As Forças Armadas e os novos Carandirus

23/01/2017

Por Soraia da Rosa Mendes – 23/01/2017

A grave crise pela qual passa o sistema carcerário brasileiro, agudizada pelos massacres ocorridos em Manaus, Boa Vista e Natal, ao que parece fez com que fosse aberta uma verdadeira caixa de Pandora pelo Executivo brasileiro. Primeiro com a apresentação do Plano Nacional de Segurança Pública, do qual em parte já me ocupei nesta coluna[1] e, agora, com a autorização de emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem no sistema penitenciário.

De acordo com alguma doutrina constitucional brasileira as Forças Armadas “constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República (CF, art. 84, XIII), e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.[2]

A organização, o preparo e o emprego destas instituições, por sua vez, foi disciplinada em lei complementar editada em 09 de junho de 1999 (LC n. 97/99), na qual consta que sua atuação, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, nos termos do art. 144 da Constituição Federal (art. 15, § 2o). Considerando-se esgotados os instrumentos relacionados aos órgãos previstos no art. 144 da CF/88 quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional (art. 15, § 3o).

Ainda nos termos da Lei Complementar, na hipótese de emprego nas condições acima mencionadas, após mensagem do Presidente da República, serão ativados os órgãos operacionais das Forças Armadas, que desenvolverão, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, as ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das operações na garantia da lei e da ordem.

Assim ocorrendo, ou seja, determinado o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, caberá à autoridade competente, mediante ato formal, transferir o controle operacional dos órgãos de segurança pública necessários ao desenvolvimento das ações para a autoridade encarregada das operações, a qual deverá constituir um centro de coordenação de operações, composto por representantes dos órgãos públicos sob seu controle operacional ou com interesses afins.

Esclarece a lei, por último, que considera-se controle operacional o poder conferido à autoridade encarregada das operações, para atribuir e coordenar missões ou tarefas específicas a serem desempenhadas por efetivos dos órgãos de segurança pública, obedecidas as suas competências constitucionais ou legais.

Paulatinamente vem deixando de ser objeto de desejo perguntar exatamente qual é a definição de segurança pública segundo os gestores políticos brasileiros. Contudo, é irresistível perguntar em que parte dos pronunciamentos até o momento tornados públicos encontra-se o ato formal de falência completa da segurança pública brasileira a justificar o emprego das Forças armadas para “vistorias” em presídios? Os Estados, ao solicitarem o uso das Forças Armadas, assumirão formalmente sua incapacidade de desempenhar sua missão constitucional? Quem será a autoridade encarregada das operações a quem todos estarão submetidos em caso de atuação militar?

Não existe uso “cirúrgico” das Forças Armadas. E, em um Estado Democrático de Direito, regido por uma Constituição e pelas leis que a complementam segundo seu próprio comando, não poderá existir. Menos ainda sem o cumprimento de todas as formalidades exigidas.

Mesmo que se admita o completo descontrole do sistema carcerário nos Estados, a intervenção em presídios não é tarefa constitucional ou legal das Forças Armadas. E, desafortunadamente, por outro lado, sob a perspectiva política, seu uso indevido colocará importantes instituições nacionais (Marinha, Exército e Aeronáutica) à mercê de situações para as quais não estão preparadas, mas que pelos eventuais resultados desastrosos deverão responder.

Pela infelicidade da decisão tomada, em algum momento um militar poderá estar diante não de uma pessoa sob custódia que teve parte de seus direitos suspensos por uma sentença judicial. Poderá estar diante de um inimigo, em um espaço conflagrado, orientado pela e para a violência brutal.

O encontro entre o soldado e o “não-pessoa” poderá ser um novo, ou novos Carandirus. E ninguém merece isso. Nem a pessoa presa, nem o militar cuja missão constitucional é bem maior.

Diz Zaffaroni que o exercício real do poder punitivo sempre reconheceu um hostis, um estranho, um inimigo “em relação ao qual operou de modo diferenciado, com tratamento discriminatório, neutralizante e eliminatório, a partir da negação de sua condição de pessoa, ou seja, considerando-o basicamente em função de sua condição de  coisa  ou ente perigoso”.[3]

Pois bem, os inimigos são conhecidos. Foram selecionados e confinados em lugares específicos onde, por ironia, compete ao Estado que os aprisionou garantir sua integridade de toda e qualquer agressão, inclusive a de ser obrigado a filiar-se a uma facção qualquer que seja ela para poder sobreviver no cárcere. Restava somente a declaração formal de guerra. E, ela chegou.

O jarro em que se continham todos os males foi descoberto, segundo alguma versão do mito de Pandora, para o castigo da humanidade. Resta saber se lá no fundo sobrou alguma esperança.


Notas e Referências:

[1] MENDES, Soraia da Rosa Mendes. Entre massacres e chacinas a resposta é um plano. Empório do Direito. 16jan2017. Disponível em http://emporiododireito.com.br/entre-massacres-e-chacinas-a-resposta-e-um-plano.

[2] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2012. P. 843.

[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. P. 115.


Soraia da Rosa Mendes. . Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutora em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. .


Imagem Ilustrativa do Post: Apronto Operacional // Foto de: Ministério da Defesa // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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