As regras do juiz e os valores: simbiose ou prevalência?

02/09/2015

Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 02/09/2015

Olá a todos!!!

Em 2010, após batalha judicial que mobilizou diversos segmentos da sociedade holandesa, a jovem Laura Dekker, à época com 14 anos, foi autorizada pelo Tribunal de Middleburg, no sudoeste da Holanda, a realizar, sozinha, viagem ao redor do mundo a bordo de seu veleiro[1]. A aventura fora inicialmente negada pela Justiça em 2009, ocasião em que Laura foi colocada em “assistência educativa temporária”, retirando-se a guarda dos pais, que a apoiavam na decisão tomada[2].

A jovem era habituada a velejar, tendo nascido em um porto da Nova Zelândia durante volta ao mundo com sete anos de duração realizada por seus pais em um veleiro; aos seis anos ganhou a sua primeira embarcação e aos onze velejou sozinha por semanas. A notícia, haurida pela imprensa, ainda indica que este tipo de atividade não é de todo incomum aos jovens: Abby Sunderland, de 16 anos, tentou realizar a mesma façanha, partindo da Califórnia, mas ficando à deriva no Oceano Índico poucos meses depois que zarpou; e Jessica Watson, australiana também de 16 anos, logrou realizar volta ao mundo que durou 210 dias, sem qualquer companhia ou assistência. O auspicioso no caso de Laura fora a judicialização da questão, que gerou debate aberto na sociedade holandesa, com repercussão também em âmbito mundial[3].

Olaus Petri (1497-1552), teólogo sueco que exerceu a magistratura após nomeação pelo Rei Gustaf Vasa, elaborou, influenciado pelos teóricos Martin Luther e Philip Melanchton e pela doutrina alemã estudada nas Universidades de Leipzig e Wittenberg, as conhecidas “Regras dos juízes”, verdadeiro código ético de conduta à moda dos atualmente existentes[4]. De fora parte a exortação a Deus, própria de sua origem religiosa, as regras apresentam interessantes pontos de estudo e reflexão para a resolução de questões como aquelas trazidas à lume com o caso de Laura Dekker. Entre as 42 (há divergência se 42 ou 43 regras, mas isso não vem ao caso), regras existentes, as que, ao menos a mim, chamam mais atenção são as de número 08 e 09, assim transcritas: “8. É melhor ter um juiz bom e sábio do que boa lei, porque ele sempre pode resolver a questão de forma justa. Mas onde há um juiz iníquo e injusto, a boa lei é de nenhum socorro, porque um juiz pode distorcer e torcer a lei de acordo com a sua própria mente. 9. O que não é justo e correto não pode ser lei quer; pois é por causa da justiça que habita na lei que a lei deve ser aceita”[5].

O que o caso Laura Dekker tem a ver com as regras do juiz de Olaus Petri?

Ao que parece, tanto em uma situação como outra ficou clara a possibilidade de a lei ser afastada à conta de peculiaridades do caso, ou de valores que, apegados ao fático, recomendem que o direito objetivo ceda passo. A diferença fica por conta de que no caso de Laura, a lei foi superada à vista de nuances e características pessoais dela própria e, no tocante às regras 08 e 09, a superação deve se verificar na hipótese de vícios de substância na lei[6].  Adotando o pensamento prevalecente em ambos as situações, a lei é afastada em decorrência de valores, em razão de substância, e em razão de descompasso entre o que prevê e o que dela esperar.

Em nosso direito pátrio virou quase lugar-comum (no pior dos sentidos) a utilização de palavras-mágicas como razoabilidade, proporcionalidade, devido processo legal em sentido material, boa-fé, entre outras, como solução para todos os males ou dificuldades decisórias que podem ser encontradas no dia-a-dia judicante. Em outra ocasião já tive a oportunidade de escrever sobre este fenômeno tomando a razoabilidade como exemplo[7]. Mais uma vez, gostaria de centrar atenção neste ponto: o que seria razoável para fins de justiça?

AAulis Arnio aposta na racionalidade como razoável. Em conhecida obra, sustenta que a argumentação racional desempenha papel importante – e fundamental, em realidade – na definição do razoável, sob pena de arbitrariedade ou defeito na linha decisória como um todo[8]. Esta racionalidade, no entanto, não afasta o espaço para valoração, lembrada por Recaséns Siches como a “lógica do razoável”[9] e, mesmo em terrenos mais apegados à sintática e menos à semântica, tais como abordagens deônticas e paraconsistentes da lógica.

A questão, portanto, já que o espaço de valoração se insere – e deve mesmo se inserir – no contexto da argumentação racional, parece ser a de como alocá-la devidamente sem incutir defeito no argumento utilizado[10]. Uma possibilidade de fazê-lo é deixar ao alvedrio do intérprete a análise desta questão de fundo que está compreendida no texto legal. A teoria da interpretação, aliás, desde Dworkin vem se mesclando à teoria da aplicação de maneira tão acentuada que atualmente fica até mesmo difícil definir ou separar as duas.

Uma outra possibilidade é a teoria da norma jurídica, que ostenta suficientes elementos e aportes teóricos para alocar valores no âmbito normativo sem perder em objetividade ou racionalidade. A dificuldade, aqui, é a de praticar a teoria sem necessariamente se fechar para o sistema jurídico existente e objetivo.

Uma terceira possibilidade é a simbiose entre ambas as teorias por intermédio da filosofia da razão prática. Alguns autores, a exemplo de Frederick Schauer e Joseph Raz, percorreram esta trilha, cada qual com a sua peculiaridade, claro, mas ambos trabalhando aspectos que dialogam e se complementam, ao tempo em que preservam o texto normativo.

Esta, para mim, é a melhor opção. Por quê?

Direi na próxima semana.

Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!


Notas e Referências:

[1] Histórico do caso disponível em http://veja.abril.com.br/agencias/afp/veja-afp/detail/2010-07-27-1191304.shtml. Acesso em 30 agosto de 2015.

[2] http://www.popa.com.br/_2009/CRONICAS/holandesa-13anos-circumnavegacao.htm. Acesso em 30 agosto de 2015.

[3] Aos interessados pelo desfecho do caso, a viagem terminou, de maneira exitosa, em janeiro de 2012, com a chegada de Laura e o seu veleiro “Guppy” à ilha de Saint Marteen, no Caribe, após 366 dias de navegação e 27 mil milhas náuticas (50.031 quilômetros). Informações disponíveis em http://veja.abril.com.br/noticia/esporte/regatista-holandesa-de-16-anos-conclui-volta-ao-mundo-sozinha/. Acesso em 31 agosto de 2015.

[4] A exemplo da Resolução nº 60, de 19 de setembro de 2008, do Conselho Nacional de Justiça, que institui o “Código de Ética da Magistratura Nacional”. Íntegra do texto encontra-se disponível em http://www.cnj.jus.br/portalcnj2013/images/stories/docs_cnj/resolucao/rescnj_60.pdf. Acesso em 31 agosto de 2015.

[5] Transcrição de todas as regras disponível em http://www.jarkkotontti.net/blog/tieteilya-ja-filosofiaa/olaus-petri-and-the-rules-for-judges-associations. Acesso em 31 agosto de 2015.

[6] O que deve prevalecer, o universalismo representado pela lei em vigor, ou o particularismo que pode ser depreendido das peculiaridades de cada caso? Esta é uma questão teórica da mais elevada importância e que merece um debate autônomo. Pretendo desenvolvê-la nas semanas que seguem.

[7] ALBERTO, Tiago Gagliano Pinto. Razoável é razoável; não-razoável é razoável. In: SOUZA, André Peixoto de; ALBERTO, Tiago Gagliano Pinto. Questões contemporâneas de direito. ILAAJ: Curitiba, 2015.

[8] ARNIO. Aaulis. Lo racional como razonable. Um tratado sobre la justificación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991.

[9] Entre outras obras do Autor: SICHES, Luis Recaséns. Nueva Filosofía de la interpretación del derecho. México: Editorial Porrua, S.A., 1973.

[10] Por defeito no argumento compreendo argumentos falaciosos, eminentemente subjetivos ou emotivos, retóricos, sem a possibilidade de comprovação ou simplesmente desapegados a qualquer liame fático, científico ou jurídico.


thiago galiano

Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Integrante do grupo Justiça, Democracia e Direitos Humanos, sob a coordenação da Professora Doutora Claudia Maria Barbosa. Integrante do Núcleo de Fundamentos do Direito sob a coordenação do Professor Doutor Cesar Antônio Serbena, UFPR. Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.”


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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