Beijo violento no carnaval: constrangimento ilegal ou estupro?

11/02/2016

Por Yuri Carneiro Coêlho e Lucas Correia de Lima - 11/02/2016

Passado o nosso carnaval, um megaevento nacional, inúmeras situações acontecem não apenas reveladoras de impactos de ordem social, econômica, cultural, mas também de natureza jurídica. O carnaval de 2016 trouxe uma repercussão mais peculiar, atingindo a esfera criminal e nesse sentido, uma das campanhas de segurança pública à festividade carnavalesca é a advertência de que aqueles que perpetrarem o famigerado ato de beijar, forçadamente ou de surpresa, responderão pelo crime de estupro, previsto no artigo 213 do Código Penal.

A campanha segue o entendimento recentemente veiculado na mídia, no ano passado, quando um homem foi sentenciado, na comarca de Salvador, a 07 anos de prisão pela prática, verdadeiramente odiosa e repugnante, de beijar uma mulher sem seu consentimento, em pleno carnaval[1], demonstrando não apenas desrespeito à sua condição de mulher como também à esfera da liberdade alheia.

Somos do entendimento pacífico que a tradição do beijo à força, ou roubado deve ser abolida por afrontar a liberdade humanada, notadamente vinculada às condições de expressão da sexualidade humana, sendo majoritariamente vítima as mulheres, despontando a aludida tradição em mais um dos muitos frutos que cai da árvore do machismo, enraizada culturalmente em nossa sociedade.

Para uma boa prevenção desta violência, indispensável se faz que políticas públicas atuem favoravelmente à construção de um projeto de sociedade onde homens sejam educados a desenvolver relações de gênero pautadas na sensibilidade do respeito à vontade do outro, mesmo porque toda resposta que se cogite em face de qualquer violência, principalmente a histórica misoginia, para vencer essa desestrutura construída, como diria Campos (2010, p.39) “requer mais do que simples declarações legais”[2].

Contudo, o que se verifica como resposta exclusivamente à violenta tradição machista não veio acompanhada de qualquer outra medida política e pedagógica acima ilustrada, tratando-se de pura aplicação da norma penal como resposta ao “problema carnavalesco da beijação”. Aliás, a crença num direito criminal como resposta eficaz em hipóteses como essas, possui amplo respaldo de correntes progressistas: Um sistema de justiça eficiente resulta em condenações mais eficazes e severas e tem um efeito não só reparador, mas também de prevenção, ao enviar uma mensagem inequívoca de que a violência contra a mulher não é admissível sob nenhuma circunstância. (Instituto Maria da Penha; ONU Mulheres Brasil; 2014)

Tecnicamente falando, muito se debate sobre a incidência do comportamento do beijo forçado como tipo penal de estupro, havendo correntes jurídicas que se dividem entre a aplicação do crime de constrangimento ilegal, ou ainda, de natureza penal mais leve, a contravenção de importunação ofensiva ao pudor. Como já tivemos a oportunidade de observar, “essa distinção tem fundamento se observarmos a evolução da sociedade em relação aos valores na esfera da sexualidade” (CÔELHO, 2015, p. 763).

Na Holanda[3], recentemente, se alterou o entendimento jurisprudencial prevalecente, considerando a Suprema Corte local, no julgamento de n.º 11/05421, de 2013, o crime de atentado violento ao pudor o “beijo francês” (Tongzoen). A decisão teve como parâmetro critérios de proporcionalidade na aplicação da lei penal daquele país, convindo os julgadores que não se poderia comparar o ato do ósculo forçado a ações delitivas sexuais de consequências mais severas à integridade da vítima, como coito anal ou cópula carnal.

A aplicação do axioma da proporcionalidade, em regra, permite “uma interpretação do tipo penal mais consentâneo com a pena a ser aplicada pela ação do agente” (CÔELHO, 2015, p. 762), dele decorrendo ainda a máxima jurídica da exigibilidade da escolha do meio mais suave (der Grundsatz der Wahl des mildesten Mittels), onde comportamentos delitivos menos graves exigem menor reprimenda, de modo que não seja o operador do direito um Dom Quixote a ver um dragão em cada moinho de vento.

Não questionamos a necessidade de uma intervenção estatal como forma de prevenção e repressão deste fato social, mas, entretanto, é preciso observar que normativamente, a imputação da conduta do beijo violento como estupro, observando-se apenas a conformação ao aspecto formal da norma do art.213 do CP revela-se em linha de conflito com a aplicação de um direito penal mínimo, que comportaria a tipificação da conduta no art.146 do CP, constrangimento ilegal, fruto exatamente da necessária ponderação sobre a forma de lesão ao bem jurídico, considerando-se claramente o desvalor da ação e do resultado.

Não é possível comparar a ação praticada com a violência fruto da conjunção carnal, do sexo oral ou anal praticado sem consentimento com o constrangimento do beijo forçado, independente da reprovação moral à esta ação, o que somente pode nos levar a pensar que mais uma vez o governo confunde seu papel de regulador das relações sociais em determinados aspectos com o de realização de políticas públicas interventivas da liberdade da pessoa decorrentes de um pensamento semelhante ao desenvolvido pela “teoria das janelas quebradas” ou "broken windows theory”.

Esperamos que passado este período carnavalesco, que os resultados desta ação interventiva anunciada como política pública não se revele em uma desastrada intervenção na liberdade alheia, e que a repressão e prevenção à esta ação machista e violenta do beijo forçado seja tratado de outra forma pelos poderes públicos, inclusive no bojo de campanhas preventivas para a cessação da violência contra as mulheres.


Notas e Referências:

[1] http://g1.globo.com/bahia/noticia/2015/02/homem-pega-pena-de-sete-anos-de-prisao-por-beijo-forcado-no-carnaval.html

[2] O artigo 8 da Convenção de Belém do Pará estabelece que os Estados adotarão, progressivamente, medidas específicas, inclusive programas destinados a, entre outros objetivos, “modificar os padrões sociais e culturais de conduta de homens e mulheres, inclusive a formulação de programas formais e não formais adequados a todos os níveis do processo educacional, a fim de combater preconceitos e costumes e todas as outras práticas baseadas na premissa da inferioridade ou superioridade de qualquer dos gêneros ou nos papéis estereotipados para o homem e a mulher, que legitimem ou exacerbem a violência contra a mulher” (item “b”).

[3] http://www.conjur.com.br/2013-mar-13/holanda-muda-jurisprudencia-decide-beijo-forcado-nao-estupro


Yuri Carneiro Coêlho

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Yuri Carneiro Coêlho é Mestre e Doutor em Direito pela UFBA. Professor de Direito penal Unijorge / Ruy / Estácio (SSA) e FAN (FSA). Professor das Pós-Graduações em Direito Penal da UCSal / SSA e do Damásio Educacional (SP).

 

Lucas Correia de Lima. . Lucas Correia de Lima é Advogado. Pós Graduando em Direito Penal pela Faculdade Damásio. Pesquisador assistente. . .


Imagem Ilustrativa do Post: The kiss // Foto de: Leonardo Veras // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/leonardo_veras/12737248933

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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