Por Elpídio Paiva Luz Segundo – 03/06/2016
Gosto de música e gosto de direito. É possível misturar as duas coisas? Em agosto de 1994, ganhei de aniversário um som estéreo de meus pais. Passava longas tardes ouvindo música. Já na Faculdade de Direito, soube da existência da tradição da música ocidental. Li, então, uma obra de Otto Maria Carpeaux, intitulada “O Livro de Ouro da História da Música: da Idade Média ao Século XX”. Trata-se de uma edição da Ediouro, de 2001, que traça uma exposição desde o coral gregoriano, no final do século VI, que é uma música litúrgica católica, até a música concreta, no final dos anos 1940.
A história da música ocidental em sentido estrito começa com a igreja cristã. Os músicos da Idade Média não conheciam a música grega ou romana, pois, elas estavam associadas à práticas sociais que a igreja primitiva denegava ou a rituais pagãos que julgava deverem ser eliminados[1]. A distinção entre o sagrado e o profano na arte não é exclusivo da Idade Média. Em diferentes épocas, foram traçadas diversas fronteiras entre o poderia ou não ser ouvido, ainda que esse limite nem sempre fosse nítido[2].
A música e o direito da civilização ocidental foram erguidos à sombra das catedrais europeias, ainda que tenha começado com Ulisses e a sedução do canto das sereias, passando pela harmonia cósmica, modelo de harmonia da cidade-estado, em Platão, até desembocar na tradição judaico-cristã.
Se a literatura antiga tem como legados um Virgílio, um Horácio ou um Cícero, vivificados pelos renascentistas, da música antiga pouco ou quase nada ficou. Os fragmentos musicais antigos não tiveram influência sobre a obra de um Bach (1685 – 1750), cuja busca pela harmonia, racionalidade e previsibilidade musical se aproxima do desejo dos iluministas, com Kant (1724 – 1804) à frente, que foi transportada para a racionalidade da norma jurídica[3], como algo que estabelecesse a segurança e a ordem do mundo.
No século XVIII, a expansão do racionalismo desdobrou-se em frentes que iam das revoluções à ciência, passando pelas expressões artísticas e pela construção legislativa que se espargiu nas Constituições Americana e Francesa, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e no Código Civil Napoleônico, de 1804.
Diferente dos homens do seu tempo, Mozart (1756 – 1791), não foi propriamente um racionalista, mas, um inventor, ainda que tenha sido afetado pela ideia revolucionária de expandir as fronteiras da autonomia pessoal[4]. Na obra mozartiana, a razão não pode conter a erupção da surpresa, a contingência do inusitado. Ele mostra que a criação não pode ser tolhida por métodos e certezas[5].
O século XVIII, marcado pelo nascimento do sujeito, estabeleceu, também, a separação entre o sujeito e o objeto, entre a teoria e a prática, que será percebida no fluxo do século seguinte. Imitando a ideia de arte-pela-arte, estabeleceu-se uma teoria-pela-teoria, que só pode ser compreendida pelos andantes da caverna que se apartam da realidade[6]. Na música e na literatura, esse foi o caminho do romantismo. No direito, o positivismo do início do século XIX. A ciência jurídica seria retirada do seu aprisionamento cientificista, primeiro, com Rudolf Von Ihering, precursor de uma sociologia do direito. Mais tarde, Hans Kelsen, assim como Schoenberg trouxe consigo um modelo de abstração, caracterizado pela pureza do método[7]. A limpeza sugerida por eles, no campo do direito e da música, seriam sinais dos tempos[8].
As dificuldades para implementar essa teoria no Brasil seria óbvia. Primeiro, considerando o afastamento entre teoria e prática. Segundo, pelo fato das histórias das instituições locais serem desprezadas[9], como se fosse possível, hic et nunc, estabelecer procedimentos e conteúdos estrangeiros sem a devida reflexão, ou para empregar uma expressão osvaldiana[10], a antropofagia.
Além disso, um espectro ronda os brasileiros – o espectro da transgressão. É do senso comum que a transgressão é um esporte nacional, tão brasileira quanto o futebol. Há um folclore sobre o brasileiro como um sistemático violador da lei[11], e como alguém incapaz de se submeter a concepções abstratas e impessoais.
Uma metáfora ilustra a dificuldade com o discurso da ordem. Conta a história que Pedro Álvares Cabral chegou a Porto Seguro, lugar de calmaria e tranquilidade. Seria o porto realmente seguro? Ou antes, navegava-se nas águas da insegurança e da provisoriedade? E quanto à organização da música? Ela deve ser dividida, metrificada, ou deve apostar na incerteza?
Se a música é o barulho que pensa, como dizia Victor Hugo, e a música e o direito, no Brasil, condensam o europeu e o local, dando nova tonalidade à eles. A música, pelo seu registro popular, distinta da música popular europeia. O direito, pelo colorido do conflito e pela necessidade de transformação. O direito, como a música, é esculpido por várias mãos, em espaços diversos[12] e têm que lidar com a provisoriedade, a dúvida e a incerteza. Ainda assim, tanto as normas como as notas tentam estabelecer, em vão, parâmetros definitivos para as estruturas, bem como para as estaturas[13], pois, tanto aqui como acolá, o intérprete exerce um papel central. Esse intérprete deve ser coerente, íntegro[14] e, tanto aqui como acolá, deve dialogar com a tradição, sem desprezar o trabalho dos músicos ou dos juristas anteriores, mas, antes, atualizando-os diante do auditório, seja da métrica, seja da lei.
Em conclusão, a música e o direito são mediadores da existência humana. Ambos possuem vínculo com o transcendente e permitem que o homem flutue entre a angústia, o entusiasmo e a esperança. Hodiernamente, se os jovens precisam recorrer à música-grito[15] e ao direito como um grito de luta, é porque as palavras teriam perdido a sua força e não mais sensibilizariam os homens anestesiados da sociedade de massas. Isto seria o fim da razão e um apelo à catástrofe? Ou, seria o reconhecimento de que se vive em um mundo instável e provisório?
Notas e Referências:
[1] GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. História da Música Ocidental. Lisboa: Gradiva, 2007, p. 16.
[2] Idem, p. 44.
[3] LOPES, Mônica Sette. Uma metáfora: música e direito. São Paulo: LTr, 2006, p. 78 – 85.
[4] HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 62.
[5] LOPES, Mônica Sette. Uma metáfora: música e direito. São Paulo: LTr, 2006, p. 92.
[6] Idem, p. 94.
[7] Idem, p. 107.
[8] Idem, p. 110.
[9] Idem, p. 115.
[10] Trata-se de uma referência a Oswald de Andrade e o Manifesto Antropógrafo, de 1928.
[11] CARVALHO, José Murilo de. Quem transgride o quê? In: CARDOSO, Fernando Henrique; MOREIRA, Marcílio Marques (orgs.). Cultura das transgressões no Brasil: lições da história. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 73, adaptado.
[12] LOPES, Mônica Sette. Uma metáfora: música e direito. São Paulo: LTr, 2006, p. 130.
[13] LOPES, Mônica Sette. Uma metáfora: música e direito. São Paulo: LTr, 2006, p. 148.
[14] SANTOS, Raphael de Souza Almeida. Por uma teoria da decisão judicial: a crítica hermenêutica do direito como blindagem ao protagonismo judicial no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2016, p. 53.
[15] GALIMBERTI, Umberto. Rastros do sagrado: o cristianismo e a dessacralização do sagrado. São Paulo: Paulus, 2003, p. 209.
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/lizadaly/4373330774
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.