Por Affonso Ghizzo Neto – 16/04/2017
O fenômeno da corrupção é tão antigo quanto a humanidade, comum aos países desenvolvidos, assim como aos em via de desenvolvimento. Entretanto, modernamente – ao contrário do que ocorria num passado recente –, vem merecendo uma maior atenção por parte dos organismos internacionais, especialmente em razão da compreensão coletiva e universal do fenômeno, com efeitos negativos para a economia (macro e micro) mundial, com outros graves resultados para a humanidade, incluindo os países mais desenvolvidos.[1]
No Brasil a corrupção pode ser melhor compreendida a partir da própria sociedade brasileira, sua história, valores e funcionamento institucional. Diversamente de sociedades politicamente organizadas, estruturadas pela racionalização da ação política e administrativa – com mecanismos de controle eficientes e capazes de impor punição exemplar aos infratores –, no Brasil, em regra, os mecanismos legais de fiscalização e de controle não se prestam efetivamente aos objetivos oficiais a que se destinam, servindo como mera formalidade para justificar práticas corruptas institucionalizadas.
Como já tivemos oportunidade de observar[2], o entendimento da realidade nacional passa necessariamente pela compreensão das origens da formação da ética nacional, sendo indispensável a análise das raízes mais profundas do fenômeno da corrupção, não só para compreensão, como para a solução do próprio problema, que também deve analisar o atual estágio das instituições nacionais, desde o funcionamento até a verdadeiras razões práticas objetivadas.
Movimentos sociais, revoluções deflagradas, reformas administrativas e processos eleitorais são levados a efeito, todos sem resultados efetivos no combate ao fenômeno da corrupção nacional, restando sólida a mentalidade e os métodos de condução da coisa pública. Ao que parece, cada vez mais se apresenta modernamente um grande volume de valores morais negativos, seja no trato da coisa pública, ou no da propriedade privada, adquirindo a corrupção formas mais sofisticadas e planejadas conforme as necessidades apresentadas a cada tempo. Como destaca Zancanaro,
Grande número de novos dirigentes políticos e muitos de seus auxiliares – alheios aos princípios éticos propalados em discurso de campanha eleitoral – têm-se portado, junto aos órgãos diretivos e às funções públicas, como se estivessem administrando seus negócios privados.
As eventuais medidas corretivas que têm sido postas em prática pelas autoridades judiciárias, objetivando coibir abusos, têm atingido mormente administradores e agentes da vida pública de menor peso e importância, acarretando, com o passar do tempo, um significativo e crescente descrédito na qualidade moral dos homens públicos e no valor das leis e das instituições políticas. Não se percebeu ainda por parte das lideranças políticas, supostamente saudáveis e esclarecidas e da própria sociedade como um todo, um real interesse em instaurar mecanismos eficientes de controle da ação político-administrativa, com vistas à superação do estigma da corrupção. Tais constatações favorecem à conclusão de que o problema da corrupção no Brasil possui um caráter estrutural e não conjuntural.
Como combater, pois, uma moléstia, se percebemos apenas difusamente os seus sintomas? Parece óbvio que atacar os efeitos da corrupção, ignorando suas raízes mais profundas, seria o mesmo que abandonar os recursos da medicina preventiva para dedicar-se à abertura de nosocômios. Em breve, toda sociedade estará doente.[3]
A não percepção social do avesso da realidade nacional, a hipocrisia generalizada e o desconhecimento da história e das próprias origens (a invenção e a colonização do Brasil), bem como a ausência de uma reflexão consciente do sujeito pensante, não permitem a compreensão do fenômeno da corrupção na sua integral composição.
O estudo dos fundamentos morais da corrupção brasileira, a partir do retorno à espinha dorsal da cultura política tradicional lusitana, parte do pressuposto de que nela se encontram as raízes dos valores negativos agregados à cultura nacional.
Os valores incorporados ao caráter dos aventureiros e colonizadores portugueses foram, sem dúvida, transportados no Brasil, encontrando aqui um terreno fértil para reprodução de hábitos individualistas, encarnados no rei e seus representantes, identificados, em resumo, com a aversão ao trabalho sistemático, o gosto pela luxúria, o desejo intenso pelo desfrute dos bens, a degradação dos costumes e a impunidade dos crimes. Tais valores acabaram por reproduzir o caminho medular da tortuosa ética que tem se cristalizado até os tempos de hoje na atividade pública brasileira.
A corrupção nacional é decorrência da moral predatória caracteristicamente dominante no Estado patrimonial, que, conscientemente ou não, formatou um conjunto de padrões sóciopolíticos de comportamento ético adverso às formas racionais mais modernas de trato da res pública. Tal comportamento, hábitos e costumes restaram cristalizados na mentalidade do homem português, orientada pelo pouco apego à lei, o uso pessoal do erário, a valorização da ineficiência, a aversão ao trabalho produtivo, o gosto pela ociosidade, a falta de regramento e disciplina, bem como a banalização da corrupção e da impunidade.
Com acerto, pode-se afirmar que o desenvolvimento da corrupção brasileira é decorrência da moral predatória que se conformou nos tempos das aventuras ultramarinas, consequência natural da reprodução no Brasil dos mesmos padrões morais que se verificavam na Metrópole, aliado a outras circunstâncias potenciais, como a grandeza do território nacional, a difícil situação geográfica, a lentidão das comunicações e a falta de controle político, financeiro e jurídico por parte do Reino de Portugal. A situação conspirava para fixação e fermentação dos valores negativos sociais constatados na cultura de nossos colonizadores.
Esse quadro, dramático e desolador, propiciou a edificação de novas artimanhas e criativas técnicas destinadas a burlar o ordenamento legal em vigor. A arrecadação do erário, os crimes, as fraudes, os privilégios, a utilização do público como privado, enfim, desvirtuamentos diversos foram banalizados na prática cotidiana, no inconsciente coletivo e na formação da sociedade brasileira.
Com a invenção do Brasil, de corruptos e de corruptores, os interesses individuais dominantes sobrepuseram-se à ordem jurídica. O embrião da sociedade nacional, portanto, foi impedido de conhecer o desenvolvimento de padrões sociais de comportamento ético, estimulado a confundir o público com o privado, a reconhecer no ordenamento normativo um instrumento de manipulação do poder, e a comprovar na banalização da impunidade o proveito da corrupção, já institucionalizada.
Nesse contexto, cumpre verificar o atual estágio e solidez de nossas instituições e Poderes, especialmente em tempos em que alguns “teimam” em fazer cumprir o mandamento constitucional, ousando afrontar um sistema onde a corrupção é endêmica com práticas criminosas já institucionalizadas na administração pública. Segundo Sarah Chayes, em sua obra “Ladrões de Estado”[4], a corrupção institucionalizada pode causar muito mais do que graves rupturas sociais, levando ao extremismo violento. É o que a autora identifica como basic fact, demostrando que onde existe má governança – ausente o Estado de Direito – terceiros ocupam este espaço. Ao abordar a cleptocracia confirma que governos se transformam em verdadeiras organizações criminosas que estruturam as engrenagens do Estado visando exclusivamente o enriquecimento pessoal de seus membros.
A situação torna-se mais dramática em sociedades como a brasileira, caracterizadas por espaços marcados por uma alta percepção social da corrupção, onde essas organizações criminosas solidificam círculos viciosos clientelistas de difícil ruptura. Nestes entornos a desconfiança social incentiva o funcionamento parcial das instituições de governo e a corrupção pode se converter em um grave problema de ação coletiva.[5]
Este tipo de modelo de organização criminosa instituído em solos brasileiros acaba sendo bem-sucedido justamente porque angaria os apoios sociais necessários para o seu funcionamento e sobrevivência, trabalhando com a colaboração de outras redes de poder através de articulações nacionais e internacionais, na iniciativa pública e privada, sempre com o objetivo comum e primordial do lucro e da vantagem financeira.
A compreensão do fenômeno da corrupção no Brasil, que não se limita unicamente ao contexto histórico e cultural, apresenta-se como uma ocorrência muito mais complexa e disseminada socialmente, solidificada através de redes clientelistas fortes e quase que indestrutíveis. Em definitivo, longe de admitir uma “Justiça a qualquer preço” (arbitrária e sem a observância dos direitos fundamentais), urge instrumentalizar ainda mais o sistema judicial (polícias, Ministério Público e Poder Judiciário) para o fiel cumprimento de seus deveres constitucionais para que, uma vez independentes e preparados, possam levar a efeito o conteúdo normativo da Constituição da República, punindo exemplarmente os comprovadamente culpados, observado o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório. Por fim, ao reafirmar o Estado de Direito, torna-se necessário recriar novas estruturas e instrumentos que fortaleçam a luta contra a corrupção na base social, especialmente através de iniciativas e ações práticas destinadas à consolidação de uma nova cultura social brasileira: A cultura do controle social local e efetivo!
Notas e Referências:
[1] Jimènez, Fernando Sánchez. A armadilha política: a corrupção como problema de ação de coletiva, tradução: Affonso Ghizzo Neto. Revista do Conselho Nacional do Ministério Público: improbidade administrativa / Conselho Nacional do Ministério Público. Brasília. CNMP, n. 5, 2015.
[2] Ghizzo. Affonso Neto. Corrupção, estado democrático de direito e educação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.
[3] Zancanaro, Antonio Frederico. A corrupção político-administrativa no brasil. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994, p.8.
[4] Chayes, Sarah. Thieves of state: why corruption threatens global security. W.W. Norton & Company, New York, London, 2015, p. 205.
[5] Um dilema de ação coletiva ocorre quando os indivíduos que fazem parte de um mesmo grupo se comprtam de maneira racional a partir do ponto de vista individual buscando seus interesses particulares. Entretanto, assim agindo, acabam por gerar uma situação coletiva em que todos saem perdendo.
. . Affonso Ghizzo Neto é Promotor de Justiça. Doutorando pela USAL. Mestre pela UFSC. Idealizador do Projeto “O que você tem a ver com a corrupção?”. aghizzo@gmail.com / aghizzo@usal.es. .
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