elementos do sistema processual caótico em si. Assim como as indeterminações dos resultados no universo determinista de Newton não eram apenas resultado das imprecisões das variáveis das equações, mas um elemento crucial da própria natureza: o Caos!

Alexandre Morais da Rosa (2015, s/p, grifos acrescidos) já percebe isso ao afirmar:

O jogo processual como aventura. As interações entre os jogadores e julgadores são complexas e incertas. Especialmente porque o ambiente do processo se modifica com o tempo do jogo e seus fatores imponderáveis. Teremos sempre informações imperfeitas e fragmentadas. Seria maravilhoso que pudéssemos controlar as ações dos demais agentes processuais e antes do jogo processual sabermos o resultado. Isso somente acontece em jogos viciados. Nos jogos com fair play devemos nos adaptar e sempre estarmos atentos às mudanças. As consequências das táticas adotadas dependem das interações processuais, dos efeitos (positivos e negativos) que podem ocasionar nos demais agentes processuais. A antecipação de comportamento processual nunca pode ser compreendida na totalidade. Há um resto que precisa ser adaptado no decorrer do processo em face dos contextos.

As duas perspectivas certamente têm muito o que compartilhar. Nesse início de pesquisa é importante repensar o nosso diálogo com a ciência e o desta com a natureza.

A ciência é um diálogo com a natureza. As peripécias desse diálogo foram imprevisíveis. Quem teria imaginado no início deste século a existência das partículas instáveis, de um universo em expansão, de fenômenos associados à auto-organização e às estruturas dissipativas? Mas como é possível um tal diálogo? Um mundo simétrico em relação ao tempo seria um mundo incognoscível. Toda medição, prévia à criação dos conhecimentos, pressupõe a possibilidade de ser afetado pelo mundo, quer sejamos nós os afetados, quer sejam os nossos instrumentos. Mas o conhecimento não pressupõe apenas um vínculo entre o que conhece e o que é conhecido, ele exige que esse vínculo crie uma diferença entre passado e futuro. A realidade do devir é a condição sine qua non de nosso diálogo com a natureza. Compreender a natureza foi um dos grandes projetos do pensamento ocidental. Ele não deve ser identificado com o de controlar a natureza. Seria cego o senhor que acreditasse compreender seus escravos sob pretexto de que eles obedecem às suas ordens. Evidentemente, quando nos dirigimos à natureza, sabemos que não se trata de compreendê-la da mesma forma como compreendemos um animal ou um homem. Mas também aí se aplica a convicção de Nabokov: 'O que pode ser controlado não é nunca totalmente real, o que é real não pode nunca ser rigorosamente controlado'. Quanto ao ideal clássico da ciência, o de um mundo sem tempo, sem memória e sem história, ele evoca os pesadelos descritos nos romances de Huxley, de Orwell e de Kundera (PRIGOGINE: 2011, p. 161-162).


Notas e Referências: 

[1] “Lorenz compreendeu que estava colocando em prática as leis de Newton, ferramentas adequadas para um deus mecânico que podia criar um mundo e colocá-lo em funcionamento para a eternidade. Graças ao determinismo da lei física, não seriam necessárias novas intervenções. Os que faziam tais modelos tinham como certo que, do presente para o futuro, as leis do movimento proporcionavam uma ponte de certeza matemática. Compreendendo as leis, compreendia-se o universo. Era essa filosofia por trás da criação de um modelo de tempo atmosférico num computador” (GLEICK: 1989, p. 10).

[2] “O homem nasce com a linguagem. Antes era apenas o antes. (Caos?) Impossível de retrato, por ausência de luz. (Caos???) De linguagem que o reproduza ou expresse. O homem existe enquanto relação que sistematize biograficamente no mundo em que se insere e frente ao qual reage. Como um livro não linear, que é escrito à medida que vai sendo lido. E não seria concebível de outro modo. Afinal, o jogo também se deixa influenciar pela sua narração, sem que se confunda com ela. Linguagem. Luz e sombra” (ARONNE: 2010, p. 138).

[3] “Excluir aquele que não está no palco, e sim no picadeiro. O diferente, o estranho, o pobre, o estrangeiro, aquele que apenas consome-a-dor de não ser consumidor. O sem linguagem é aquele que o código não enxerga, ou melhor, enxerga com lentes repletas da intencionalidade facínora na busca por culpados, pois só encontrando culpados poderemos ser inocentes...o sem linguagem é aquele que não tem voz, mas fala. A infelicidade para quem sistematiza o sistema” (ARONNE: 2010, p. 142).

[4] “Não podemos traduzir a crise sobre o olhar fixo de uma percepção solitária. Não podemos referir a crise do direito, a crise do Estado, a crise do capitalismo ou qualquer visão que represente uma fatia isolada da realidade, já que ela se dá sem costuras. A crise que aqui tentaremos desenvolver perpassa por aquilo que a escola de Frankfurt eloquentemente percebera: A crise é da racionalidade. E ela se manifesta em todos os campos relacionais por onde passa, em que trata relação como um instrumento. Ou seja; como primordial incumbência teríamos a difícil tarefa de nos transportarmos da racionalidade instrumental para a racionalidade ética, pois quando a realidade transborda de tão real a ponto de não suportar mais os anseios totalizantes dos argumentos bem articulados, resta a reconstrução do fundamento que já não dá conta das aventuras em que o individualismo desenvolveu. Tarefa árdua: construir uma racionalidade que dê conta da multiplicidade de racionalidades” (ARONNE: 2010, p. 143).

[5] “Fala-se com frequência de 'caos determinista'. De fato, as equações de sistemas caóticos são deterministas, como o são as  leis de Newton. E, no entanto, geram comportamentos de aspecto aleatório! Esta descoberta surpreendente renovou a dinâmica clássica, até então considerada um tema encerrado. Os sistemas descritos pela lei de Newton não seriam, pois, todos semelhantes. Evidentemente, sabia-se que o cálculo da trajetória de uma pedra que cai é mais fácil do que o de um sistema de três corpos, por exemplo, o Sol, a Terra e a Lua. Mas julgava-se que se estava diante de um mero problema técnico. Somente no fim do século XIX, Poincaré mostrou que os problemas são fundamentalmente diferentes conforme se trate de um sistema dinâmico estático ou não. Já o problema de três corpos entra na categoria dos sistemas instáveis. Todavia, foi preciso aguardar as últimas décadas para que a descoberta de Poincaré assumisse todo o seu alcance” (PRIGOGINE: 2011, p. 34).

[6] “Mas Poincaré não só demonstrou que a integrabilidade se aplica apenas a uma classe reduzida de sistemas dinâmicos, como também identificou a razão do caráter excepcional dessa propriedade: a existência de ressonâncias entre os graus de liberdade do sistema” (PRIGOGINE: 2011, p. 42).

[7] “Guarde-se que os princípios têm natureza normativa de espécie diferente das regras, cujo conteúdo guarda maior concretude. Por serem abstratos, encontram-se dispersos em diversos graus de densidade, uns dando sentido aos outros, de modo a formar um sistema intersubjetivamente dotado de racionalidade. Esse sistema tem sua gênese normativa em um princípio que agasalha o conteúdo dos valores democraticamente escolhidos como legitimadores da ordem jurídica. Os valores são o limite do sistema que se faz positivamente aberto e móvel por sua indeterminação. Reconhece lacunas, porém sucumbe diante de anomias. Tem metodologia para interpretação e aplicação. Uma ordem atrás de um aparente caos” (ARONNE: 2010, p. 68).

[8] “E no entanto, no entanto… negar a sucessão do tempo, negar o eu, negar o universo são desesperos aparentes e consolos secretos… o tempo é a matéria de que sou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo. O mundo, desgraçadamente, é real; e eu, desgraçadamente, sou Borges” (BORGES Apud ARONNE: 2010, p. 196-197).

[9] “O espaço privilegiado pela regulação do Direito Privado tradicional, cujas raízes vorazes estenderam-se até a Pós-Modernidade e corporificam-se em nova tardia codificação civil, é ocupado por um sujeito abstrato, mitêmico, virtualizado e solipcista; no jargão de textos culturalmente franciscanos, o denominado Homem Médio. Esse “Homem”, sem mirada e, intencionalmente, nunca concretizável (Nietzsche), nasceu com o Direito Civil, na Modernidade ocidental. Dando maior juridicidade, em algum sentido, ao sujeito (reduzindo-o bem mais à condição de sujeitado), em mesma medida que, noutro sentido, retirava-lhe humanidade (Pascal). Paradoxal é o fato de que esse Homo Economicus, singular por excelência (Derrida), no radical iluminista da solidão caracterizadora de suas modernizantes liberdades (Kant), resta caracterizado ou reduzido por uma relação qualificada. A relação jurídica; que protagoniza o roteiro codificado da vida burguesa, entrincheirando seus quatro personagens principais: Marido, Contratante, Proprietário e Testador. Paradoxalmente também, esse sujeito não tem rosto, conforme estatui normativamente na sua razão patrimonial, para constituir-se em uma máscara (Fachin); do italiano persona. Se, conforme o art. 1º da codificação, pessoa é todo àquele capaz de direitos e obrigações, perde essa condição àquele cuja capacidade apontada, seja ou esteja vulnerável ou impossibilitada. Daqui emergem consequências de violência real e simbólica (Foucault), cujos sentidos transpassam a sociedade brasileira, replicando-se e reproduzindo-se na historicidade econômico-social, cujo primeiro enfrentamento deve apoiar-se na vaga constitucional ora vintenária (Tepedino); do qual em muitos aspectos importa em um negativo dessa realidade, a ser revelado em novos e mais humanistas matizamentos (Molinaro), sob pena de reduzirmos o território ao mapa (Boudrillard) perdendo a noção de onde vivemos e situamo-nos” (ARONNE: 2010, p. 89-90).

ALVES, A. C. da R. Direitos fundamentais e sistemas caóticos no direito público e direito privado. 2013. 128 f. Dissertação – Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2013. 

ARONNE, Ricardo. Direito civil-constitucional e teoria do caos: estudos preliminares. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2006.

________________. Razão & caos no discurso jurídico e outros ensaios de direito civil-constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.

GLEICK, James. Caos: a criação de uma nova ciência. Tradução Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. Tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

_______________________. Deus me livre de ser julgado pelo seu bom senso. In: Revista Consultor Jurídico. 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-nov-20/limite-penal-deus-me-livre-julgado-bom-senso. Acessado em: 21/11/2015.


Igor Domingos Altíssimo

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Igor Domingos do Altíssimo é acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário de Sete Lagoas, cursando o sexto período. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Chess play // Foto de: Remco Wighman // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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