Atenção leitores machistas: este texto trata de uma utopia!

14/05/2016

Por Fernanda Pacheco Amorim – 14/05/2016

A propagação e posterior manutenção de uma cultura instaurada pode se dar de diversas maneiras e uma das mais expressivas é a linguagem. Muitas vezes, sem sequer percebermos, reproduzimos conceitos machistas e pertencentes ao patriarcado: a cultura em que vivemos. Não nos espantamos com a utilização da expressão “por o pau na mesa”, quando alguém quer dizer que colocou “ordem” em algo, mas nos incomodamos ao ouvir a expressão “grelo duro” utilizada para descrever “pessoas de fibra”.

Judith Butler em sua obra Problemas de Gênero lecionou:

Para a teoria feminista, o desenvolvimento de uma linguagem capaz de representá-las completa ou adequadamente pareceu necessário, a fim de promover a visibilidade política das mulheres. Isso parecia obviamente importante, considerando a condição cultural difusa na qual a vida das mulheres era mal representada ou simplesmente não representada[1].

Segundo Butler a linguagem é o meio propício à subversão. A alteração da cultura vigente começa através da linguagem empregada por todos, inclusive pelas mulheres e os movimentos feministas.

Em razão disso, Butler faz uma critica contundente à manutenção da forma de linguagem representativa proposta pela teoria feminista, que transforma as mulheres – que aqui devem ser entendidas de maneira plural enquanto gênero – em um bloco mulheres, mantendo as mesmas estruturas repressoras, através do próprio movimento.

Neste sentido Butler:

Não basta inquirir como as mulheres podem se fazer representar mais plenamente na linguagem e na política. A critica feminista também deve compreender como a categoria das “mulheres”, o sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais se busca a emancipação[2].

Portanto, vê-se que dentro do próprio movimento feminista a utilização da linguagem – que ajuda a manter as relações de poder – por vezes é feita de maneira equivocada, tentando enquadrar as mulheres, enquanto sujeito, no bloco mulheres.

Isto é importante para se entender que as instituições julgadoras foram formadas noutra época, e os juízes e desembargadores que a elas pertencem tiveram sua formação também noutra época. São instituições e pessoas em que a cultura patriarcal está viva, entranhada, enlaçada às raízes.

Dentro do próprio movimento feminista por vezes é necessário chacoalhar as estruturas e relembrar que cada mulher é um sujeito e que não se pode falar no bloco mulheres. Imagine, caro leitor, dentro do Judiciário onde, para muitos, a mulher continua sendo o Outro onde a mulher é vista como bloco, – o que os movimentos feministas sérios buscam evitar fortemente – onde a mulher ainda é propriedade do homem, onde a mulher não é[3][4].

Não é difícil encontrar decisões que demonstrem o machismo, a manutenção de cultura, a opressão, a falta de respeito, a falta de empatia, enfim, a ratificação do contrato sexual[5][6] outrora firmado por parte do Poder Judiciário brasileiro.

Vitória de Macedo Buzzi, sobre a justiça criminal escreveu: “É um sistema não apenas ineficaz para a proteção da mulher, como é também responsável por duplicar a violência exercida contra elas, por ser ele próprio um sistema de violência institucional”[7].

A mulher é violentada na esfera privada com o aval da sociedade, sob o falso pretexto de que “briga de marido e mulher não se mete a colher”, e ao buscar auxílio a mulher é violentada no espaço público – local onde até o hoje o acesso lhe é negado, mesmo que mascaradamente – pelas instituições que deveriam lhe proteger.

E ao se buscar uma alternativa, com a ideia de cada mulher como sujeito e entendendo a diferença substancial entre vulnerabilidade – que pressupõe empoderamento – e vitimismo – que pressupõe um agente externo como “salvador” – surge a possibilidade da justiça restaurativa, mais especificamente a mediação.

Segundo Luis Alberto Warat:

A mediação como ética da alteridade reivindica a recuperação do respeito e do reconhecimento da integridade e da totalidade de todos os espaços de privacidade do outro. Isto é, um respeito absoluto pelo espaço do outro, é um ética que repudia o mínimo de movimento invasor em relação ao outro. É radicalmente não invasora, não dominadora, não aceitando dominação sequer nos mínimos gestos[8].

Nós mulheres somos ainda vulneráveis à dominação, tanto no espaço privado – exercida pelos cônjuges, pais, namorados, etc. –, quanto no espaço público – exercida pela sociedade como um todo e principalmente pelo Judiciário que ao lidar com questões de gênero, habitualmente, utiliza como base fundamentos da cultura patriarcal.

Questões que envolvem conflitos relativos a gênero precisam ser vistas com outros olhos. Casos de violência doméstica e até casos de crimes sexuais (por que não?), precisam ser trabalhados através de outra linguagem, uma linguagem subversiva!

Warat ensinou:

Os conflitos reais, profundos, vitais, encontram-se no coração, no interior das pessoas. Por isto é preciso procurar acordos interiorizados. E por isso que a mediação precisa escolher outro tipo de linguagem. Ela precisa da linguagem poética, da linguagem dos afetos, que insinue, a verdade e não a aponte diretamente; simplesmente sussurre, e não grite. Um sentido vem a nós, quando há uma conexão profunda. Uma linguagem usada como estratégia, de tal modo que os corações em conflito possam ser tocados. Estamos falando de uma linguagem poética sem nenhuma pretensão estética ou literária[9].

Conforme diz Warat, a mediação utiliza-se da linguagem do amor, que pressupõe respeito e empatia pelo o outro, que pressupõe entender o outro como ser e não como ausência. Portanto, a utilização deste mecanismo para conflitos em questões de gênero pode ser uma alternativa à violência institucional sofrida pelas mulheres que ingressam no Judiciário.

Os juizados de violência doméstica já existem, a proposta da mediação em questões específicas de gênero já é uma realidade, mas enfrenta sérios obstáculos[10].

Há uma possibilidade para subversão da linguagem predominante no Judiciário ao tratar de questões de gênero: a mediação. Mas a real e plena utilização deste instituto hoje não passa de uma utopia!

Segundo o dicionário utopia possui os seguintes significados: 1 – O que está fora da realidade, que nunca foi realizado no passado nem poderá vir a sê-lo no futuro. 2 – Plano ou sonho irrealizável ou de realização num futuro imprevisível; ideal. 3 – Fantasia, quimera.

Acredito e espero que estejamos falando de um sonho realizável num futuro nem tão imprevisível assim, espero que estejamos falando de um futuro próximo, espero que as mulheres que sofrem violências, domésticas, psicológicas, sexuais, etc., deixem de sofrer violências institucionais por parte de um Poder Judiciário mantenedor da cultura patriarcal opressiva, espero que a mediação, calcada no amor, empatia e respeito, torne-se uma realidade o mais breve possível. E a luta para que isto aconteça estará cada vez mais viva e sustentada por diversas mulheres e homens de “grelo duro” que preferem amor à opressão.


Notas e Referências:

[1] BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade; Trad. Renato Aguiar. – 2o ed. – Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2008, p. 18.

[2] Ibidem, p. 20.

[3] Simone de Beauvoir entende o Outro como ausência. O homem representa o ser, a mulher o não-ser.

[4] BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo; tradução Sérgio Milliet. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

[5] Em artigo anterior explico a ideia do contrato sexual, leia sobre isto em http://emporiododireito.com.br/a-paixao-e-o-controle/.

[6] PATEMAN, Carole. O contrato sexual; tradução Marta Avancini. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

[7] BUZZI, Vitória De Macedo. Pornografia de vingança: contexto histórico-social e abordagem no direito brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 93.

[8] WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: ofício do mediador. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 54.

[9] Ibidem, p. 29.

[10] Soraia da Rosa Mendes escreveu um excelente artigo sobre isto. Leia em http://emporiododireito.com.br/justica-restaurativa-e-violencia-domestica/.


Fernanda Pacheco Amorim

. . Fernanda Pacheco Amorim é formada em Direito, feminista e professora em construção. . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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