Aspectos da experiência neurojurídica: livre - arbítrio, responsabilidade e racionalidade (Parte 4)

02/09/2016

Por Atahualpa Fernandez e Manuella Fernandez  - 02/09/2016

Leia também: Parte 1, Parte 2, Parte 3Parte 5Parte 6

“We cannot afford for people to internalize the truth about free will”.

S. Smilansky

Livre-arbítrio (2)

Para Patricia Churchland, a questão de se somos ou não livres em nossas decisões depende do que entendamos por livre-arbítrio. Se por livre-arbítrio entendemos que agimos de uma forma controlada de modo que somos capazes de atuar de acordo com nossas preferências, crenças e intenções, e de reconhecer as consequências de nossas ações, então (neste sentido e somente neste) poderíamos dizer que temos livre-arbítrio. Contudo, se por livre-arbítrio entendemos uma espécie de criação desde “nada” por uma alma não física, então não, não temos uma coisa assim. Não elegemos nossas preferências, crenças nem intenções, uma vez que o que pensamos, sentimos e fazemos depende de processos que não conhecemos.

De fato, visto que a maior parte do que o cérebro faz se produz fora de nossa consciência (o que inclui nossas preferências, crenças, eleições e decisões), há que descartar as intenções conscientes entre as causas das ações. Admitir o contrário, explica Daniel Wegner, é cair em uma ilusão: umas vezes, as pessoas não são conscientes de suas ações; outras, creem que realizam intencionalmente coisas que em realidade não fazem; e outras, as pessoas operam de forma automática, sem motivo aparente. Dado que nosso sobrecarregado cérebro deve tomar decisões constantemente mediante um processo inconsciente, Wegner fala de “vontade inconsciente” em lugar de livre-arbítrio.

A vontade inconsciente toma decisões vertiginosamente baseando-se no que sucede no entorno, umas decisões nas que desempenham um papel fundamental a forma em que se desenvolveu nosso cérebro e o que aprendemos desde então: dado o entorno complexo e sempre cambiante em que vivemos, não é possível que nossa vida esteja predeterminada de forma previsível, e dada a forma em que se desenvolveu nosso cérebro não é possível que exista um completo livre-arbítrio. Não obstante, todos sentimos que podemos fazer eleições livremente e a isso é o que chamamos “livre-arbítrio”, que não é mais que uma ilusão necessária, segundo Wegner, para imprimir na ação nosso selo de identidade: “Esto es mío, ése soy yo”.[1]

De mais a mais, a conduta do ser humano evolucionou da mesma maneira que a do resto dos animais: “tendremos más algoritmos, más lineas de código de programación si se quiere, pero no dejamos de ser criaturas programadas por la selección natural”. O próprio autocontrole (a capacidade de esperar, de inibir determinadas condutas[2]) de que tanto presumimos e nos orgulhamos tampouco nos situa à margem da natureza. Se podemos exercer esse autocontrole é porque temos umas fibras nervosas que vão desde o córtex cerebral ao sistema límbico e que cumprem uma função inibidora de nossos instintos básicos (e o controle que temos é só parcial). “Y esas fibras las ha puesto ahí la selección natural y lo ha hecho por una buena razón, porque en animales sociales como los humanos inhibir esos instintos en situaciones grupales hace que pasen más copias de genes a las generaciones futuras”. (P. Malo)

Portanto, a ideia de livre-arbítrio fundada na capacidade de autocontrole ou controle volitivo (embora selecionada pela seleção natural porque é adaptativa) não somente não se salta as leis da evolução e da física (e nem provém de Céu), senão que, apesar de todas as nossas esperanças e intuições acerca da liberdade de eleição e decisão, na atualidade não existe prova alguma, não há nenhum argumento, que demonstre sua existência de maneira convincente (D. Eagleman). Do que resulta que a forma como enfocamos a valoração das questões do livre-arbítrio, da culpabilidade, da responsabilidade e o funcionamento do sistema legal a este nível não é compatível com os descobrimentos da boa neurociência, das ciências do comportamento e da cognição, isto é, de que já não é possível sustentar-se à vista das provas existentes.

Inclusive quando não sofremos nenhuma lesão cerebral ou transtorno mental tampouco temos a (plena) capacidade de eleger atuar de outra maneira. Pensemos no exemplo da psicopatia. Cada vez mais os autores estão sugerindo que os psicopatas não são livres e que não podem atuar de outra maneira (e propõem alternativas aos fundamentos morais e legais que utilizamos para condenar-lhes e castigar-lhes). A verdade é que nem os psicopatas nem os não-psicopatas têm livre-arbítrio porque nenhum deles pode eleger.

Por quê? Porque se o livre-arbítrio, como dissemos antes, é a liberdade para eleger outra coisa, isso não o podemos fazer nem psicopatas nem não-psicopatas. A um psicopata não se lhe pode pedir que responda ao castigo ou que mostre as condutas morais próprias de um cérebro moral, porque não o tem. Da mesma forma, a uma pessoa com cérebro moral normal tampouco se lhe pode pedir que tenha as condutas de um psicopata. Eu não posso sair à rua e violar a primeira mulher que desperte minha atenção, roubar o relógio de um indivíduo simplesmente porque me encaprichei com ele (e de passagem dar-lhe um tiro se mostra resistência) ou roubar um banco [estamos caricaturizando um pouco; mas, se o indulgente leitor (a) suspeita que os exemplos utilizados tratam de situações extremadamente adornadas ou extravagantes, intente, em um domingo qualquer, atuar como um verdadeiro psicopata por algum shopping de sua cidade]. Simplesmente eu faço o que está em minha natureza fazer e um psicopata faz o que está na sua, naturezas que nem ele nem eu elegemos (fazemos o que fazemos porque somos como somos, porque o cérebro restringe previamente nossas possíveis opções e, pior ainda, escolhe uma delas antes mesmo de que nos demos conta). Ter livre-arbítrio seria poder tomar o outro caminho, eleger a outra opção: ter as duas opções (e poder efetivamente levar a cabo a elegida), não ter somente uma.

Dito isto, a ideia de livre-arbítrio e/ou de que a consciência, atuando livremente, é a causa das ações parece ser uma pura ficção cerebral. Temos graus de liberdade para fazer o que queiramos (mais que uma ameba, um rato ou um chimpanzé), mas nenhuma liberdade para querer o que queiramos. Isto não é, em absoluto, contraditório com que nossa experiência de decidir é um processo real com a função de atuar de acordo com nossas preferências, crenças, eleições e intenções (com nossa natureza), e de reconhecer e selecionar diferentes opções de acordo com as previsíveis consequências que têm para o organismo; por conseguinte, devemos comportar-nos “como se” tivéramos livre-arbítrio, a despeito de que este seja uma ilusão do cérebro. Nos sentimos agentes da conduta ainda que tão somente se trata de conhecimento ou consciência de haver realizado dita conduta. Quer dizer, o cérebro atua e logo crê que foi sua vontade a impulsora de dita ação ou, o que é o mesmo, atua e logo crê que houvera podido eleger outra opção - ainda quando já não seja possível retroceder.

O que significa que existem razões poderosas para crer que estamos submetidos a forças que não controlamos ou que não podemos atuar de forma distinta a como o fazemos. E se bem que os defensores de uma suposta liberdade humana incondicional rechacem o fato de que nossas ações estejam causadas, não se nos ocorre como pode melhorar a coisa se a causa é o puro azar, o ambiente ou o simples fato de não existir nenhuma causa[3]. Nas sensatas palavras de Ranulfo Romo: “Entiendo que el libre albedrío no existe; entiendo que la única forma racional de relacionarnos unos con otros es asumir que existe, aunque en lo profundo sabemos que no es así. Es probable que no seamos otra cosa que títeres de nuestras neuronas: quienes toman las decisiones son los circuitos neuronales, que en su trabajo por detrás del nivel de consciencia hacen estas operaciones y finalmente mandan una decisión para que creamos que la hemos tomado nosotros. Es una ilusión creer que somos dueños de nosotros mismos”.

Resultado: projetamos um «eu livre» em nossas ações porque ao fazê-lo podemos explicar a aparente coerência destas. Em muitos casos, a liberdade que encontramos não é mais que imaginárias. Também é curioso o fato de que atribuamos ao «eu livre» a maioria da atividade cerebral, quando em realidade esse «eu» é uma instância tardia em comparação com o inconsciente que governa a imensa maioria de nossa atividade cerebral ao serviço da sobrevivência. Apenas falta conhecer por que é gerado esse «eu livre» pelo cérebro, e qual é sua verdadeira finalidade.


Notas e Referências:

[1] É possível resumir a proposta de Wegner – para quem a mente é como um mago que produz umas aparências para seu dono, mas não sabe em realidade o que causa suas próprias ações -, da seguinte maneira: (i) nós percebemos uma relação causal entre nosso pensamento (que costuma preceder à ação) e a ação. Mas que B siga a A não quer dizer que A seja a causa de B. A noite segue ao dia, mas o dia não é a causa da noite, senão que ambos estão causados por C, a rotação da Terra. É, portanto, possível que tanto pensamento como ação sejam causados por algo que não observamos; (ii) processos mentais inconscientes dão  lugar ao pensamento consciente acerca da ação; (iii) procesos mentais inconscientes dão lugar à ação; (iv) pode haner, ou não haver, uma relação entre os procesos mentais inconscientes que dão lugar ao pensamento e os que dão lugar à ação; (v) pensamentos e atos co-ocorrem  porque os pensamentos se lançam à consciência como “previews” do que ocorrerá. O pensamento é um sinal, (algo similar ao velocímetro de carro), um indicador, mas não é a causa do movimento do carro: o que move o carro é o motor, não o velocímetro; (vi) as causas reais das ações humanas são inconscientes e nunca aparecem na consciência.

[2] Libet conserva um certo vestígio da ideia de livre-arbítrio em sua noção de veto (a capacidade da consciência para bloquear ou abortar um ato iniciado pelo cérebro; não sobra dizer que também pode haver uma atividade cerebral inconsciente que seja prévia ao veto ou inibição). Desde alguns pontos de vista neurocientíficos, a essência do livre-arbítrio parece ser – o qual é bastante irônico - a capacidade de inibição, a capacidade de escolher o não fazer algo. O que distingue aos seres humanos mais que qualquer outra coisa de seus cercanos parentes primatas é o desenvolvimento de um sistema mais elevado do “eu”,organizado fundamentalmente em mecanismos inibitórios (M. Solms & O. Turnbull; R. Baumeister). O problema é que nunca podemos saber “cuándo hemos ejercido ese veto (o si lo hemos llegados a ejercer). Nuestra experiencia subjetiva es con frecuencia (si no siempre) ambigua” (J. Gray). Quando estamos a ponto de atuar, não podemos predizer o que vamos a fazer. Mas pode que, quando miramos atrás, vejamos nossa decisão como uma etapa mais de um rumo que já havíamos empreendido. Algumas vezes, nos parece que nossos pensamentos são “hechos que nos sobrevienen y, otras, creemos que son nuestros actos mismos. Nuestra sensación de libertad se activa al pasar de uno a otro de esos dos ángulos de visión. El libre albedrío es, pues, una ilusión creada por la perspectiva”. (J. Gray)

[3] O determinismo biológico tem sua contrapartida no determinismo meioambiental. Também podemos encontrar um amplo abanico de causas  que podem levar a diminuir  a responsabilidade de nossas condutas.  Se a causa recai nos meios de comunicação, os maus tratos na infância ou a educação por parte dos pais também é possível que se exculpe ao individuo de seus atos.  Sempre se pode escusar-se nas substâncias que tomou a mãe durante a gravidez, as más companhias, a probreza, a falta de oportunidades, os maus vícios, ou em geral à sociedade como máximo responsável de nosso comportamento. A lista de atenuantes que os agentes jurídicos intentam buscar  pode levar, inclusive, a situações graciosas como a que apareceu em uma “vinheta” no New Yorker faz uns anos referindo-se às declarações de uma mulher defendendo-se  ante um tribunal: “Es verdad, mi marido me pegaba por la infancia que tuvo; pero yo le maté por la que tuve yo”.


Atahualpa FernandezAtahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.


Manuella FernandezManuella Fernandez é Abogada Il·lustre Col·legi d’Advocats de les Illes Balears – ICAIB/España; Doctora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes Balears-UIB, España; Doctorado Derecho Público/ Universitat de les Illes Balears-UIB, España; Master (M.Sc.) Evolución y Cognición Humana/ Universitat de les Illes Balears-UIB, España; Research Scholar/ Fachbereich Rechtswissenschaft /Institut für Kriminalwissenschaften und Rechtsphilosophie, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main, Deutschland; Miembro de la Comisión de Derechos Humanos del ICAIB/España.


Imagem Ilustrativa do Post: Almada Negreiros Street sculpture and the loving couple // Foto de: Pedro Ribeiro Simões // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/pedrosimoes7/14071603160

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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